Adriana Varejão celebra 40 anos de carreira com três exposições internacionais
Com uma das trajetórias mais potentes da arte contemporânea brasileira, a artista apresenta mostras em Nova York, Lisboa e Atenas

Em quatro décadas de produção, Adriana Varejão construiu uma das trajetórias mais potentes da arte contemporânea brasileira. Carioca, com projeção internacional, ela ressignificou o gesto artístico ao transformar o suporte em ferida aberta. Suas obras, onde azulejos coloniais se misturam a carne exposta, não suavizam a história — escancaram.
A violência do passado, marcada em cortes profundos, atravessa o tempo e ainda pulsa no presente. Assim, com o pé na porta no mundo das artes — e também da história do país — ela se firmou como uma das artistas com um dos discursos mais urgentes do nosso tempo.
Ao longo de sua trajetória, que em muitos momentos se confunde com a própria arte, Varejão explorou uma ampla gama de materiais e testou suportes diversos para abordar temas centrais da identidade brasileira: colonialismo, mestiçagem, corpo e memória cultural.
Neste ano, ela se superou mais uma vez ao apresentar sua obra em três exposições simultâneas, realizadas em diferentes partes do globo: Nova York (EUA), Lisboa (Portugal) e Atenas (Grécia). Cada uma delas propõe um recorte específico da história, com olhares distintos, mas todas atravessadas por sua paixão pela cerâmica e pela habilidade em reinventar o uso dos azulejos — um de seus elementos mais presentes.
Quando a reportagem da Bravo! entrevistou a artista por telefone, na véspera da inauguração da mostra na Hispanic Society Museum & Library (HSM&L), em Nova York, Adriana Varejão vivia um turbilhão. Ao mesmo tempo em que comemorava sua primeira individual na metrópole, ela processava o luto pela perda da sogra, a ensaísta Heloísa Teixeira (Adriana é casada com Pedro Buarque de Holanda), integrante da Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro.
“Essa correria não é nada. Nada. Tudo ficou pequeno perto disso. Porque ela, além de ter sido uma pessoa da minha família, era minha mestra também. Eu a conheci bem antes de ela ser minha sogra. E ela foi uma grande pessoa, assim, para as mulheres. Então, na verdade, viver esse luto que está sendo difícil… o resto tá fácil”, desabafa a artista, ao comentar como tem equilibrado os três projetos em cartaz simultaneamente.

Montar uma exposição, para Adriana Varejão, está longe de ser uma tarefa simples. A artista não separa suas obras do espaço em que serão exibidas — pelo contrário, seu processo criativo depende do diálogo com o ambiente, com o acervo e com o entorno. Esse envolvimento torna cada projeto mais complexo, pois exige pesquisa, escuta e, muitas vezes, a criação de obras pensadas especificamente para aquele contexto.
“Não sou o tipo de artista que cria obras desconectadas do espaço expositivo ou do contexto em que serão apresentadas. Nada contra, mas não é o meu processo. Eu preciso dialogar com o ambiente, com a coleção, com o entorno.” Para a exposição nova-iorquina, por exemplo, ela estudou e interagiu diretamente com o acervo e com a arquitetura do prédio histórico localizado no Harlem.
Seu processo criativo é guiado por uma disciplina rigorosa. Não acredita em epifanias ou em ideias milagrosas que surgem do nada. Prefere confiar no estudo, na pesquisa e na elaboração do conceito como ponto de partida para decidir que caminho seguir. “Com o conceito em mãos, passo a imaginar como essa ideia se manifesta visualmente: vai ser uma pintura, um prato, uma escultura? Cada técnica é escolhida de acordo com o que o conceito pede. A ideia orienta tudo — até a técnica e os materiais.”

Ainda assim, como todo artista que lida com os altos e baixos da criação, ela também enfrenta bloqueios. Para eles, só há um caminho. “Acredito no trabalho. As ideias surgem quando a gente está em ação, em embate com o fazer. Se estou com bloqueio criativo, vou para o ateliê. Fico por lá, mesmo sem saber o que fazer. Escuto música, folheio livros, rabisco qualquer coisa — mesmo que não sirva para nada. Só de estar ali, as coisas começam a acontecer. E se não acontecerem, volto no dia seguinte.”

