Cidades do futuro
Artista franco-marroquina Chourouk Hriech debate as relações da floresta com o ambiente urbano com projeto no Museu do Amanhã
Cada vez que a artista Chourouk Hriech chega a uma cidade nova, ela entende que é necessário um tempo de calma, de contemplação, para perceber minimamente os semblantes e sentimentos daquele lugar. Algumas vezes, é como se fosse arrebatada pela história daquele local. No ano passado, Chourouk chegou ao Rio de Janeiro, uma experiência completamente nova para franco-marroquina. O convite veio do Museu do Amanhã, da Embaixada da França no Brasil e do Goethe-Institut Rio de Janeiro no contexto do projeto Uma Cidade na Floresta. Na ocasião, ela participou de uma residência artística na cidade maravilhosa.
A experiência, conta ela, foi como se a história do mundo explodisse em sua cara. A vivência e a relação com a cidade resultaram em uma exposição-instalação que permanece em cartaz no Museu do Amanhã até setembro. Em seus trabalhos, Chourouk mescla esculturas em técnica mista, acrílico sobre azulejos, nanquim, guache e impressão fotográfica digital sobre papel de parede de algodão e guache sobre tela. Conheça um pouco da história da artista:
Em cada conversa, geralmente pergunto sobre a história da pessoa entrevistada, e o momento em que ele se sentiu tão tocada pelo mundo da arte. Você pode nos contar sobre sua formação?
Nasci e cresci em um pequeno vilarejo na região centro leste da França, filha de pais marroquinos, uma mãe de Casablanca e um pai berbere rifenho. Essa região tem rios, colinas, um rico patrimônio histórico e cultural que vai desde os tempos pré-históricos até os dias atuais, bem como o maior parque ornitológico da Europa. Ganhei meu primeiro concurso de desenho aos 7 anos e o prêmio foi um conjunto para pescar; meu tio, que estava na França na época, levou o conjunto para Marrakesh, onde não há mar, e de lá a “linha” foi lançada para outros horizontes. Além disso, uma de minhas tias havia emigrado para a Itália, para onde vou desde a infância e que considero meu terceiro país. Na Itália, é possível encontrar a Antiguidade e a história da arte ocidental e mediterrânea em cada esquina. Sem dúvida, por todos esses motivos, mais tarde decidi estudar História Medieval e História da Arte Ocidental na universidade, antes de continuar meus estudos e me formar na Ecole Nationale Supérieure de Lyon em 2002. Poderia dizer que a arte me escolheu muito antes de eu mesmo escolhê-la. Graças à arte, viajo por mundos e épocas.
Viajo por mundos e culturas que passam por mim e transformam minha maneira de ver as coisas e, da mesma forma, minha compreensão e minha prática do espaço. É um tipo de gesto de olhar que dá origem a linhas, formas, imagens e instalações. Vejo meu trabalho como um território nômade, tanto literal quanto figurativamente”
Chourouk Hriech
Quais foram suas principais influências artísticas?
Em primeiro lugar, sou uma pessoa para quem tudo começa com palavras, narrativa e escrita, uma mistura entre a herança de uma cultura oral e minha formação em uma sociedade baseada em textos e conceitos. Sempre fui fascinada pela antiguidade greco-romana e pela história da bacia do Mediterrâneo, tanto em termos de seus vestígios quanto do período da Renascença, com sua racionalização do espaço na pintura religiosa. Adoro a poesia árabe-andaluza dos séculos X ao XIII, que é uma verdadeira pintura social e um mapa emocional desse período rico e fervilhante. Minhas influências são nutridas pela história dos ornamentos e das figuras vivas desde a pré-história até os dias atuais, pela cronofotografia e pelo surgimento da imagem e sua reprodutibilidade, pelo Ukyo, palavra japonesa que significa pintura do mundo que passa, imagem do mundo flutuante, do período Edo no Japão, pelas artes decorativas e pela arquitetura, pela botânica, pelas ciências da terra.
Que temas e conceitos você aborda em seu trabalho? Você procura transmitir uma mensagem específica por meio dele?
