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OLÁ,

Na vanguarda das artes

A multiartista Jocy de Oliveira e a escritora Adriana Lisboa fazem de “Realejo de Vida e Morte” uma obra única no cenário nacional

Por Artur Tavares
31 Maio 2023, 10h47
Fotos da peça.
 (João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)
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Uma homenagem em livro que torna-se roteiro, vai para o teatro como montagem viva e então torna-se uma ópera cinemática nas telonas. Não era esse o plano da escritora carioca Adriana Lisboa quando ela escreveu o livro Realejo dos Mundos, uma obra inspirada em Jocy de Oliveira, mas foi o que aconteceu.

Adriana queria homenagear um grande nome das artes brasileiras em seu novo romance. Lembrou de Jocy, que a inspirou ainda nos anos 1980, quando conheceu sem querer o trabalho dessa artista de tamanha vanguarda. “Fui a um recital na Sala Cecília Meirelles mas errei a data. Eu iria assistir um recital de violão clássico, mas acabei parando no concerto do John Cage, em 1985, organizado pela Jocy”, ela conta.

Capa do livro
(Jocy de Oliveira / Adriana Lisboa/arquivo)

Mais de 30 anos separam o primeiro encontro entre Adriana, naquela ocasião ainda adolescente, e a escrita de Realejo dos Mundos. Quando ela enviou seu livro para Jocy de Oliveira, pouco antes da pandemia, a paranaense ficou tão lisonjeada que decidiu desdobrar a obra. Primeiro, foi o teatro, sob o nome de Realejo de Vida e Morte, e agora um livro lançado pela Relicário, que reúne o texto de Lisboa, o roteiro de Jocy, as partituras para a ópera que ela compôs para a peça e também para o filme que começa a ser gravado em breve.

Nós conversamos com Adriana e com Jocy – incansável aos 87 anos, uma das mentes mais brilhantes das artes nacionais – sobre este grande projeto. Confira:

Realejo de Vida e Morte vem sendo gestado desde 2019, mas é fruto de uma conexão conceitual entre vocês duas que parece vir de décadas. Como as obras de vocês duas se cruzaram para gerar esse novo trabalho?
Jocy de Oliveira: Existe uma profunda empatia e afinidade na inspiração do trabalho de ambas. Chamaria isso uma circularidade desde a ideia inicial de minhas obras nos anos oitenta que tiveram impacto no pensar de Adriana Lisboa. Ela partiu de uma inspiração ao ouvir e ler minhas obras para escrever um romance , que eu chamaria de romance/poema. Eu, ao ler seu manuscrito, me emocionei muito, o que me compeliu a escrever uma livre adaptação para o roteiro de uma ópera cinemática.

Fotos da peça.
(João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)
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Adriana Lisboa: Na verdade, conheci a obra dela quando eu tinha 15 anos, pouco tempo depois de começar a estudar música no Rio de Janeiro. Fui a um recital na Sala Cecília Meirelles mas errei a data. Eu iria assistir um recital de violão clássico, mas acabei parando no concerto do John Cage, em 1985, organizado pela Jocy. Ali, ambos se tornaram duas figuras muito importantes para mim, não apenas pela música que descobri naquele momento, como conceitualmente também, pela maneira que pensam arte, poesia, vida, música, e como fazem delas coisas indissociáveis.

Agora, eu já estava há um tempo querendo escrever algum trabalho de ficção inspirado por alguma artista brasileira. Quando comecei a pensar um pouco melhor nesse projeto, o nome da Jocy apareceu de maneira muito interessante. Entrei em contato com ela, marquei entrevista, fui à casa dela, revi a obra toda, então quis escrever um texto que de algum modo dialogasse conceitualmente com aquilo que ela faz, tivesse esse movimento circular. Fiz o Realejo dos Mundos e mandei para ela os originais. Então, ela leu e resolveu adaptar para a ópera cinemática Realejo de Vida e Morte, que recebeu esse título porque Realejo dos Mundos já é uma peça dela, de 1987.

Fotos da peça.
(João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)

O trabalho da Jocy sempre foi representado através de palavras, sons e músicas, e performances, enquanto Adriana era musicista antes de se tornar escritora. Como as palavras e os sons, ruídos e barulhos se misturam nas obras de vocês duas?
Adriana: Acho que sempre trouxe tanto tematicamente… eu tenho vários escritos, não só obras de ficção, mas poemas também, que são deliberadamente sobre música e músicos. E acho que a própria linguagem musical e certas estruturas… às vezes eu penso, por exemplo, em um poema como uma espécie de fuga ou uma sonata, com elementos formais da música que às vezes comparecem na escrita.

