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Daiara Tukano e as histórias da criação

Artista abre sua primeira exposição individual, chamada de Amõ Numiã, na Galeria Millan

Por Artur Tavares
Atualizado em 15 fev 2023, 13h13 - Publicado em 15 fev 2023, 13h11
Foto de pintura.
Daiara Tukano - Pamuri Yukese . Fotografia - (Ana Pigosso/divulgação)
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A Galeria Millan acaba de abrir em São Paulo a exposição Amõ Numiã, primeira mostra individual da artista Daiara Tukano. Nascida em São Paulo, a indígena tem origens do povo Tukano, que habita a região do Alto Rio Negro.

Consagrada, Daiara já venceu um Prêmio Pipa por seu trabalho, que esteve exposto em mostras na Pinacoteca de São Paulo, no MASP e na Bienal. Além de Amõ Numiã, ela inicia o ano também com peças na exposição Brasil Futuro: As Formas da Democracia, inaugurada no Museu da República, em Brasília, no início deste mês.

Com um trabalho que busca colocar em imagens suas visões de Hori – as mirações causadas pela ayahuasca -, Daiara apresenta também em Amõ Numiã histórias da cosmogonia Tukano, com contos que falam sobre a criação do mundo e também sobre a importância feminina para a formação da sociedade.

Fotografia de Daiara Tukano ao lado de uma pintura dela.
Daiara Tukano . Fotografia – (Ana Pigosso/divulgação)

No tronco linguístico Tukano, “Amõ Numiã” significa algo como “primeiras mulheres”, ou então “mulheres criadoras”. Para a mostra, Daiara pintou quase 50 m² de telas com representações de Amõ Numiã. As obras gigantes não são incomuns a Daiara, que em 2020 completou a empena de 1000m² no Edifício Levy, em Belo Horizonte, tornando-se a artista indígena autora do maior mural do mundo.

Além de artista, Daiara é também ativista de direitos humanos. Nesta conversa, ela falou conosco sobre sua trajetória, contou belíssimas histórias sobre o povo Tukano e, claro, analisou a situação calamitosa que os povos originários brasileiros enfrentam há séculos. Confira:

Seus trabalhos já foram apresentados em bienais, exposições, em grandes eventos do mundo das artes, mas esta é sua primeira individual em uma galeria. Como é chegar neste espaço?
É um desafio e uma aposta ao mesmo tempo. Eu não entrei no mundo da arte para ser artista, nem sequer queria mostrar meu trabalho. Só o faço porque, em algum momento, fui colocada neste lugar por livre e espontânea vontade alheia. Se dependesse de mim, mostraria só para minha mãe. Aí ela começou a mostrar para um, para outro, até que chegou no Jaider Esbell e no Denilson Baniwa. Mas não era uma coisa que eu tinha sonhado.

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Estudei Artes Visuais na UNB, explorei muitas linguagens, fui monitora de desenho, de anatomia artística, anatomia científica, figurino e iluminação. Iniciei o mestrado em História da Arte, mas tranquei o curso para cuidar do meu filho. Então voltei, fiz mestrado em Direitos Humanos, e no meio disso tudo fui crescendo, amadurecendo e aprendendo dentro do movimento indígena. Fui correspondente da rádio Yandê, professora de artes na Secretaria de Educação do Distrito Federal.

Eu tenho uma caminhada. Estar em uma galeria não é pisar em um terreno que seja totalmente desconhecido para mim, a respeito do qual também tenho as minhas críticas. Não sou alheia, sei o que uma galeria representa. Mas, o que representa para mim pessoalmente, e principalmente, é a possibilidade de levarmos discussões adiante. Porque estar em um lugar como a Millan é a chance de levar diálogos sobre as artes indígenas e os povos indígenas, as problemáticas da colonização, é criar um debate sobre uma mudança epistemológica para outros países, para se conectar com mais parentes, com mais pensadores.

Pintura de Daiara Tukano.
(Daiara Tukano/divulgação)

Então, uma galeria como a Millan não é apenas comercial, é um espaço onde vou conseguir chegar em outros espaços para levar esse diálogo adiante, e é isso que me interessa. Porque aprendi que para colocar uma obra em um museu, você precisa trabalhar seu conteúdo. São os colecionadores que levam seu trabalho para as grandes instituições. É preciso levar esse debate adiante para que os trabalhos indígenas alcancem esses lugares onde estão as referências da história, da narrativa e da visualidade, lugares onde há lacunas da presença indígena.

