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Homenagem: Pintando Angeli

Para celebrar o trabalho do cartunista, Bravo! falou com alguns de seus amigos, familiares e antigos colegas de profissão

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 27 dez 2023, 10h34 - Publicado em 27 dez 2023, 10h30

Angeli sempre foi rebelde. Doce, mas rebelde, desde muito jovem. Daqueles meninos teimosos que, sem saber, colocam inúmeras barreiras para impedir uma passagem pela qual não querem trilhar. Um gesto intuitivo e até natural. Para Arnaldo Filho, nosso “Angeli”, esse caminho que lhe causava desgosto era tudo aquilo que representava o convencional. Uma das histórias mais contadas sobre a sua infância é o fato de ele ter repetido quatro vezes a 5ª série (antigo primeiro ano do Ensino Fundamental). Durante as aulas, ele desenhava, o que deixava os seus professores de cabelos em pé.

“Tudo com o meu pai era desenho. Ele ia deixar um bilhete para alguém, ele fazia um desenho. Minha avó dizia que, ao invés de escrever, ele desenhava”, conta sua filha mais nova, Sofia. O desenho fazia parte da dinâmica da família paterna, ela recorda. “Ver a família toda desenhando sempre foi uma coisa normal para nós. Ele desenha desde criança. O desenho, para ele, existe desde que ele tinha habilidade para segurar um lápis.”

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(Angeli/arquivo pessoal)

De família italiana, criado na Zona Norte de São Paulo, na Casa Verde, Arnaldo começou a desenhar profissionalmente logo após ser expulso da escola, aos 14 anos. Foi enviado para um colégio municipal, um local que acolhia aqueles jovens que, assim como Angeli, haviam sido rejeitados por outras escolas. Quando menino, costumava copiar os desenhos de Ziraldo e seu ídolo Millôr Fernandes. Seu avô era ferreiro e produzia portões ornamentados, foi dessa profissão que surgiram os primeiros desenhistas na família. Em seus relatos, ele recorda de ver o pai desenhando os trabalhos escolares dos filhos com uma pena – mosquito. Foi um dos momentos inaugurais de encantamento pelo ofício. Quando juntou o primeiro dinheiro, foi em busca da própria pena-mosquito.

Embora fosse um momento duro, em plena ditadura civil-militar, num período em que o desenho enquanto profissão não era visto como uma escolha muito promissora, ele se saiu muito bem. “Desde muito cedo, eu tinha certeza de que queria ser um desenhista, mas não sabia do quê, o que fazer com o desenho”, comentou o ilustrador ao site Itaú Cultural, quando foi homenageado pela instituição. Com 15 anos, publicou pela primeira vez na revista Senhor, que abordava de arte a política, e levou ao público contos de autores como Clarice Lispector. Nesse ínterim, viu também nascer uma das mais importantes publicações, O Pasquim, que foi definidora em sua carreira, e para qual colaborou algumas vezes. “Eu fiquei encantado [pela revista], era um desenho atrás do outro (…) Juntando O Pasquim e o Pif Paf, foi o botão de start para querer ser cartunista.” Enviou vários desenhos para a revista e, finalmente, viu um deles ser publicado na sessão de cartas.

Em 1973, quando completou 18 anos, desenhou pela primeira vez para o jornal Folha de S.Paulo. Por indicação da quadrinista Hilde Weber, que era casada com Claudio Abramo, diretor da Folha na época, ele se tornou cartunista fixo do jornal em 1975 e permaneceu na casa por 40 anos. Além das charges políticas, criou um de seus maiores tesouros, as tiras de “Chiclete com Banana”, que, inicialmente, saíam no Suplemento e, pouco menos de uma década, ocupou as páginas da Ilustrada. As histórias, entretanto, ganharam vida e conquistaram uma revista própria, para fora do jornal.