E, até pensando em uma escala menor, elementos como o ritmo da pontuação e a sonoridade das palavras dialogam musicalmente com os ouvidos. Tudo isso sempre foi muito importante para mim na escrita literária, seja de ficção ou não-ficção.

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“Existe uma profunda empatia e afinidade na inspiração do trabalho de ambas. Chamaria isso uma circularidade desde a ideia inicial de minhas obras nos anos oitenta que tiveram impacto no pensar de Adriana Lisboa. Ela partiu de uma inspiração ao ouvir e ler minhas obras para escrever um romance , que eu chamaria de romance/poema. Eu, ao ler seu manuscrito, me emocionei muito, o que me compeliu a escrever uma livre adaptação para o roteiro de uma ópera cinemática”

Jocy de Oliveira

Jocy: Minha estrada foi sempre em busca de uma multimidialidade – a intersemiose da música/teatro e imagem. Isso foi pouco a pouco sendo desenvolvido desde os anos 1960. Hoje minha incursão envolve o cinema, o que chamo de ópera cinemática. Isso teve início com meu primeiro filme de longa metragem, uma ópera cinemática chamada Liquid Voices, que estreou em 2019, tendo sido premiado em nove Festivais de Cinema: dois Festivais em Londres seguidos, além de Nice, Madrid, Varsóvia, Antuérpia, Israel, New York e Santiago.

Fotos da peça.
(João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)

E como a produção tornou-se coletiva?
Adriana: Acho essa ideia de colaboração muito legal. O escritor carece disso, não temos essa oportunidade de estar num palco colaborando com outras pessoas, como alguém do teatro, da dança, da música. Então essa ideia era algo que eu estava perseguindo mesmo. Fiquei muito surpresa quando ela resolveu adaptar o meu texto, porque não imaginei que isso fosse acontecer.

Em momentos de tanta individualidade, de tanto autocentramento dos artistas imersos em si mesmos, acho que isso de contemplar o trabalho de uma outra artista, de uma mulher brasileira tão importante, que foi tão guerreira num ambiente completamente hostil e inóspito para ela, uma mulher compositora de ópera no Brasil, você imagina, uma coisa de outro mundo. Então isso, para mim, é uma experiência inesperada e maravilhosa.

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Fotos da peça.
(João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)

Como foi receber o texto da Adriana e então decidir desdobrá-lo em tantas plataformas? O que te motivou a trabalhar em cima da obra com tamanha dedicação, realizando praticamente sozinho o que toda uma equipe precisaria fazer para compor trilha sonora, adaptar o texto, selecionar e dirigir atores, e por aí vai?
Jocy: Meu trabalho sempre foi autoral reunindo diferentes mídias. Assim foi com minhas nove óperas multimídias, muitas vezes ignoradas pelos músicos acadêmicos mas aplaudidas por aqueles artistas que voam mais livres. Há mais de 25 anos tenho um grupo de artistas – Ensemble Jocy de Oliveira – que reúne instrumentistas, cantores, atores, dançarinos e que se dedicam a estudar e executar meu trabalho. Assim, a maior parte do elenco faz parte desse grupo. A cantora /atriz Gabriela Geluda foi também a protagonista de Liquid Voices e vem me acompanhando há mais de 25 anos.

Como é natural, o romance é poético e mais narrativo. Isso tinha que ser transformado em outra linguagem que demanda maior dinâmica, um universo imagético e sobretudo musical. Como para mim, diferente do cinema, a música tem tanta importância quanto a imagem e um grande enfoque é dedicado à questão sonora. Para isso já temos grande parte da música gravada. Agora é partir para a filmagem.

“Acho essa ideia de colaboração muito legal. O escritor carece disso, não temos essa oportunidade de estar num palco colaborando com outras pessoas, como alguém do teatro, da dança, da música. Então essa ideia era algo que eu estava perseguindo mesmo”

Adriana Lisboa

Realejo dos Mundos foi escrito um pouco antes da pandemia, e sua adaptação para o teatro começou já em um contexto pandêmico. Embora vocês afirmem que trata-se de uma história atemporal, ela também cabe no contexto atual da sociedade, correto? Como se dão essas relações?
Jocy: Sim, é como se o tempo pairasse. O hoje, o ontem, a memória do futuro – como se refere Stephen Hawking – nada mais é do que um tempo circular que sempre existiu, por isso sem dúvida implica no mundo distópico que estamos vivendo hoje.

