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A arte de conduzir o olhar ou encontro marcado

Ana Mazzei parte da literatura e do teatro para materializar diferentes contextos de encenação por meio de vídeo, escultura e performance.

Por Laís Franklin
Atualizado em 16 ago 2024, 13h22 - Publicado em 16 ago 2024, 10h00
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Ana Mazzei, Vesuvius. Galeria Jaqueline Martins, 2020 (José Pelegrini/divulgação)
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“Escultura, corpo humano e espectador são os três pontos de pensamento fundamentais que direcionam o meu guarda-chuva de interesses criativos”, explica Ana Mazzei ao ser perguntada sobre qual seria a marca registrada de seu trabalho que ora mistura arte com literatura, ora com dança, ora com cinema. Sua obra, em muitas ocasiões, responde ao legado dos movimentos modernistas tardios do Brasil, especialmente das vanguardas neoconcretistas.

“Me interessa o som, o movimento, o posicionamento desse espectador diante da obra, o percurso que ele faz pra ele se aproximar da obra. O teatro aparece para mim quase como um dispositivo, um fenômeno de apresentação do meu próprio trabalho. Faço instalações, esculturas, ocupações sempre pensando, principalmente, na relação com quem está vendo. Não tenho uma questão ligada à dramaturgia. Apesar de muitas vezes, para começar um projeto, eu começo escrevendo uma história, uma narrativa que depois vira escultura ou performance.”

Formada em artes plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e Mestre em Poéticas Visuais pela UNICAMP, Mazzei participou do Programa de Estudos Independentes da Escola São Paulo (PIESP) dirigido por Adriano Pedrosa e, durante seu processo acadêmico veio um questionamento que impulsionou o recorte de sua produção autoral que está em importantes coleções ao redor do mundo. “Estudei fotografia do século XIX e as construções teatrais mais ligadas a tableau vivant, eu me interessava muito por isso, principalmente aquela ideia do século XIX, de se montar e fazer uma cena, eu achava aquilo maravilhoso. Brinco um pouco de fazer isso por meio das minhas obras. Gosto de construir a cena, de pensar e de digidir uma cena, mas não gosto de estar em cena.”

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A artista: “Minha obra se dá na retina, mas que também no contato com o corpo e com as outras presenças mais sinestéticas” (Francio de Holanda/divulgação)

Foi também na academia onde ela percebeu a dificuldade das intersecções entre as diferentes áreas das artes, como dança, literatura, cinema e teatro. “Muitas vezes esses intercâmbios são impossibilitados por um certo purismo por parte de determinados setores. Quis aprofundar essa questão. É por isso que minha obra se dá na retina, mas que também se dá no contato com o corpo e com as outras presenças mais sinestéticas”, avalia ela, que hoje também é professora de história de arte e encontra os ideais de Paulo Freire e Augusto Boal como meio de organização social.

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A pesquisa de Mazzei sempre começa com o auxílio de um caderno de croquis e tem cerne no retrato conceitual da encenação por meio de formas geométricas, onde o público é peça-chave para investigação da ideia e da fantasia da representação. À medida em que a artista foi evoluindo na pesquisa, essa matéria foi ganhando uma escala maior: “O trabalho da Ana tem um vigor singular. Temos clientes que esperam quase dois anos para conseguir comprar uma obra dela. Isso tudo foi uma construção com um ritmo trazido pela própria artista, que está muito comprometida com a produção nos quesitos de pesquisa e de desenvolvimento. De encontrar o material certo para cada tipo de trabalho que ela esteja visualizando. Sua produção é profundamente contemporânea. Não porque ela é atual para ‘o hoje’. Mas sim para a nossa linha de arte brasileira do século XXI. É uma grande ópera!”, define a galerista Jaqueline Martins, que representa a artista há 10 anos.
Não por acaso, um de seus trabalhos mais emblemáticos carrega o título de “Espetáculo”. Apresentado em 2016, ele foi um dos destaques da 32ª Bienal de São Paulo e chamou a atenção do público por sua escala e conjunto de molduras de madeiras em diferentes alturas.