Se a visualidade faz parte desse construto das dinâmicas que vivemos na sociedade, então reafirma e legitima as dinâmicas de poder como o racismo contra os povos indígenas. Arte também mata, silencia, cala e violenta, e sempre nos violentou. Por isso precisamos desses lugares, das galerias e dos grandes museus, porque são os lugares do livro da sala de aula, do material escolar, do material universitário. É um caminho necessário para fazer uma dinâmica pedagógica para com a sociedade.

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Nesse tempo todo que você passou na teoria, não teve vontade de fazer obras que sejam críticas ao que acontece no Brasil, em vez de obras que exaltam a cultura indígena?
Acho que a exaltação também é uma crítica, porque é aquilo que não foi feito pela cultura do branco. E também tem uma coisa da minha saúde mental. Como sou ativista e pesquisadora de direitos humanos, como trabalho em outros campos, debato essas questões o tempo inteiro. O espaço na arte faz parte da minha necessidade de vida. Tem artistas, como o próprio Denilson, que vão no sentido de falar dessas dores, mas a minha opção é tratar disso em outras mídias. Se chegar o momento que eu precisar, farei.

“Se a visualidade faz parte desse construto das dinâmicas que vivemos na sociedade, então reafirma e legitima as dinâmicas de poder como o racismo contra os povos indígenas. Arte também mata, silencia, cala e violenta, e sempre nos violentou. Por isso precisamos desses lugares, das galerias e dos grandes museus, porque são os lugares do livro da sala de aula, do material escolar, do material universitário”

Daiara Tukano

Nós, brancos, em um desconhecimento geral, sempre pensamos que os papeis de destaque nas organizações sociais indígenas estavam reservados aos homens, seja na figura dos caciques, dos xamãs e dos pajés. No entanto, hoje estamos vendo um enorme protagonismo indígena feminino na sociedade. Seu trabalho aqui também fala sobre as primeiras mulheres da criação. O que significa falar delas neste momento?
Isso vem da cultura do branco, e não é só desconhecimento, é misoginia, machismo e patriarcado, coisas que vêm das culturas europeias. Quando começaram as invasões dos nossos territórios, o povo que chegou era profundamente patriarcal, se recusava a falar com mulheres.

A antropóloga argentina radicada no Brasil Rita Segato fala sobre como a chegada dos colonizadores trouxe junto o patriarcado, a misoginia, a invisibilização e a negação dos espaço das mulheres nas culturas em que elas tinham um lugar de destaque maior que as mulheres europeias. É um processo de muitos séculos de negação.

Então, alguns povos têm tradições matriarcais, como a cultura dos Pataxó e dos Guarani-Kaiowá. Já a cultura Tukano é patrilinear, na qual a linearidade da herança é paterna, e isso leva a certos aspectos de uma patriarcalidade que é tradicional. Mas, em todos os povos, as mulheres são importantes.

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Foto de pintura.
Daiara Tukano – sem título (da série Mulheres) . Fotografia – (Ana Pigosso/divulgação)

Uma coisa que acho muito bonita das culturas do tronco Tukano, como os Desana, Tuyuka, Wanana, é que para nós há o Grande Avô do universo e a Grande Avó. Tudo vem de casais, tudo é masculino e feminino. O universo é feito do masculino e do feminino que se complementam e que têm igual valor.

Mas, se de dentro para fora parece que o homem tem mais importância, se o branco acha que é assim, de dentro para mais dentro ainda quem manda mesmo é a avó. É como em qualquer família. Quem manda é a dona da panela. Quem está educando as crianças é a mulher. Quem fica pagando sapo, orientando e dando conselhos pro marido é a mulher, sempre foi. E isso em todas as culturas, não tem nenhuma que seja diferente. Então, existe aquilo que assumimos para os outros, e existe a dinâmica dentro de casa. O lugar da sogra, da avó, da mãe, é de autoridade.

Claro, agora vemos uma geração do movimento indígena marcada pela presença feminina muito forte. Tivemos nossa primeira deputada indígena, agora estamos com a segunda, a terceira e a quarta, e com a primeira presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, e também nossa primeira ministra. Temos uma geração de professoras, pesquisadoras, de mulheres que estão em todas as profissões. Até porque as mulheres indígenas são a maioria no ensino superior. São mães engajadas que estão aqui para mostrar que não queremos competir com ninguém, e sim marchar lado a lado.

E isso acontece em um lugar de extrema necessidade, porque a pessoa mais difícil de tirar de casa é a mãe, porque ela está administrando todas as tretas da família, tá no fogão, tá limpando bunda dos bebês, tá cuidando do chororô das crianças, tá aguentando o marido e as fofocas da comunidade. Mas, quando a mãe sai, é porque o bicho está pegando, e isso revela esse momento de emergência. Uma emergência no sentido de levante, de uma força que vai emergindo para se mostrar para o resto da sociedade, mas também emergência no sentido de que nossos povos e nossas comunidades estão em uma situação de calamidade tão profunda que não dá para ficar parado. Nunca estivemos paradas, mas essa geração traz um pouco disso.