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(Angeli/arquivo)

Ao lado de Toninho Mendes, Angeli fundou a Circo Editorial. Foi através dela que lançaram a revista bimestral Chiclete com Banana, que logo se tornou um sucesso absurdo. Foi em Chiclete que criou os imortais – porém, mortos – Rê Bordosa e Bob Cuspe. A maioria de seus personagens evocava a vida na noite paulistana, a boêmia, a irreverência e o deboche. Rê Bordosa foi uma das criações mais queridas de Angeli, uma mulher que estava sempre com óculos escuros, constantemente bêbada, que fazia o que bem queria e que vivia se digladiando com questões existenciais. Ela cresceu tanto que Angeli decidiu matá-la em 1987. A causa da morte? Tédio matrimonial. “Eu tinha muito medo de ser aprisionado pela Rê Bordosa. Ela era uma personagem que, se eu quisesse, poderia ter trabalhado de forma bem profissional e ter ganhado muito dinheiro. Mas eu queria mantê-la do jeito que pensei, uma mulher da noite, cheiradora, fumeta e que dava para todo mundo”, declarou ao Itaú Cultural.

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Além desses, criou Wood & Stock, Os Skrotinhos, Bibelô, Luke & Tantra, Rhalah Rikota, Meiaoito e Nanico, Mara Tara, Feijão, e Tudoblue e Moçamba, entre outros. Bob Cuspe, o personagem punk incontornável, aliás, é visto como uma inspiração de si na adolescência, quando Angeli trabalhou como office boy e descobriu e se reconheceu na cultura punk.

Foi na Chiclete que surgiu outro projeto que conquistou uma legião de fãs, Los Tres Amigos, inicialmente, ao lado de Glauco e Laerte. Mais tarde, Adão Iturrusgarai foi convidado a se juntar à trupe. Os protagonistas eram caricaturas dos próprios ilustradores, forasteiros no Velho México que mais causavam confusão. Obra inspirada no faroeste “Três Amigos!” (1986), de John Landis. Mais tarde, a produção, que foi um grande sucesso na época, foi questionada por conteúdo extremamente machista. Em uma entrevista ao Provoca, com Marcelo Tas, Laerte disse que não faria esse tipo de produção atualmente. “No contexto, fazia sentido, pois estávamos desafiando tudo”, ela declarou.

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(Angeli/arquivo)

Além dos cartuns, Angeli mostrou sua versatilidade ao se aventurar no audiovisual. Participou do roteiro de TV Colosso e Sai de Baixo, da TV Globo. E teve algumas de suas obras adaptadas para o cinema, como Wood & Stock: sexo, orégano e rock’n roll (2006), dirigido por Otto Guerra e Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente (2021), de Cesar Cabral. Sem falar nos diversos livros que publicou ao longo de sua carreira.

Em 2023, quando o cartunista completou 67 anos e Bob Cuspe, 40, Angeli foi homenageado no Cinesesc com a exposição A Arte da Animação Stop Motion. A mostra apresentou o processo de confecção do filme Bob Cuspe e deu uma palha da produção do ilustrador. Em 2022, no entanto, nosso cartunista foi pego de surpresa com o diagnóstico de afasia, uma disfunção de linguagem rara que provoca a perda gradual da comunicação e compreensão do paciente. Diante disso, ele anunciou sua aposentadoria, o que entristeceu muitos de seus fãs.

Para homenagear nosso grande ilustrador, conversamos com alguns amigos e familiares, que falaram sobre a juventude com Angeli, suas qualidades e sobre a sua importância no mercado da animação.

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Sofia Angeli, filha de Angeli

“Quando eu nasci, meu pai já estava matando alguns de seus personagens. Ele matou a Rê Bordosa em 87, no mesmo ano em que nasci. Matou também o Bob Cuspe porque ele não queria que o personagem ficasse maior do que era de fato a essência do personagem. Os dois ficaram muito grandes, então, ele matou porque queria mantê-los no submundo, não queria que se tornassem hypados.

A questão do meu pai é que ele sempre quis quebrar regras. Ele foi revolucionário neste ponto. Mostrou para uma sociedade que era muito careta, em uma ditadura, a real de quem eram as pessoas. Deu caras, nomes e características às pessoas reais. Porque até então era tudo muito bonitinho e apaziguado pela situação política. E num momento em que o desenho, no Brasil, não estava tão em alta. Era um desenho cotidiano, não uma pintura.

