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O autoritarismo da fotografia (hoje)

Para além das telas, artistas propõem uma nova manifestação fotográfica capaz de questionar vícios que há muito ameaçam uma plena democracia

Por João Victor Guimarães
Atualizado em 7 fev 2023, 11h47 - Publicado em 6 fev 2023, 11h15
Nino Cais, sem título – Série Pitoresca viagem pitoresca, 2011
 (Nino Cais/reprodução)
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A expressão de uma realidade inconteste. Como disse André Bazin, a fotografia é, de certa forma, o vestígio de um acontecimento/espetáculo passado. Isso significa também que ela tece um fino elo entre dois tempos. E o faz impondo a realidade e literalidade de um passado, distante ou não, ao futuro, eterno presente. Agora, vivendo às custas e tendo como base um mundo historicamente violento, o que a fotografia herda ou arruína?

Antes mesmo da chegada da fotografia ao Brasil, tivemos com a pintura exemplos que prenunciaram o que poderia ocorrer, e ocorre, em quaisquer outras tecnologias que surjam sem se atentar com o que pode haver de irresponsável no progresso. Algumas repetições se estabelecem, seja em decorrência da forma ou do tema. Nas obras de Debret, antes dele, de Hans Staden, e depois deles a Anastácia registrada por Étienne, assinalaram a forma como a fotografia se imporia no Brasil. Nas obras de todos os artistas, é nítida e gritante a autoritária redução da vida humana a uma condução também autoritariamente imposta e registrada.

A desautorização do uso da imagem das pessoas, no caso escravizadas, para o usufruto de grupos e comunidades perversas no ainda hoje vigente Velho Mundo, é matéria da série de colagens Pitoresca, de 2011, realizada pelo artista paulistano Nino Cais. Nelas, Nino as retira das pinturas de Debret. Afinal, não houve autorização e nossas imagens, de pessoas pretas, não mais serão tidas como públicas. Assim, iniciamos um percurso em direção à responsabilidade em relação às imagens geradas e o contexto no qual serão lidas e disseminadas. Pensar se tais imagens alimentam ideias e ideais mais ou menos violentos é também uma responsabilidade ética do/da autora/artista.

Na cena da fotografia contemporânea, a fotógrafa e diretora baiana Helen Salomão vai ao centro da questão quando se preocupa com a autorização e reconhecimento das pessoas registradas por ela e suas lentes. Helen estabelece diálogos que vão desde a conversa pré-registro ao além do registro, quando, por exemplo, coloca o nome da pessoa no título da fotografia e pergunta à mesma se permite que sua imagem ocupe espaços públicos. Afinal, devemos poder decidir se queremos ou não nossa imagem disposta em tais circunstâncias, espaços e olhares.

“Histórias que não estavam nos livros.” Na imagem: Sara Flor Foto: Helen Salomão
“Histórias que não estavam nos livros” (Helen Salomão/reprodução)
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Porque não é difícil entender que o olhar também pode ser uma expressão de poder, não apenas o registro. Na fotografia, quem vê quem? O enquadramento, policial ou não, confina, reduz, recorta. Não é apenas a câmera que o faz. As nossas mentes e sua facilidade de leitura também têm vícios que merecem ser embaraçados a fim de expandirmo-nos. Inevitavelmente isso ocasionará o despertar de novos sentidos e sensações. A linguagem ao se reinventar, recria, reeduca nossos olhos e desfaz agressivos vícios.

A série Baratino, idealizada e realizada pelo fotógrafo Adriano Machado, nas palavras dele, consiste em apresentar a relação que seus primos, os modelos, estabelecem com os animais que eles criam como se fossem de estimação, embora sejam destinados à morte para consumo. Na série de fotografias, vemos homens pretos estabelecendo uma relação de controle da vida e da morte daqueles seres que se encontram no território da palma de sua mão. Aqui fora, as políticas e escolhas públicas do nosso país optam historicamente por exercer “semelhante controle” com relação aos corpos pretos. É uma complexa narrativa sobre os amplos poderes que torna-se ainda mais pungente quando Adriano, das mais criativas formas, opta por impedir que o público veja os olhos que o vê. Se põe em questão quem vê quem. É o corpo fotografado que nos olha nos olhos sem que possamos sabê-lo tão bem quanto ele nos sabe.

Sem dúvidas, devemos pensar e valorizar a contribuição que cada uma das pessoas artistas fazem às suas respectivas linguagens. No entanto, não podemos esquecer que ao fundo e ao centro disso tudo está o Brasil. É aqui e agora que pessoas formam grupos a fim de engendrar e agir em prol de um golpe de Estado que inevitavelmente resultaria na implantação de um regime autoritário e ditatorial, não-democrático. Essas pessoas utilizam suas câmeras para divulgar suas faces pregando o autoritarismo e alegando fazê-lo para obterem mais liberdade de expressão.

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Já não se suporta mais falar sobre privilégio, certo? Mas perceba a discrepância histórica entre expressões da ideologia dominante na burguesia brasileira e a condição imposta a quem historicamente teve seu corpo, das mais variadas formas, explorado pela burguesia nacional e internacional. Não se trata apenas de registrar a si mesmo e hostilizar quem revele uma narrativa “desagradável” sobre si. São pessoas que inconscientemente estão certas que ferramentas como a fotografia não foram e nem poderão ser utilizadas contra elas. Um sujeito agride o advogado do presidente democraticamente eleito só por sê-lo e o faz com o celular gravando a si mesmo diante do espelho.

Pela primeira vez em muito tempo, vemos que as imagens geradas pela ideologia dominante na burguesia brasileira garantirão que a justiça será feita contra aqueles que, nas palavras do presidente eleito, atentam contra o único sistema que pode permitir que pessoas pobres tenham o direito de realizar três refeições ao dia. Sabemos que há uma disputa narrativa e imagética. Atentar contra a democracia é, em algum nível, atentar contra as ações, iniciativas e forças que agem como as artistas e obras aqui citadas: em prol do bem-estar de todos os seres e mundos desse Mundo. Enfim, a Fotografia pode ser a ferramenta da luz preta que fará (e faz) ruir as trevas.

Jamex, um dos mais jovens e notáveis artistas plásticos da Bahia no circuito comercial, apresenta-nos uma obra cujo título é a frase que grita junto à pintura na tela: “IMAGEM É PODER”.

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imagem é poder

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