A disciplina e o apreço pela rotina vêm da infância. Filha de militar — seu pai, Francisco Varejão, foi piloto da Aeronáutica —, Adriana cresceu em um ambiente rígido. E, embora tenha ingressado nas artes aos 20 anos, o plano inicial era outro. Por insistência do pai, chegou a iniciar o curso de Engenharia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Sua vocação, acreditava, era a Arquitetura — mas foi convencida de que essa carreira não teria futuro.
“Nos anos 80, a profissão de arquiteto praticamente desapareceu no Brasil… Era aquela época dos prédios horrorosos, depois do modernismo, ditadura militar, tudo sendo construído por engenheiros. Aí ele falou: ‘Imagina, você vai fazer arquitetura? Faz engenharia, que engenheiro faz o papel de arquiteto.’ Sabe?” A decisão, ela admite, foi um equívoco. Curiosamente, foi nesse período que ingressou em cursos de artes do Parque Lage, no Rio, e começou a produzir com intensidade. Em menos de cinco anos, já era uma artista premiada.
“A rotina, pra mim, é libertadora, não aprisiona. Quando estou sem ela, me sinto mais perdida. Meu horário não é cravado, mas tenho o hábito de ir e voltar do ateliê todos os dias e passo a maior parte do tempo lá.”
Fora do ateliê, o trabalho continua — a cabeça segue funcionando. Mas é também nesses momentos que outras coisas importantes acontecem: conversas, leituras, lazer. Acho que a disciplina precisa existir tanto pro trabalho quanto pro descanso.”
Apesar do foco absoluto no trabalho, Adriana defende um conceito que costuma ser esquecido: a “disciplina no lazer”. “Os dois precisam de disciplina. Porque senão a gente começa com o ‘tô cansada, não vou’. Aí não vai na estreia do filme do amigo, na abertura da exposição do artista jovem… e perde coisas incríveis. É isso: tem que ter disciplina também pro lazer. Ir à praia, sair de casa, dar um mergulho — mesmo com preguiça. Não é só o trabalho que exige esforço, o descanso também precisa de vontade.”
Por ora, no entanto, o descanso parece distante. Três exposições individuais — em Nova York, Lisboa e Atenas — tomam conta da agenda da artista neste momento. Conheça, a seguir, mais detalhes dessas mostras.

Don’t Forget: We Come From the Tropics
A exposição “Don’t Forget: We Come From the Tropics”, em cartaz na The Hispanic Society of America, em Nova York, marca a primeira mostra individual de Adriana Varejão em um museu nova-iorquino. O nome foi inspirado em uma frase da escultora brasileira Maria Martins: “Don’t forget, I come from the Tropics” (“Não se esqueça: eu venho dos trópicos”). A escolha foi um gesto de afirmar uma identidade separada das classificações impostas por narrativas eurocêntricas da história da arte.
A mostra é composta por cinco grandes pratos tridimensionais — da série “Pratos” — e uma instalação escultórica inédita. A mostra integra o novo programa de arte contemporânea da Hispanic Society, reaberta em 2024 após uma década de reformas, e busca ampliar o diálogo entre passado e presente, tradição e contemporaneidade — e, sobretudo, aproximar novos públicos de seu valioso acervo.
Instalada em um edifício histórico de arquitetura marcadamente barroca, a exposição dialoga diretamente com o espaço e com a coleção permanente da instituição, especializada em arte dos mundos de língua espanhola e portuguesa. Varejão, que também assina a curadoria de uma seleção de cerâmicas do acervo, apresenta obras inspiradas em tradições de diferentes origens — da cerâmica marajoara pré-colombiana às peças turcas de Iznik e chinesas da dinastia Ming —, incorporando elementos esculturais que evocam técnicas de mestres como Bernard Palissy e Rafael Bordalo Pinheiro.
No pátio da entrada, a artista instalou uma sucuri de grandes proporções em fibra de vidro que se enrola na estátua de El Cid, que pertence à instituição, desafiando os símbolos imperiais e patriarcais representados pelo monumento. A serpente, símbolo ambíguo de força e transformação, ali, atua como metáfora de resistência e reinterpretação histórica.