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(Angeli/arquivo pessoal)

Tudo do meu pai era desenho. Ele ia deixar um bilhete para alguém, ele fazia um desenho. Ele sempre foi muito intuitivo, autodidata. Nasceu desenhando. Nunca teve técnica, nunca aprendeu nada de outra maneira que não fosse pelo fazer diário. O lógico-racional dele estava muito mais em olhar uma pessoa e criar uma personagem, do que no traço. O traço dele é muito intuitivo.

Ele é uma pessoa completamente oposta ao que todo mundo conhece. É extremamente carinhoso, amoroso e muito, muito sensível. Todo mundo fala que ele é o Bob Cuspe, mas ele é o oposto disso. Meu pai, enquanto pai, foi, na nossa infância, um cara muito bacana, muito presente, muito foda, de conversas boas e de muita intimidade. Ele é o oposto do que ele pinta que ele é. Passava o dia cantando e assoviando e fazendo piadas de absolutamente tudo.

A minha infância com ele foi de muita amizade, de muita parceria. Ele sempre foi muito presente na minha criação e na criação do meu irmão. Era uma presença muito doce e amável. Acho que meu pai ficaria puto, mas se meu pai fosse um de seus personagens, ele seria o Bibelô. Um bonachão, um cara que gosta de papear, xavequeiro em todos os sentidos.

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Nós passávamos o dia com ele. Meu irmão, Pedro, mais do que eu porque ele ainda pegou o momento em que meu pai trabalhava em casa. Ele estava sempre desenhando na mesa de jantar, profissionalmente ou por passatempo. Tenho uma coleção de desenhos dele da minha infância, coisas que fazíamos juntos, que ele começava e eu terminava ou vice-versa.

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(Angeli/arquivo pessoal)

Eu não tinha noção de quem era o Angeli, da dimensão de quem ele era. Era o meu pai desenhando e fazendo aquelas imagens absurdas. Demorou para que eu tivesse conhecimento do que ele representava para as outras pessoas.

Tenho muitos desenhos dele, enquadrados da minha infância que ele fazia, por exemplo, o PC Faria com os Beatles. Tinha um desenho de mim como chapeuzinho vermelho e ele era o lobo mau. Um desenho muito simples, mas que me marcou.

Por causa dele, nós temos uma visão das coisas muito visual, percebemos as coisas esteticamente visuais. Não enxergo de uma forma muito racional ou lógica. Percebemos muito mais pelo desenho.”

Carolina Guaycuru, artista gráfica, esposa de Angeli

“Há alguns anos, Angeli teve uma ideia para uma história que não chegou inteira para os leitores. O que chegou foi um indício de caminho que ele gostaria de percorrer com o seu trabalho. Pediram para que ele listasse os 10 maiores discos e bandas que o influenciaram. Ele os desenhou. E intitulou “ Discos que ninguém mais tem”. São bandas que não existem mas são personas que existem aos montes. Esse é só um exemplo da capacidade de observação e tradução que o transformaram em um autor extraordinário.

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(Angeli/arquivo)

Pelo mundo, normalmente os artistas de quadrinhos se especializam e um único estilo, seja tira, charge, cartum, personagens e tal. E, normalmente, seguem isso pela vida. Aqui, na escola brasileira; Angeli, Glauco, Laerte – precedidos por Jaguar, Millôr, Ziraldo e seguidos por algumas gerações – tem essa capacidade absurda de serem artistas tão gigantes quanto os mil braços de suas obras. Escrevem, traduzem, desenham, transitam por estilos gráficos dos mais variados. Se mostram aos pedaços e inteiros. Tive o prazer e o privilégio de acompanhar nesses últimos 30 anos muito de perto e diariamente a evolução artística e a transformação do autor e do homem que tanto admiro. O ANGELI. Sorte ainda maior por vivenciar muito de perto e diariamente este nosso amor. Que, como a história das bandas, é única e é universal. E que, talvez um dia, chegue inteira para os leitores que o acompanharam ao longo da vida.”

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Carol, Angeli e Adão (Angeli/arquivo)

Laerte, cartunista, amiga de Angeli

“Conheci ele quase que por inércia. Quantas pessoas faziam quadrinhos em São Paulo nos anos 60 e 70? Eram 3 ou 4 pessoas. Nós nos conhecemos enquanto estávamos fazendo O Balão. Alguém tinha falado no Angeli: ‘Tem um cara na Casa Verde’. Ele era conhecido como o cartunista da Casa Verde. Nós o convidamos, e ele acabou fazendo uma história de duas páginas que ficou bem legal.

