Como a Castro uniu o expressionismo de Kandinsky com a moda brasileira
Em sua coluna de estreia de moda da Bravo!, o jornalista Eduardo Viveiros conversa com o estilista Leandro Castro

Leandro Castro é figura rara a ganhar holofotes na história da moda brasileira. Discreto e avesso a aparecer nos aplausos dos desfiles, em contraste com os longos cabelos que lhe servem como misteriosa proteção, o paulistano surgiu nas passarelas em 2019 propondo silhuetas que entram na discussão do usável-não-usável que a moda conceitual tanto gosta se permitir.
Em paralelo, desenvolve pesquisa profunda sobre possibilidades de materiais não-convencionais, industriais e, principalmente, residuais da fabricação têxtil. Como se não bastasse, uma imensa carga acadêmica faz com que seus desfiles e coleções discutam a realidade para muitos além da roupa, produzidas em tiragens únicas e sob encomenda.
Leandro é, como ele mesmo se define, uma pessoa artista que faz moda – e sabe argumentar sobre isso. Tanto que, quando o abordei via WhatsApp para conferir se considerava seu trabalho, arte, a resposta inescapável, mezzo-literata-mezzo-mordaz, foi: “segundo o primeiro capítulo do ‘Espírito das Roupas’ escrito pela dona Gilda de Mello e Souza, sim”. Ou seja, IYKYK.
Depois de passar pelo Brasil Eco Fashion Week e pela Casa de Criadores, ele fez estreia marcante no calendário do São Paulo Fashion Week (SPFW) – com criações que trazem muito dos seus processos de experimentação e, à tiracolo, as teorias sobre as relações de linha e plano do russo Wassily Kandinsky. Passadas as euforias da passarela, ninguém melhor para reabrir os trabalhos de Bravo! nos campos culturais da moda.
Bravo! | Vou começar já sobre a nossa conversa pelo WhatsApp sobre moda e arte. Quer elaborar mais a sua resposta?
Leandro Castro Muita gente tem me feito essa pergunta, se moda é ou não arte, nos últimos meses. Até mesmo por conta da exposição que aconteceu no final do ano passado no Itaú Cultural, pensando nos artistas do vestuário, com a curadoria de Hanayrá Negreiros e Carol Barreto. Penso que moda pode ser, sim, arte. Há essa questão que você trouxe, que fazer roupa é diferente de fazer moda. É muito diferente pensar a indústria do vestuário, da confecção, que terá seus produtos industrializados e colocados no mundo. Mas acho que as pessoas podem transformar as suas vidas em obras de arte a partir das aparências. Isso é bem nietzschiano, também um pouco Patrice Bollon em “A moral da máscara”. A vida pode ser uma obra de arte total. No meu caso, tenho cada vez mais me entendido como uma pessoa artista que faz moda. Há uma diferença. O que faço, enquanto processo de criação, está muito mais próximo de um processo artístico do que necessariamente de um processo industrial. Por mais que as peças que realizo também tenham essa questão de produtos, de venda – tanto quanto o industrial quanto como a obra de arte, que também será comercializada. Dona Gilda (de Melo e Sousa) coloca que a moda tem forma, cor, textura e movimento, então está no meio de campo entre as artes do espaço e as artes do tempo pois gera essas esculturas fantasmas – você vê uma pessoa andando na rua e, de repente, ela não está mais lá e vai se desmanchando do campo visual. É o mesmo que acontece nos desfiles, por mais que se tenha um registro fotográfico e tudo mais.
O processo de criação de quem faz moda autoral está muito mais próximo das artes do que da indústria. A moda tem essa aura, sobretudo quando está nesse lugar de passarela, de experimentação. As coisas se confundem, há uma fronteira mole entre elas.

B! | O seu trabalho tem várias camadas possíveis de análise – a história do resíduo têxtil, a imagem de moda, as manualidades… Você claramente tem um pensamento muito forte por trás que não necessariamente aparece na passarela. Imagino que, no trabalho de ateliê, o processo de pensamento é muito maior que a prática.
LC | Com certeza. Fico muito mais tempo pensando, elaborando e experimentando. Várias coisas acontecem no ateliê e não são reveladas. São muitos testes de superfície têxtil, de modelagem, de formas que acabam sem destino num primeiro momento. Mas que também gera um arquivo de anos, fotográfico e de material gráfico. Vou acumulando e revisitando esse repertório, não só com referências externas mas também do próprio trabalho.