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Fotos de pintura. Na foto é possível ver um homem olhando para pintura exposta na parede.
Daiara Tukano – sem título (da série Mulheres) . Fotografia – (Ana Pigosso/divulgação)

E quem são essas duas mulheres retratadas por você?
Elas são as primeiras mulheres antes dos povos existirem. São as mulheres que aparecem antes de se criar o resto da humanidade. Na nossa cosmovisão, primeiro são criados dois homens, que são irmãos. Eles vagam por um tempo no mundo junto de todos os animais, mas na solidão pedem para que se crie o resto da humanidade. Esses irmãos recebem uma série de instrumentos sagrados, como as medicinas, tabaco, padu, farinha, os bancos, bastões, cocares. Logo depois aparecem duas mulheres, as irmãs mais novas deles. Ainda não é uma relação de casais.

Então, esses homens começam a reduzir as mulheres porque são mais velhos. Elas têm que andar atrás deles, não podem mexer em nada. Mas essas duas primeiras mulheres acabam tocando nos instrumentos que os homens ganharam, e acabam engravidando de uma maneira misteriosa – elas não têm vagina, são corpos espirituais. Da gestação nascem seres que são muito importantes para nós, entre elas a própria ayahuasca.

Detalhe
(Ana Pigosso/divulgação)

No momento do parto, antes do bebê, elas dão a luz a todos os pássaros coloridos, como as araras e os japus; então, nascem as cobras peçonhentas, e por fim o bebê, que é feito de cipó. Quando as mulheres começam a pintar a criança, todos os seres começam a ter mirações, passam a cantar e falar línguas diferentes. É isso que torna todos os povos diferentes. Então nascem os Tukanos e os Desana, e eles param de ser irmãos e passam a se tratar como primos.

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É a partir da ayahuasca que nascem as mirações, o encanto, o medo, o mistério, a sabedoria, a origem de todo o nosso conhecimento, e a partir daí nascem os povos diferentes.

Então a ayahuasca não é apenas uma medicina para os Tukano, e sim a fonte da vida?
A medicina é uma das qualidades da ayahuasca, mas ela é também a fonte de conhecimento de todo nosso povo.

“É a partir da ayahuasca que nascem as mirações, o encanto, o medo, o mistério, a sabedoria, a origem de todo o nosso conhecimento, e a partir daí nascem os povos diferentes”

Daiara Tukano

Você tocou em questões sobre racismo e violência contra indígenas, então quero saber como você vê o futuro? Estamos vendo tentativas de melhora, de não destruição…
De maneira incipiente. Não sou nem um pouco positiva ou iludida. Nós estamos no momento da sexta maior extinção em massa no planeta. Para isso, basta comparar os relatórios de biodiversidade da Organização das Nações Unidas. Estamos vivendo mudanças climáticas e ambientais que são inegáveis e, de certa forma, irreversíveis, porque a biodiversidade depende da manutenção de ciclos do planeta. Neste momento, a presença humana se tornou o agente de todas essas alterações.

A única coisa que existe no mundo, que é globalizada de fato, é a sujeira produzida por nós. É o lixo, o veneno e a poluição. Não existe mais nada que seja global de fato.

80% da vida no planeta resiste nos territórios indígenas porque nossas culturas são de um diálogo e respeito com esses ciclos de vida, apenas por isso. Veja que situação calamitosa estamos. Para mim, muitas vezes parece como o canto do cisne. Procuramos ter palavras de esperança quando o bicho está pegando… Essa semana mesmo vimos três placas tectônicas balançando e matando milhares de pessoas na Turquia e na Síria.

“Parar de derrubar floresta já não adianta de nada. Precisamos plantar. E diminuir drasticamente a produção de plástico. Fico chocada, o povo é viciado em plástico. Estamos com microplástico no sangue, no leite, é nojento. O plástico foi inventado no século 20, e, em cem anos, demos um jeito de intoxicar absolutamente toda a vida com microplástico”

Essas coisas vão continuar acontecendo. Tem muitas vidas que ainda vão se perder nas crises sanitárias que são provocadas pela poluição e pelo desequilíbrio ambiental. Virão mais doenças também. Todos os povos que eu conheço falam disso. A crise da covid não era novidade para nós. Inclusive, os povos indígenas das Américas sabem o que é ter uma crise sanitária, o que é ter uma pandemia real, ainda que tenha há muitos anos. Temos que levar em consideração que durante o primeiro século de contato com a invasão europeia perdemos mais de 100 milhões de pessoas no nosso continente. O maior genocídio da humanidade aconteceu neste chão que hoje é conhecido como América. Somos a população originária de um continente mais dizimada. Você vai para a África e tem um monte de africanos, vai para a Europa e tem um monte de europeus, na Ásia, um monte de asiáticos, mas no continente americano você vê um monte de estrangeiros. Isso é muito triste.