Minha abordagem seria a de uma pessoa contemplativa. Viajo pela Europa e pela África desde criança, e pela Ásia nos últimos 20 anos. Viajo por mundos e culturas que passam por mim e transformam minha maneira de ver as coisas e, da mesma forma, minha compreensão e minha prática do espaço. É um tipo de gesto de olhar que dá origem a linhas, formas, imagens e instalações. Vejo meu trabalho como um território nômade, tanto literal quanto figurativamente. O importante é a experiência e o encontro e, uma vez que o oásis tenha surgido no espaço de exposição, é a vez dos visitantes se apropriarem do significado das obras e levá-las em uma jornada ainda mais longa. Adoro essa ideia da migração de imaginações coletivas ou individuais, porque elas são como nuvens – nunca pararam desde o início do mundo. Meu trabalho geralmente se concentra em espaços, construções, paisagens, ambientes ligados a seres vivos, como florestas, mas também ambientes criados por e para humanos e, mais particularmente, do século XVI ao XXI, períodos cruciais e desproporcionais na exploração de recursos naturais para fins econômicos e especulativos em todo o mundo. O resultado foi uma crise de civilização e ecologia pela qual ainda estamos pagando hoje.
Como a cidade do Rio de Janeiro influenciou seu trabalho recente e como você incorpora elementos da cultura e da paisagem do Rio em seu trabalho recente?
Cada cidade tem uma identidade sonora e visual que está em constante relação com seus habitantes e seu ambiente. Eu nunca havia imaginado que uma cidade como o Rio, que eu conhecia apenas em imagens, pudesse existir na realidade, tanto que suas realidades estão todas em equilíbrio e em movimento imprevisível. O que me impressionou em minha primeira viagem foi o solo ondulado das ruas, que nos lembra que as raízes das florestas originais continuam embaixo de nossos pés, prontas para ressurgir na primeira brecha deixada pelos humanos. Meu trabalho é sempre um espaço de “sinfonia alegre” (no original sympaphonie, um jogo de palavras) ou de coreografias visuais em que desenhos, imagens, esculturas e, às vezes, sons se chocam. Aqui no Rio, tentei criar um acampamento temporário para pássaros encontrados em uma olaria na beira da estrada. O tempo para uma pausa em meio a desenhos nascidos da minha primeira viagem carioca, misturados com fotos tiradas durante minhas caminhadas.
Você já tinha um relacionamento com o Brasil antes?
As únicas relações que tenho com o Brasil são os grandes amigos brasileiros que tenho na França, além de fotos e livros.
“O que me impressionou em minha primeira viagem [ao Rio de Janeiro] foi o solo ondulado das ruas, que nos lembra que as raízes das florestas originais continuam embaixo de nossos pés, prontas para ressurgir na primeira brecha deixada pelos humanos”
Chourouk Hriech
O que mais chamou sua atenção na cidade? Você tem alguma dinâmica específica para se relacionar com o objeto que será transformado na obra?
A cidade é o local de história na qual várias narrativas se desdobram simultaneamente, como as ilhotas de um arquipélago. Cada obra é uma pausa descritiva, um elemento na construção de cenários possíveis e moduláveis, ao mesmo tempo, em que mantém sua própria “escrita”. O uso da narrativa e de histórias me permite propor um convite a um passeio, uma caminhada, com pausas, em meio a elementos visíveis ou que nos escapam. Trata-se de ter uma relação com a paisagem, e não ver a paisagem como um simples objeto. A cidade do Rio impressiona por todas as suas narrativas, que acontecem em tempo real em meio a uma arquitetura de desequilíbrios de todos os tipos, tendo como pano de fundo florestas exuberantes. Um verdadeiro reino de opostos, rico, falante ou silencioso, mas, de qualquer forma, muito vivo. É um pouco a cidade de perspectivas oblíquas. A perspectiva desempenha um papel importante em meu trabalho, pois me permite mapear o território e criar a “desordem narrativa extraordinária” descrita por Daniel Arasse em relação a certos afrescos da Renascença florentina, oferecendo uma construção rigorosa na qual certas figuras ou motivos desempenham um papel diferenciado. Citando Erwin Panofsky: “A perspectiva não apenas mostra, ela pensa”. O Rio é uma cidade que mostra, que se mostra e que pensa tanto de noite quanto de dia.