Entre os Vossos Dentes
A exposição “Entre os Vossos Dentes”, no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em Lisboa, apresenta um diálogo intenso entre as obras de Adriana Varejão e da artista portuguesa Paula Rego (1935–2022). Dividida em 13 salas temáticas, a mostra destaca como as duas artistas, de maneiras diferentes, abordam temas como violência, poder, corpo e memória.
A ideia da exposição surgiu em 2017, quando Varejão visitou o ateliê de Rego, após terem feito juntas uma pequena mostra no Rio, na Carpintaria (na Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel). A partir daí, nasceu o desejo de organizar uma exposição maior, reunindo obras das duas. Embora tenham trajetórias distintas — a artista portuguesa preferia retratar experiências íntimas, enquanto Varejão trabalha com questões históricas e sociais —, há conexões fortes entre seus trabalhos, especialmente na forma como tratam temas duros e urgentes.
A mostra reúne cerca de 100 obras e foi organizada por Varejão em parceria com Helena de Freitas e Victor Gorgulho. Para a cenografia, Varejão convidou a cineasta Daniela Thomas.
Em vez de fazer comparações diretas entre as artistas, a exposição propõe encontros entre as obras, criando ligações por afinidade temática ou visual. Um exemplo marcante é a sala que reúne a série sobre o aborto de Paula Rego, dos anos 1990, com pinturas de Varejão feitas para a Bienal de São Paulo de 1994 — ambas tratam do corpo e da dor com força e sensibilidade.
O título da mostra vem de um poema “Poemas aos Homens do Nosso Tempo”, de Hilda Hilst e faz referência à resistência e à luta contra opressões. Segurar algo entre os dentes seria um gesto de firmeza diante das violências enfrentadas.

Histórias Moldadas
Em Atenas, ela inaugura sua primeira exposição individual na galeria Gagosian, entre 15 de maio e 14 de junho. A mostra reúne obras inéditas inspiradas em quatro tradições cerâmicas distintas, em diálogo com peças históricas.
Dividida em quatro salas, a exposição começa com a cerâmica grega, incluindo um vaso original emprestado pelo Museu Benaki, apresentado ao lado de criações de Varejão. A segunda sala é dedicada à cerâmica de Maragogipinho, no Recôncavo Baiano, região reconhecida por sua forte tradição artesanal.

As obras nasceram a partir do contato desses dois universos aparentemente distantes: a cerâmica grega e a do Recôncavo Baiano. Em sua pesquisa, ela visitou o Museu Benaki, na Grécia, e mergulhou nas tradições visuais da cerâmica antiga. Ao mesmo tempo, foi até Maragogipinho, o mais importante polo da cerâmica popular brasileira.
“Comecei a sobrepor essas duas tradições e pensar: o que acontece quando colocamos a Grécia em diálogo com o Recôncavo?”, conta Varejão. A partir dessa pergunta, surgiram obras que combinam referências clássicas e populares. Daí foram criados novos sentidos para formas, técnicas e narrativas ligadas à história da arte e à cultura visual – tanto do ponto de vista cronológico e territorial.
Já a terceira sala propõe uma releitura da cerâmica chinesa da dinastia Song, com destaque para um incensário original também cedido pelo Museu Benaki. A última sala se inspira na cerâmica de Iznik, da Turquia, marcada por seus intensos tons de azul.
“São obras craqueladas, e esse processo é bem delicado. Algumas funcionam logo de cara, outras não. Comecei a desenvolver essa exposição depois de abril do ano passado, quando fui a Maragogipinho. Acredito que a concepção começou ali, com essa viagem. Comprei algumas peças, trouxe, e talvez ali já tenha nascido o esboço da exposição.”, explica a artista.

Nova Iorque – Hispanic Society Museum & Library
Adriana Varejão: “Don’t Forget: We Come From the Tropics”
27 de março a 22 de junho de 2025
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Lisboa – Centro de Arte Moderna Gulbenkian
“Entre os Vossos Dentes”
10 de abril a 22 de setembro
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Atenas – Gagosian
Ainda sem título
15 de maio a 14 de junho