Ficamos com esse contato, que era algo bem diferente do que é hoje em dia. Nos encontrávamos oferecendo ilustrações para editoras.

Ele era um cara legal, cabeludão. Sabia que estávamos na mesma turma; fazíamos quadrinhos, mas éramos do mercado alternativo. Não era alguém que estava procurando emprego no establishment. Houve um reconhecimento: somos do mesmo time.

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Ele é um organizador e juntador de gente. Os projetos dele nunca foram totalmente pessoais, ele sempre fundava naves, onde ele convidava amigos.

Ele é um criador de primeira, habilitado para criar personagens como poucos são. Os personagens dele são, mais ou menos, eternos. Existem personagens que se tornam muito conhecidos numa certa época, num certo contexto, mas quando passa o período de publicação, eles desaparecem. E os personagens do Angeli, embora tenham vínculo com circunstâncias que já não existem, como o movimento punk, eles continuam vívidos, parando em pé. Essa é uma qualidade difícil de conseguir.”

Adão Iturrusgarai, amigo de Angeli

“Conheci o Angeli em Porto Alegre, quando estava na faculdade. Foi nos anos 80. Quando tive acesso ao primeiro livro da Rê Bordosa, aquilo explodiu a minha cabeça. Foi uma sensação maravilhosa de conhecer o trabalho dele, que era super inovador e também ruim, porque eu pensei: ‘Puta merda, era exatamente isso que eu queria fazer e alguém já fez’.

Veio Chiclete com Banana. Mandei desenhos e, curiosamente, um dos desenhos que mandei saiu na página de cartas dos leitores. Depois, quando virei amigo dele, ele me contou que ele e Toninho Mendes ficaram na dúvida porque gostaram tanto do desenho que quase colocaram como colaborador numa página normal.

O tempo foi passando, uma vez o Angeli veio para Porto Alegre num evento e eu virei motorista dele. E aí, eu estava indo para Paris, passei por São Paulo e fui recebido por Angeli em seu estúdio. Tenho um texto sobre isso. Foi emocionante. Entrar no estúdio, ver aquele cara todo de preto, fumando, todo charmoso. ‘Puta que pariu, além de talentoso, ele é bonito. Por que Deus dá tanto para uma pessoa só e quase nada para outros?’, eu pensei.

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Angeli e Adão (Angeli/arquivo pessoal)

Conversamos muito. Ele me desejou sorte. Fui para Paris. Ele dizia que eu ia me tornar um superstar dos quadrinhos franceses, o que não aconteceu. Depois de um ano, eu voltei para Porto Alegre. Mas não dava mais para ficar lá, então o Angeli fez a proposta de que eu me tornasse subeditor da revista O Matador, que era uma espécie de Chiclete com Banana colorida. Não acabou rolando, mas fui para São Paulo. Quando cheguei, logo fui convidado para fazer Los Tres Amigos. Ver Angeli, Glauco e Laerte era como ver Mick Jagger e The Rolling Stones.

Nós nos reuníamos todas as quintas para fazer as ilustrações e nos tornamos amigos. Acho que entre 1993 até 2000, quando eu me mudei para o Rio, eu era a pessoa mais próxima dele. Ele era muito conhecido. Mulheres enviavam bilhetinhos para ele. Eu me sentia orgulhoso de estar com ele.

Ele era muito engraçado. Eu ia mostrar uma tira, ele fazia uma baita sacanagem, e começava a ler com voz de Pato Donald. Sempre foi muito rápido nas piadas. Era sublime criar com Angeli.

Antes do Angeli tinha O Pasquim, que tinha aquele perfil combativo na ditadura. Ele rompeu com o Henfil (o quadrinista e jornalista Henrique de Souza Filho) e a turma do Pasquim porque ele era diferente de todo mundo. Ele se vestia de preto, escutava The Rolling Stones. Era uma coisa completamente nova no quadrinho brasileiro, era mais airado.

Para mim, é um dos maiores quadrinistas brasileiros. Ele só não explodiu lá fora por escrever em português. Não sei se eu seria quem sou se ele não existisse, se São Paulo não existisse.”