Antes da abertura da exposição, você participou da residência artística Cidade Floresta. Pode nos contar como foi essa experiência e que impressões tirou dela?
Em dezembro passado estive no Rio para uma residência e tive a sorte de estar acompanhada para descobrir suas riquezas naturais e culturais. Na verdade, não tenho palavras para definir as emoções que me atravessaram naquele momento. O que posso dizer é que a história do mundo explodiu na minha cara com tanta força que foi como se eu estivesse congelada, e mesmo quando voltei para casa em Marselha, ainda não conseguia pensar em nada para dizer. Na verdade, a Europa, a África, o Marrocos e a França são a minha casa, eu os conheço, eu os vivo e vivencio suas histórias no meu dia a dia, na minha carne e no meu coração, posso entender as razões, os riscos, os resultados dos atos passados da história, o presente e construir um futuro lá. Por outro lado, eu só conhecia a história do Brasil à distância, por meio de livros e fotos, sem nunca ter realmente percebido em carne e osso até que ponto sua história e seu doloroso nascimento estavam ligados ao surgimento de países da velha Europa, que terão exterminado tantos outros. Eu só havia experimentado essa reescrita em escala continental na África, e lá encontrei todos os rostos de povos aos quais eu também poderia ter pertencido. Fiquei inundada de um sentimento de irmandade e fraternidade que eu não esperava e pelo qual continuo imensamente grata.
O próprio Pão de Açúcar tem o formato dado ao açúcar no Marrocos para preservá-lo antes de quebrá-lo em pequenos pedaços para o chá de menta, e tem sido assim há séculos. Como não imaginar que isso poderia ser um legado ligado à economia açucareira portuguesa do século XVI? Sempre fico surpresa e impressionada com essa forma de “globalização” que existia muito antes dessa situação global de mudança de paradigma informacional, e que tendemos a esquecer regularmente, embora possamos observá-la na história. O que posso dizer com certeza é que recebi muito amor e que ainda aprendi muito. E, sim, nunca terminamos de aprender, e isso é um bem inestimável.
Como você escolhe os materiais e as técnicas para seu trabalho? Você tem alguma preferência especial por determinados materiais ou métodos?
Há dois pontos essenciais em minha abordagem: em primeiro lugar, o espaço e, em segundo, as ferramentas. Os espaços obedecem a um conjunto de dados físicos, geométricos, materiais, são regidos e moldados por construções, códigos da vida social e cultural, bem como pela natureza. Tudo é projetado neles e ganha vida. Eles são os pilares de nossa existência, os territórios que nos recebem e pelos quais atravessamos. Portanto, abordo o espaço como se fosse uma viagem: ouvindo-o, praticando-o, sentindo-o, até que ele me responda e eu descubra possibilidades de abri-lo, de me mover ao longo dele, de partir em direção a novos espaços.
Depois, há a escolha das mídias para poder existir. Para fazer isso, sempre começo com desenhos e fotografias e, ao longo dos anos, adquiri o hábito de procurar pássaros em fotografias ou objetos onde quer que eu vá e depois pintá-los de branco para que todos façam parte de uma mesma grande família. Acho importante usar objetos e formas que já existem para não saturar nosso mundo com uma materialidade excessiva que sufoca todos os seres vivos e humanos.
“O próprio Pão de Açúcar tem o formato dado ao açúcar no Marrocos para preservá-lo antes de quebrá-lo em pequenos pedaços para o chá de menta, e tem sido assim há séculos. Como não imaginar que isso poderia ser um legado ligado à economia açucareira portuguesa do século XVI?”
Chourouk Hriech
Teve alguma experiência ou momento significativo em sua carreira artística que deixou uma impressão duradoura em você?