Nesta última coleção, várias coisas que apareceram são experimentações que já vinha desenvolvendo com materiais há um tempo.
Tem aquele verso do Manoel de Barros: “repetir, repetir, repetir até ficar diferente.” Ou, do mesmo autor: “fazer arte é quase pegar água com a peneira”. Tem coisas que tentamos pegar e escapam. Ideias que, na hora de materializar, não acontecem naquele momento em que é possível realizá-las. Mas permanecem, tanto na memória quanto nesses arquivos.
Tenho um processo gráfico de experimentações através da gravura, que aparecem às vezes num teaser do desfile ou num vídeo de processo de criação. Para cada coleção, para você ter uma ideia, eu geralmente realizo cerca de 800 croquis. É muita coisa. Fico dias elaborando enquanto faço a pesquisa de curadoria de resíduos têxteis. E isso tudo é bombardeado pelas leituras que faço. Antes, fazia paralelos com outros tipos de linguagem, filmes ou performances, por exemplo.
Nos últimos tempos, esse processo está cada vez mais logocêntrico. Está bem mais conceitual, no sentido verbal da ação. Então tem muito tempo de ateliê, experimentando e desenhando. O desenho tem essa questão que é produzir um simulacro que, quando tentamos trazer para a realidade, nem sempre são fiéis. Sempre há uma traição nessas traduções. Mas o processo de experimentação é bastante forte.
B! | Você não tem vontade de mostrar esse material, além do resultado final da passarela?
LC | Tenho, mas caio sempre na questão sobre como revelar tudo isso. No Itaú Cultural, junto da peça que estava lá exposta, que desfilei em 2023, houve uma vontade de fazer um paredão com esses croquis. Mas, por conta do espaço expositivo, esse material não foi revelado. Há um substrato muito grande, tenho vontade de fazer uma exposição. Já conversei com algumas galerias sobre possibilidades, tenho tentado me inscrever em projetos. Mas, geralmente, os editais que temos não contemplam ou não entendem a moda nesse lugar de cultura ou de criação artística.

B! | Antes do desfile, você comentou comigo sobre outras práticas artísticas fora do têxtil. Essa produção existe para além da moda, é paralela?
LC | Às vezes estão em diálogo, mas não necessariamente são atreladas à moda. Nesses últimos dois anos, experimentei muito a questão da gravura – linoleogravura, xilogravura, mais recentemente a gravura em metal e a fotogravura, processos que têm me interessado bastante. Algumas dessas fotogravuras eram fotoperformances que fiz quase desaparecendo no espaço. Já fiz algumas performances, inclusive. No momento da pandemia esse processo de criação de arte foi até mais forte. Tomei relação com programas de residência artística e com outros artistas, fiz instalações no Centro Cultural São Paulo junto do grupo Poéticas e Políticas da Aparência. Já expus algumas gravuras no Espaço Canteiro de Arte Contemporânea junto com o G>E (Grupo Maior que Eu) que a Karla Girotto coordena já há uma década.
Então tenho outras práticas, de fato, perenes – que às vezes dialogam com o processo da moda. Hoje, além da gravura, tenho me interessado pela instalação, as questões da videoarte, de forma mais analógica. E quando se fala em estilista fazendo gravuras, sempre se pensa que elas serão aplicadas numa superfície de roupa. Mas gosto de trabalhar com bases não-têxteis também, pensando em possibilidades que me tragam outros contatos. Às vezes as coisas acabam se chocando, se esbarrando. Mas são processos que reverberam e me interessam muito.
B! | Você sente que o seu trabalho é compreendido para além da superfície da passarela?
LC | Olha, eu tenho que fazer com que seja. Sempre tive uma grande resistência em aparecer no final do desfile – na linha dos estilistas anti-moda que acredito, como Rei Kawakubo e Martin Margiela – pois acho que o trabalho é que tem que aparecer. Mas acho que não é compreendido ainda, justamente porque falta essa comunicação de fato do processo, de mostrar o processo, sem que se caia em um lugar-comum. Ao mesmo tempo, conforme crio esse meu repertório, ele fica mais acessível para que boa parte das pessoas que estão ali consiga acompanhar.
B! Você começou a se apresentar na Brasil Eco Fashion Week em 2019, migrou para a Casa de Criadores (2020-2024) e agora passou a fazer parte do SPFW. Mas, antes de tudo, em que momento percebeu que poderia fazer o que faz? Pois, no Brasil, não temos uma linhagem formada e perene de moda realmente conceitual sendo apresentada. Como aconteceu esse encaixe?
LC | Depois que me formei na FASM e estava em outra graduação (Ciência e Tecnologia com formação em Engenharia de Produção), fiz estágio em uma fábrica de moda feminina. Em paralelo, desenvolvia peças para outros colegas estilistas e alguns figurinos. Até o momento que li “A partilha do sensível” de Jacques Rancière, que foi muito importante ali em 2019. Nesse texto, ele fala que há o sensível que é dado, que é posto – e existe a necessidade política de romper com tudo e redistribuir este sensível. Aquilo me fez desistir do contrato com a fábrica e me inscrever no Brasil Eco para, de fato, mostrar uma coleção que tivesse uma experimentação e uma linguagem de moda para além da questão estrita do comércio, pensando sobretudo no destino dos resíduos.
Lembro que também, naquela época, aconteceu no Sesc Pompeia a exposição “Levantes” do Didi-Huberman, que falava sobre a necessidade de se reencontrar. Eu me considero um contraponto da moda no final das contas, pois estou trabalhando com esses materiais de ponta de estoque, de ponta de rolo, materiais que têm defeito, manchas – e tentando transformar, segundo as palavras de Charles Baudelaire, essa lama em ouro. Tanto que a coleção que apresentei se chamava Reencantamentos. Não por acaso, pois era um momento de bastante descrença.

B! | Você fala muito sobre subjetivação da moda, da criação de moda. O que é subjetivação, para você, nesse processo?
LC | Citando Suely Rolnik, que conta que, em tupi, as palavras ninho, voz, garganta e espírito têm o mesmo som; acho que a subjetivação tem a ver com isso. Criar condições de contorno dentro de uma realidade, gerando diferenciação. No contexto da moda, há essa vontade pelos produtos, essa necessidade que é real e da qual também faço parte, fazendo a engrenagem girar simbolicamente. Mas trabalhar numa proposta autoral é gerar essa condição e tentar fazer com que esse contorno, esse meu corpo subjetivo enquanto pessoa que cria, tome uma forma. E que, quem olha uma proposição que eu realize, consiga identificar essa autoralidade.
Também há a subjetivação no sentido de que fazer moda é enviar a criação para o mundo de maneira inacabada. Pois quando uma pessoa compra uma roupa minha, quando essa peça sai do meu controle, digamos assim, ela será o que o usuário desejar. Fiz uma camisa, mas a pessoa pode usá-la como um turbante, transformá-la em uma calça, tocar fogo, fazer uma performance… não sei o que vai acontecer. É um gesto inacabado que também faz parte desse processo.
B! | Esse inacabado não te incomoda?
LC | Bom, você já deve ter reparado que eu muitas vezes faço peças de materiais bastante rígidos, que têm uma forma muito marcada, determinada. É uma maneira de controle, pois talvez me incomode um pouco. Mas também acho interessante quando as coisas saem da rigidez do meu controle. Tenho trabalhado muito com feltro residual, material parecido com que tantos outros artistas já trabalharam, como Joseph Beuys, que dão essa rigidez. Ou até mesmo as bases de alfaiataria, que são uma perpetuação das armaduras. Ao mesmo tempo, tenho tentado fazer experimentações para além desses resíduos muito duros, com tecidos que tenham maleabilidade e essa possibilidade de se desfazer no ar. É quase como transformar o sólido que vai se desmanchando.
B! | Você me faz pensar que, se a moda é arte, em comparação com outras possibilidades físicas de arte, é a única que a pessoa consegue interagir de fato. Ao contrário de um quadro ou uma escultura, a roupa demanda alguém, depende do movimento. Mesmo que a pessoa toque fogo ou enrole no gato a sua camisa.
LC | Sim, com certeza. Diz-se que a obra de arte só é arte porque ela tem uma propriedade de cultura chamada aura. Acho que, quando a roupa vai para o corpo de uma pessoa e ela consegue, como falei anteriormente, transformar a vida numa obra de arte – seja pelo gesto ou pela aparência – o corpo não será mero suporte, mas a fundação da roupa. Ela só é viva com a interação e a presença das pessoas. Lembro um pouco do que o Hélio Oiticica falava, apesar de serem contextos diferentes, sobre os Parangolés não terem sentido algo se estiverem imóveis dentro de um museu. O mesmo com os Penetráveis ou com Objetos Relacionais de Lygia Clark. Todos eles fizeram roupas, mas são artistas fazendo roupas. É uma situação diferente de um estilista fazendo moda e acreditando que aquilo é arte. O ser humano, o corpo é essencial para gerar de fato a vida dentro da roupa. Na Casa de Criadores, fiz uma apresentação no final de 2021, no Teatro Mars, em que coloquei fogo no look, também para discutir isso. Essa possibilidade de criação da propriedade de culto também é possível dentro do contexto da criação de objetos vestíveis por corpos.

B! | Aí caímos em outro assunto que queria tocar: o que é wearable art para você?
LC | De fato, consiste na criação de artefatos físicos que podem ou não ser vestidos. Geralmente nos desfiles e coleções que faço, há essas peças que podem ser vestidas ou colocadas na parede para outro tipo de relação. Penso muito no espaço entre o corpo e a roupa, em como a roupa cria essa especialidade que pode ser a partir do corpo ou não.
Há essa tradição de wearable art, de artistas de performance que fizeram arte vestível – como o Electric Dress da japonesa Atsuko Tanaka ou, no Brasil, a Gláucia Amaral, que foi uma expoente do movimento. Tenho esse local de interesse, também trabalhando com formas de tipologia mais próximas do universo do vestuário e utilizando dessas tipologias já conhecidas, que são a base do vestuário que conhecemos na contemporaneidade, para gerar formas outras que não possam ser necessariamente caracterizadas como um vestido, por exemplo. É trabalhar numa certa confusão.
A peça, que estava no Itaú Cultural, foi feita por um processo bidimensional. Ali estava vestida em um manequim, como no desfile, mas, a minha imaginação era que fosse alçada ou exposta numa parede. Ela pode estar num contexto quase pictórico. Então penso na wearable art, na arte vestível, como isso: há artefatos físicos que existem no espaço e podem ser vestidos ou não. E que não necessariamente precisam ser vestidos, mas podem.

B! | O que falta para que essa produção de vestuário feita num viés mais conceitual, mais cerebral, seja encarada como arte?
LC | São dois pontos. Primeiro, o sistema da moda precisa valorizar esse tipo de produção feito com coragem e risco. No Norte Global, por exemplo, há uma cultura que de fato assegura esse tipo de reflexão. É preciso valorizar e celebrar essas iniciativas, esses trabalhos. O segundo ponto é a existência de políticas culturais, de políticas públicas, que valorizem e incentivem essa produção de moda enquanto linguagem cultural. Em Paris, por exemplo, esses assuntos são regulados pelos órgãos de cultura. Por aqui, não há iniciativas parecidas. Estamos muito atrelados de fato à indústria do vestuário. Vale repetir: fazer moda é diferente de fazer roupa, apesar da moda também demandar da roupa, seja feita em série ou não. No geral, falta coragem.
B! | Você se considera vanguardista?
LC | Se a vanguarda for o cotidiano e o presente, olhar para a contemporaneidade, acho que estou bem dentro do presente – tentando quase ser um para-raio da realidade. Se isso for ser de vanguarda, me considero. Acho que tenho a disponibilidade de errar. O processo de criação demanda uma experimentação disponível ao erro. A moda, hoje, por conta da massificação a que assistimos – não só nela, mas nos modos de vida –, não tem tido muito espaço para que a mão apareça. Para se criar outras formas ainda não conhecidas, esse desconhecido vai eventualmente passar pelo erro. É como a ciência, os testes de laboratório. Então, se tudo isso é força de vanguarda, me considero e gostaria de ser lido como um estilista que está propondo algo que está um passo à frente.
B! | Você erra muito?