Mário Bortolotto, diretor e dramaturgo, amigo de Angeli

“Conheço o Angeli desde 1984. Ele foi lançar em Londrina o primeiro Chiclete com Banana. Novamente, no Rio de Janeiro, ele estava lá, conheci o Toninho Mendes. A nossa amizade foi se estreitando até o momento em que fui chamado para fazer o personagem do curta-metragem dele. Era um conto que ele lançou e virou um curta.

No começo, nosso grupo se chamava Chiclete com Banana, em homenagem a ele. Os personagens do começo do grupo tinham muito a ver com a revista, principalmente com o Bob Cuspe. Já era fã dele, fiquei mais ainda depois que eu o conheci. O Angeli é uma das referências que eu tenho no meu trabalho. Ele foi revolucionário.

Todos os personagens que ele criou tinham a ver com o universo em que eu estava inserido, o Bob Cuspe, a Rê Bordosa. Nós levávamos uma vida boêmia.

Mais jovem, ele era expansivo, meio garotão. Sempre falava muito sobre rock, literatura, quadrinhos, a vida em geral. Tinha esse perfil jovial, de fazer brincadeiras, de tirar onda. Ele gostava muito de música punk, rock’n roll pesado.

Lembro muito das conversas que nós tínhamos. A última vez que nos vimos foi no ano novo passado, eu passei na casa dele. Ele já estava conversando pouco, estava mais recluso. Foi mais no fim da noite que conversamos mais.

Ele sempre vai ser meu ídolo, independente de termos nos conhecido e termos ficado amigos.”

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Márcia de Aguiar, ex-esposa de Angeli

“Conheci o Angeli em 1977. Ele tinha 21 anos. Eu namorava um jornalista e documentarista que morava com ele. Quando eu o conheci, nós nos apaixonamos na mesma hora. No ano seguinte fomos morar juntos.

Nessa época éramos muito diferentes. Apesar da pouca idade, ele era muito politizado. Ele andava com a turma do Henfil e outros jornalistas da velha guarda. Eu era uma hippie total. Ele me fez ver o mundo com outros olhos e eu mostrei que poderíamos viver a vida de forma mais suave, apesar de vivermos em uma ditadura. O Henfil detestou que o Angeli começou a se relacionar comigo.

Nós éramos super duro de grana, ele trabalhava como chargista na Folha. Logo depois tivemos um filho, que nasceu em 1981. Era uma batalha, mas já estava dando uma virada no trabalho dele. Ele começou a ficar mais criativo, menos sisudo, então começou a criar personagens. Ele trabalhava num quartinho e cuidava do nosso filho porque eu trabalhava fora. Era uma vida difícil.

Nós gostávamos de usar algumas drogas, então nada mais natural do que surgir uma Rê Bordosa. Era meio que baseada na vida que nós e nossos amigos levávamos. Quando nasceu a Rê Bordosa, ela representava todas as pessoas que viviam conosco. Passei anos sendo apresentada como essa personagem, o que era muito chato.

Depois que nasceu nosso filho, nós paramos com essas coisas. Quando o Toninho Mendes criou a Circo Editorial, eu participava de todas as etapas, das produções das fotonovelas, até revisão. A revista foi dando super certo e começamos a ter mais grana. Foi um período fértil de criação.

Ele era um trabalhador incansável, passava 12 horas seguidas na prancheta, e foi crescendo profissionalmente, mas a virada foi com a Chiclete com Banana. Ele se tornou muito mais conhecido, era assediado pelas mulheres. Era difícil. Quando a coisa foi melhorando, ele foi trabalhar num estúdio que ele alugou, e a coisa foi se profissionalizando.

O Angeli sempre foi muito irreverente, fora dos padrões. Como pai, ele era muito carinhoso, brincalhão, mas tinha dificuldade de colocar limites.

Eu vi nascer todos os personagens; eles eram sempre baseados em alguém conhecido. Meu personagem favorito é o Bob Cuspe, que foi totalmente inspirado na adolescência do Angeli, quando ele era office boy. Ele fazia tudo o que escrevia, segundo as histórias dos pais dele. Mas quando nos conhecemos, ele já era muito diferente.”

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