Cada experiência é única, mas cada sociedade e cultura tem sua própria concepção da criação. De fato, os significados das figuras e o caminho do significado foram construídos sobre uma base de conhecimentos e experiências totalmente diferentes de um mundo para outro ao longo dos séculos. Às vezes sagradas e religiosas, às vezes políticas ou estéticas, ou simplesmente práticas, essas têm sido as forças motrizes por trás do nascimento de formas em torno das quais a humanidade se reuniu. Sim, mas os lugares que recebem essas formas são igualmente variáveis. As experiências que me impressionaram foram aquelas em que os lugares que receberam as obras não tinham nada para recebê-las na realidade, o que confronta todo artista com a seguinte pergunta: que lugar e vida para o objeto de arte fora do museu, do cubo branco ou da galeria? Na realidade, mesmo que as formas que uso sejam bastante contemporâneas, elas não deixam de ser clássicas: desenhos, esculturas, fotografias, vídeos etc. Lembro-me de ter sido colocada à prova de meus próprios mecanismos criativos no Salon Urbain de Douala em 2017.
Camarões é um país maravilhoso, com chuvas fortes e calor igualmente forte, o que significava que meu projeto de afrescos não era viável nem sustentável, então tive que adaptar meu trabalho e minha abordagem ao ambiente e embarcar em outra aventura igualmente urbana com os mototáxis. Serigrafamos os guarda-sóis em suas estruturas mecânicas com meus desenhos de Douala. Dessa forma, as linhas e as histórias não estavam mais localizadas em um único lugar frontal, mas podiam ser navegadas segundo as necessidades dos usuários. Pensar que seu desenho está ganhando vida no mundo real é simplesmente mágico, se não um sonho de infância que se torna realidade [risos]. Como eu disse no início, cada experiência é única. Não vou mencionar a escada de uma perna só em que tive que terminar um afresco a 5 metros do chão na Bienal de Marrakesh, no Marrocos, em 2009, ou o único par de meias térmicas que tivemos que dividir com outros amigos artistas em Oslo, na Noruega, em temperaturas de -21 graus. Todas as histórias que me marcaram sempre têm um vínculo com o ambiente para o qual nem meu trabalho, nem minha pessoa pareciam adequados, no entanto, onde, por meio da ajuda mútua e da resiliência, a arte surgiu, sem que todos nós soubéssemos e, acima de tudo, para nos lembrar de que o mais rico não é o “objeto”, mas o caminho percorrido para trazê-lo à vida.
Como você vê o papel da arte na contemporaneidade?
Como um dos últimos bastiões da resistência dos sonhos, e ter a chance de criar mundos imaginários e capturar a essência do vivo e do humano é um pouco como ser o guardião da inteligência emocional. Sempre digo aos meus alunos, há muitas famílias de artistas por aí, portanto, cabe a cada um de nós encontrar a nossa ou as nossas para depois nos comprometermos com toda nossa alma naquilo em que acreditamos.
No entanto, se formos falar sobre o papel educacional que as artes poderiam desempenhar num todo, parece-me essencial permitir que pessoas de todas as idades se familiarizem com as questões de representação dos mundos e emoções específicos das sociedades humanas. Isso evitaria muita tensão e mal-entendidos no mundo, simplesmente porque acredito que uma mente livre e criativa é uma mente serena que está muito mais disposta a ouvir, receber e dar em troca.
Quais são seus projetos ou planos como artista? Há algo que você gostaria de explorar ou experimentar artisticamente em um futuro próximo?
Até o momento, tenho novas exposições planejadas, uma em jardins públicos no Oriente Médio, uma exposição em minha galeria marroquina e outra em minha galeria francesa, uma bienal, uma monografia, meus alunos. Os projetos estão aí com toda a energia, amor e ansiedade que os acompanham, o que tenho certeza é que o tempo passa, impassível e discreto e que, de qualquer forma, como dizemos no Marrocos, “o mektoub” está com cada um de nós. Em meu ‘Mektoub’ há sempre essa escrita de espaços e dentro de espaços, essa possibilidade de reconstruir mundos habitados por histórias, imagens e formas. Estou tentando criar um ambiente para o meu desenho, estou tentando criar oásis de serenidade para aqueles que passam por eles, como se todos nós fôssemos pássaros migrando em nossas imaginações e que estivéssemos encontrando um pequeno paraíso para o tempo de uma exposição e uma introspecção, em um mundo para o qual muitos humanos não têm descanso das brutalidades que outros lhes impõem.
Museu do Amanhã – Praça Mauá, 1 – Centro, Rio de Janeiro
Terça a Domingo, das 10h às 18h – Até 10 de setembro
Entrada: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia)