O autoritarismo da fotografia (hoje)
Para além das telas, artistas propõem uma nova manifestação fotográfica capaz de questionar vícios que há muito ameaçam uma plena democracia
A expressão de uma realidade inconteste. Como disse André Bazin, a fotografia é, de certa forma, o vestígio de um acontecimento/espetáculo passado. Isso significa também que ela tece um fino elo entre dois tempos. E o faz impondo a realidade e literalidade de um passado, distante ou não, ao futuro, eterno presente. Agora, vivendo às custas e tendo como base um mundo historicamente violento, o que a fotografia herda ou arruína?
Antes mesmo da chegada da fotografia ao Brasil, tivemos com a pintura exemplos que prenunciaram o que poderia ocorrer, e ocorre, em quaisquer outras tecnologias que surjam sem se atentar com o que pode haver de irresponsável no progresso. Algumas repetições se estabelecem, seja em decorrência da forma ou do tema. Nas obras de Debret, antes dele, de Hans Staden, e depois deles a Anastácia registrada por Étienne, assinalaram a forma como a fotografia se imporia no Brasil. Nas obras de todos os artistas, é nítida e gritante a autoritária redução da vida humana a uma condução também autoritariamente imposta e registrada.
A desautorização do uso da imagem das pessoas, no caso escravizadas, para o usufruto de grupos e comunidades perversas no ainda hoje vigente Velho Mundo, é matéria da série de colagens Pitoresca, de 2011, realizada pelo artista paulistano Nino Cais. Nelas, Nino as retira das pinturas de Debret. Afinal, não houve autorização e nossas imagens, de pessoas pretas, não mais serão tidas como públicas. Assim, iniciamos um percurso em direção à responsabilidade em relação às imagens geradas e o contexto no qual serão lidas e disseminadas. Pensar se tais imagens alimentam ideias e ideais mais ou menos violentos é também uma responsabilidade ética do/da autora/artista.
Na cena da fotografia contemporânea, a fotógrafa e diretora baiana Helen Salomão vai ao centro da questão quando se preocupa com a autorização e reconhecimento das pessoas registradas por ela e suas lentes. Helen estabelece diálogos que vão desde a conversa pré-registro ao além do registro, quando, por exemplo, coloca o nome da pessoa no título da fotografia e pergunta à mesma se permite que sua imagem ocupe espaços públicos. Afinal, devemos poder decidir se queremos ou não nossa imagem disposta em tais circunstâncias, espaços e olhares.
Porque não é difícil entender que o olhar também pode ser uma expressão de poder, não apenas o registro. Na fotografia, quem vê quem? O enquadramento, policial ou não, confina, reduz, recorta. Não é apenas a câmera que o faz. As nossas mentes e sua facilidade de leitura também têm vícios que merecem ser embaraçados a fim de expandirmo-nos. Inevitavelmente isso ocasionará o despertar de novos sentidos e sensações. A linguagem ao se reinventar, recria, reeduca nossos olhos e desfaz agressivos vícios.
A série Baratino, idealizada e realizada pelo fotógrafo Adriano Machado, nas palavras dele, consiste em apresentar a relação que seus primos, os modelos, estabelecem com os animais que eles criam como se fossem de estimação, embora sejam destinados à morte para consumo. Na série de fotografias, vemos homens pretos estabelecendo uma relação de controle da vida e da morte daqueles seres que se encontram no território da palma de sua mão. Aqui fora, as políticas e escolhas públicas do nosso país optam historicamente por exercer “semelhante controle” com relação aos corpos pretos. É uma complexa narrativa sobre os amplos poderes que torna-se ainda mais pungente quando Adriano, das mais criativas formas, opta por impedir que o público veja os olhos que o vê. Se põe em questão quem vê quem. É o corpo fotografado que nos olha nos olhos sem que possamos sabê-lo tão bem quanto ele nos sabe.
Sem dúvidas, devemos pensar e valorizar a contribuição que cada uma das pessoas artistas fazem às suas respectivas linguagens. No entanto, não podemos esquecer que ao fundo e ao centro disso tudo está o Brasil. É aqui e agora que pessoas formam grupos a fim de engendrar e agir em prol de um golpe de Estado que inevitavelmente resultaria na implantação de um regime autoritário e ditatorial, não-democrático. Essas pessoas utilizam suas câmeras para divulgar suas faces pregando o autoritarismo e alegando fazê-lo para obterem mais liberdade de expressão.
Já não se suporta mais falar sobre privilégio, certo? Mas perceba a discrepância histórica entre expressões da ideologia dominante na burguesia brasileira e a condição imposta a quem historicamente teve seu corpo, das mais variadas formas, explorado pela burguesia nacional e internacional. Não se trata apenas de registrar a si mesmo e hostilizar quem revele uma narrativa “desagradável” sobre si. São pessoas que inconscientemente estão certas que ferramentas como a fotografia não foram e nem poderão ser utilizadas contra elas. Um sujeito agride o advogado do presidente democraticamente eleito só por sê-lo e o faz com o celular gravando a si mesmo diante do espelho.
Pela primeira vez em muito tempo, vemos que as imagens geradas pela ideologia dominante na burguesia brasileira garantirão que a justiça será feita contra aqueles que, nas palavras do presidente eleito, atentam contra o único sistema que pode permitir que pessoas pobres tenham o direito de realizar três refeições ao dia. Sabemos que há uma disputa narrativa e imagética. Atentar contra a democracia é, em algum nível, atentar contra as ações, iniciativas e forças que agem como as artistas e obras aqui citadas: em prol do bem-estar de todos os seres e mundos desse Mundo. Enfim, a Fotografia pode ser a ferramenta da luz preta que fará (e faz) ruir as trevas.
Jamex, um dos mais jovens e notáveis artistas plásticos da Bahia no circuito comercial, apresenta-nos uma obra cujo título é a frase que grita junto à pintura na tela: “IMAGEM É PODER”.
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