O que vejo é a continuidade desse extermínio. Mas, o que a experiência dos últimos 500 anos traz é a força e a resiliência das culturas indígenas. Acredito que, se precisarmos atravessar mais uma vez esses fins de mundo, porque para nós o mundo já acabou outras vezes, a tendência é resistir até o final. Agora, se vai ser no estilo Mad Max ou Waterworld, como será o pós-apocalipse, eu não sei.

Mas, tenho certeza que as gerações que estão por vir enfrentarão uma crise muito pior da que estamos enfrentando hoje. O desafio para nós, que somos adultos hoje, é ter noção do impacto dos nossos atos para as gerações que estão por vir, não apenas os seres humanos, mas todos os sistemas de vida do planeta.

Existe alguma coisa que seja mais urgente nessa situação de calamidade geral, como interromper a derrubada a floresta, parar com o genocídio, cessar o preconceito? Qual é o primeiro passo?
Tudo acontece ao mesmo tempo e anda junto, mas parar de derrubar floresta já não adianta de nada. Precisamos plantar. E diminuir drasticamente a produção de plástico. Fico chocada, o povo é viciado em plástico. Estamos com microplástico no sangue, no leite, é nojento. O plástico foi inventado no século 20, e, em cem anos, demos um jeito de intoxicar absolutamente toda a vida com microplástico.

“A única coisa que existe no mundo, que é globalizada de fato, é a sujeira produzida por nós. É o lixo, o veneno e a poluição. Não existe mais nada que seja global de fato”

Daiara Tukano
Fotografia de pintura.
Daiara Tukano – série Bo’éda (arco-íris) . Fotografia – (Ana Pigosso/divulgação)

E agora, no século 21, serão os metais pesados que fazem peças de celular, que as pessoas trocam anualmente…
Já está sendo. Os Yanomami estão intoxicados por mercúrio, os povos isolados também. E você entra na Shopee, no supermercado ou na padaria e está tudo embalado na embalagem da embalagem da embalagem. Tem gente vendendo banana enrolada no plástico. Essa imbecilidade, essa burrice… não tenho esperança de que vamos sobreviver à nossa burrice.

Mais difícil ainda é aprendermos a produzir o que consumimos, já que esse consumo desenfreado acontece porque as pessoas não fazem ideia do trabalho que dá para criar o alimento que cada um come. As pessoas não sabem o trabalho que é plantar uma mandioca, que é fazer um pão.

Na hora que der o terremoto, acabar o wi-fi, acabar a possibilidade de ter energia elétrica, porque o magnetismo da Terra também está sendo afetado pelas mudanças de temperatura… se ficar quente demais acabou o celular, meu bem! Ou as pessoas vão para o subsolo ficar que nem vampiro, fugindo dessas radiações insuportáveis, ou então quem estiver aqui fora vai ter que se virar como dar.

Vamos precisar reaprender a andar na Terra, e os povos indígenas mostram essa adaptabilidade, porque temos sociedades que estão plantando sua mandioca com um iPhone na mão, produzindo seu vídeo, puxando papo e estudando, mas sabendo o que é pescar um peixe, preparar seu alimento.

O próprio Aílton Krenak questiona o que vamos comer quando acabar o dinheiro. Não se come dinheiro…
Uma coisa que aprendi é que não podemos sentir pena. Não tenho pena da humanidade, nem esperança nela. O que tiver que acontecer, vai acontecer. Mas, espero que as outras espécies vivas não tenham que pagar tanto pelas nossas ações. Acho que a vida vai continuar como vida.

E você acredita que esse governo progressista será mais generoso com os povos indígenas? Porque da última vez não foi, tivemos, por exemplo, Belo Monte…
Generoso nunca foi, mas se for um pouco mais justo já está bom. Essa sociedade não é generosa com ninguém, a não ser com os poucos oligarcas privilegiados que sempre estão ali no poder. Mas, tem uma dimensão que é necessária, a de se educar para reconhecer que o outro existe, e então conhecê-lo melhor, para que ele seja cada vez menos outro.

Daiara Tukano: Amõ Numiã

Galeria Millan
Rua Fradique Coutinho, 1416 – Vila Madalena, São Paulo
Até 11 de março
Segunda a sexta, das 10h às 19h; Sábado, das 11h às 15h

 

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