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Ana Mazzei, Espetáculo. 32ª Bienal de São Paulo – Incerteza Viva. 2016 (Everton Ballardin/divulgação)

“Apresentei um desenho desse projeto ao curador, mas nunca tinha feito um trabalho nessa escala, com essa quantidade de elemento eram mais de 80 peças, com mais de 4 metros de altura por 13 de comprimento. Pensei muito na relação que o espectador estabelece dentro de um espaço com projeto amplo e aberto. E queria propor este olhar demorado com escritas quase que hieroglíficas. Trabalhei muito com a questão de frontalidade, de organização espacial e de um desenho que fosse um desenho arredondado em formato de ¼ do globo terrestre. Queria que o público andasse pelo prédio e parasse para olhar o trabalho. Eu queria conduzir esse olhar diante deste semicírculo. E para conduzir esse olhar, precisava que a obra chamasse atenção. A pausa é uma raridade do nosso tempo”, defende ela.

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Além das feiras de arte Basel e Frieze, que foram fundamentais para a internacionalização de sua obra na Europa e nos Estados Unidos, respectivamente, outro momento que foi um divisor de águas foi a criação de “Garabandal: Morte, Ascensão e Êxtase”, exibida no Tomie Ohtake em 2016, e na 14ª Bienal de Cuenca – Living Structures, em 2018. “Era uma espécie de cadeira-escultura e quando você se sentava, ela impunha uma postura associada a estudos milenares sobre mulheres em êxtase. Ela fala do sagrado e do profano de maneira particular e agregadora. Foi a partir daí que o público conseguiu se aproximar ainda mais do que ela estava propondo”, explica Martins. A artista também destaca a exposição “Vesúvius” — apresentada em 2020 na Galeria Jaqueline Martins — como um marco de sua carreira exatamente pela proximidade com o contexto pandêmico e também por abarcar as várias frentes de seu trabalho. “Ele é muito importante para mim pois conduzir visualmente a partir dessa composição de linhas e de formas.”

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Ana Mazzei, Garabandal: Morte, Ascensão e Êxtase. 14ª Bienal de Cuenca – Living Structures, 2018. Arte Atual Festival – Quadro Desquadro Requadro – Instituto Tomie Ohtake, 2016. (Everton Ballardin/divulgação)

Multidisciplinar, Mazzei explora a pintura em tecido, escultura em bronze, faz filmes, obras sonoras e até coreografa performances de dança. Os títulos nas obras de Mazzei não são descritivos ou óbvios, mas são indissociáveis da obra. De fato, título e obra se complementam e se tornam uma coisa só. “Quando vou formular os títulos para as minhas obras, sempre busco aqueles que poderiam ser um nome de padaria ou de motel”. Todas essas mídias e técnicas estão sendo pensadas e desenvolvidas dentro do seu núcleo mais importante: a história da representação e desse grande palco que se organiza a vida.

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O título de sua primeira individual na novíssima Martins&Montero — fusão das galerias Sé e Jaqueline Martins — já está definido: Cena de Jardim e foi inspirado na última viagem da artista para Nápoles, na Itália. “Decidi ocupar todo o lado de fora da galeria, até pensando nessa nova possibilidade de uma nova sede com um jardim generoso e que pode receber trabalhos”

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Ana Mazzei, Antechamber, 2018. Installation view
at Green Art Gallery Dubai. (Alex Wolfe/divulgação)

Mazzei já está desenhando croquis para trabalhos em bronze, madeira mais maciça, para que elas resistam ao tempo. Ela adianta ainda que está fazendo os primeiros estudos em concreto. Jaqueline Martins também deu pistas do que poderemos encontrar a partir de outubro na nova sede da galeria. “Seremos surpreendidos tanto na escala quanto na poética. Ana é uma artista muito madura na dinâmica e é capaz de antecipar as questões práticas e conceituais do projeto. Ela está propondo uma espécie de distração estimulante — no melhor sentido da palavra — diante do mundo. Muito lindamente, essa exposição irá mostrar uma essa capacidade ímpar que só grandes artistas do seu tempo são capazes: investigar um mesmo assunto, mas nunca se repetir.”

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