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Comecei a escrever logo após o lançamento de Liquid Voices, em 2019. Acreditava que não mais me aventuraria em uma grande produção, mas o instigante texto de Adriana me impulsionou a uma nova empreitada. Minha interpretação do romance me leva a refletir sobre várias questões relevantes ao mundo que vivemos hoje, como o abandono, o meio ambiente, a incerteza, a desesperança, a solidão, a exclusão, o aprisionamento, a discriminação. Parto da premissa que os dois personagens estão isolados, em um pós hecatombe de um planeta devastado.

Fotos da peça.
(João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)

Adriana: Isso é uma história muito louca, porque parece que é um texto covidiano, né? Parece que é um texto pautado pela pandemia. Mas para mim tinha muito mais uma coisa de se pensar na crise do antropoceno e numa espécie de futuro distópico. E havia o momento político em que eu escrevi a história, o fato de o personagem ser uma pessoa que sofre, que chega na casa da amiga todo machucado e ferido porque apanhou na rua. Era um momento em que a gente estava vivendo uma violência muito grande em termos políticos, e as pessoas se sentiam muito ameaçadas.

Então acho que teve esse duplo viés na escrita, do mundo, da coisa climática mesmo, do Brasil, dessa direita muito furiosa e agressiva. E veio a pandemia e aí toda essa ideia de distopia ficou, lamentavelmente, muito presente nas nossas vidas.

E aí, de repente, a gente tem uma virada política, mas nos damos conta de que certas coisas existem e não irão embora. Então, acho que tem uma corrente subterrânea por baixo dessa narrativa, que é quase como se o próprio texto e a ópera fossem se atualizando também com o passar dos anos, ganhando outros significados.

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Fotos da peça.
(João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)

O roteiro, as composições musicais, a peça de teatro, todas essas etapas aconteceram de maneira orgânica, quase que sendo realizadas ainda em gestação. Como essas etapas culminam na produção do filme?
Jocy: Toda a pré-produção do filme está feita, o roteiro também. E escolhemos como locação principal Atafona – uma pequena cidade fantasma no litoral norte Fluminense onde a transgressão do mar engolfa as casas e desfigura a paisagem a cada dia. É quase um cenário apocalíptico.

Todos os desdobramentos de Realejo são muito vanguardistas, e se tornam ainda mais no contexto de desmonte da cultura dos últimos anos. Essa obra é também um suspiro e um legado que ficam deste momento que vivemos?
Jocy: Sem dúvida. Nós, artistas, refletimos o que estamos vivendo com nossa ativa participação expressada sutilmente na nossa criação.

“Acho que teve esse duplo viés na escrita, do mundo, da coisa climática mesmo, do Brasil, dessa direita muito furiosa e agressiva. E veio a pandemia e aí toda essa ideia de distopia ficou, lamentavelmente, muito presente nas nossas vidas”

Adriana Lisboa

Quais as lições, emoções, sensações e lembranças que ficam entre vocês duas depois desse processo conjunto de criação do Realejo de Vida e Morte?
Adriana: Talvez duas coisas fundamentais. Uma, eu acho que é, lógico, a grandiosidade artística dela, e ter visto esse processo criativo dela tão de perto. Ter acompanhado a cabeça da Jocy, e como ela funciona no momento da criação, foi uma coisa inestimável, um aprendizado muito grande.

E aí eu acho que a outra coisa caminha muito perto disso que eu acabei de falar, que é essa insistência dela em levar o trabalho adiante, mesmo tendo sido sempre contra a corrente, enfrentando dificuldades de todas as ordens, desde a misoginia até falta de verbas mesmo, falta de mercado, falta de estrutura, falta de reconhecimento da mídia. É uma inspiração que é para a vida, sabe? Uma coisa realmente sensacional.

Jocy: Uma experiência única, instigante, que foge dos padrões tradicionais. Um livro composto de dois livros? Já é algo inusitado, além disso trazer informações, como partituras e QR code das músicas, fotos de uma versão cênica, o romance, pedem uma reflexão.

Fotos da peça.
(João Caldas Fº / Bernardo Palermo/arquivo)
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