LC | Na parte da materialização, erro bastante. Mas todos esses erros que tenho acumulado durante algum tempo, também há a possibilidade de muito aprendizado. A coleção que apresentei no SPFW, realizei em uma semana e meia – então tive que ter muita assertividade. Se houvesse algum erro técnico, teria que acolhê-lo para que pudesse ser valorizado e celebrado como um ponto de importância. Hoje, no trabalho autoral, esses erros geram aprendizados.

B! | Mas dentro desse processo de experimentação têxtil e de trabalho com materiais diversos, o erro é algo muito subjetivo, não?
LC | O que é erro afinal, né? Os sapatos dessa última coleção, por exemplo, eram uma marca bastante expressiva e nítida do contato da mão com a matéria. Como a nossa sensibilidade em moda tem cada vez mais se acostumado com processos de produtos industriais que já vêm prontos e não se vê a marca da mão humana, temos que nos (re)acostumar sensivelmente com as peças.
É importante que não deixemos essa tecnologia vernacular do fazer manual ir se perdendo. Acho que as vanguardas também passam por aí, por esse resgate. E também há a higienização de tudo. No desfile, há uma peça feita de madeira, MDF cortado a laser, que foi bordada manualmente. Então há esse duplo caminho que gosto de transitar. Pegar, de repente, um tecido automobilístico que vai passar por um processo de bordado com elástico para gerar uma outra forma. É um bordado quase que errado numa superfície que não era destinada para aquele fim. Então há essa experimentação, deixar que esse erro gere outra possibilidade.
B! | Falando um pouco sobre seu último desfile, você trouxe essa figura do Kandinsky para balizar a discussão da coleção. Por que essa vontade agora?
LC | Nas últimas coleções, sempre trabalhei com a questão da inspiração pensando em como as formas existem no espaço que convencionamos chamar de natureza, como algo separado da cultural. Então fui recorrer a Kandinsky para pensar na forma, que é um assunto muito presente no meu trabalho. Nesse texto, ele fala sobre os elementos essenciais visíveis e invisíveis – e também do ponto de vista geométrico – para explicar o que é o espaço. Tenho pensado bastante na roupa primordial, sobre como seria essa roupa. E é uma pletora gigante de possibilidades – entre elas, o entrelaçamento de fios. Se olharmos formações como cascas de árvore, veremos vários fios, linhas que se entrelaçam para gerar uma superfície.
Então, pensando nessas linhas que se formam, acredito ser interessante fazer uma homenagem a esse elemento que é intermediário entre o ponto e o plano. Esse texto, que li tantas vezes na minha formação, estava na memória. Pensei que, para a estreia no SPFW, cabia bem: refletir sobre o que é espaço a partir de sobre o que é a linha. E pensando nessa linha que tem uma pluralidade de sentidos, é polissêmica: tanto a linha da costura, linha do corpo, geométrica, que nos conecta, os fios… Tem uma música gótica que gosto muito, inclusive estava na trilha, que se chama “I walk the Line”.
B! | No seu processo, você está subordinado à linha ou vice-versa?
LC | Vice-versa, com certeza. Por exemplo, fiz ali no primeiro look uma ráfia de viscose de algodão, quase um tear, pensando justamente nessa superfície primordial dessa roupa de memória atávica. O material, sobretudo o resíduo, muitas vezes fala primeiro o que ele quer – antes de eu tentar impor uma forma. Então é sempre um diálogo entre matéria, linha e plano, entre os pontos e meu gesto enquanto criador, que está manipulando as materialidades.

B! | Esse diálogo é pacífico?
LC | Nem sempre, e é bom que não seja. Muitas das vezes é até conflituoso. Pois a materialidade tem sua limitação e o gesto de criação tem o pensamento. Alterar o processo também altera a forma, nem sempre de forma pacífica. Eu faço esse exercício gráfico de investigação espacial, em croqui ou em colagem.
Quando vou para a realidade material, essa tradução trai completamente o que tinha coletado antes. Algumas matérias têm uma certa maleabilidade, até um certo charme. Mas quando vou trabalhar com resíduos de organza de seda ou até com o feltro, várias vezes vou cortando direto e tentando extrair dali a forma que imaginava ser possível – até vestir e entender que tudo saiu do controle. É como falamos, o erro que traz uma boa surpresa e é bem-vindo. Essa antevisão de projeto, ela pode ser muito assertiva mas nunca será completamente conquistada. Sempre terá algo no espaço que gera a surpresa. E isso é ótimo!