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Explodindo na paralela

Marina Dalgalarrondo apresenta “Blast pressure”, instalação que une moda, arte e crítica contemporânea na galeria Yehudi Hollander-Papi

Por Eduardo Viveiros
Atualizado em 16 out 2025, 18h22 - Publicado em 15 out 2025, 09h09
MARINA-DALGALARRONDO
imagens de moda da Ão (divulgação/divulgação)
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Marina Dalgalarrondo está bem por aí. Para quem é da moda, é a pessoa criativa por trás da Ão: uma das marcas com pensamento mais instigante que surgiu na última década no Brasil. Para quem é da arte, ela tem dado seu nome em exposições coletivas, construções de figurinos para performances e abre instalação inédita na galeria Yehudi Hollander-Papi, em São Paulo, a partir de 4 de outubro. Para a própria Marina, essa aventurança entre os dois universos soa muito natural. Com formação pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, a paulista migrou o seu pensamento artístico para o vestuário, sem anulá-lo. Entre escolher produzir um trabalho na arte que fale sobre moda ou um trabalho de moda que fale sobre arte, ela escolheu ambos. Sua nova obra, Blast pressure, dá seguimento a um trabalho com manequins e vestuário que surgiu em abril, em uma instalação relâmpago que durou apenas uma noite, em paralelo à última SP-Arte. E reúne muito do que Marina exercita na moda com um pensamento único, mesclando ironia contemporânea, reflexões sobre a convivência humana e pesquisas sobre vestuários históricos.

MARINA-DALGALARRONDO
Retrato de Marina (divulgação/divulgação)

Bravo! | Você está prestes a abrir sua segunda exposição de 2025. Como aconteceu essa movimentação?

Marina Dalgalarrondo Para além da moda, eu tenho uma convivência forte no meio das artes visuais, muitos amigos que são artistas, galerias, curadores. Daí que sou muito próxima do Miguel Nassif e do Bruno Moutinho, donos desse ateliê que fica no Bom Retiro. Eles criaram esse espaço que é bastante underground, uma garagem que é um cubo branco, a Nassif Moutinho. Chamam artistas para individuais com trabalhos únicos ali dentro e me convidaram. Eu já vinha com um desejo de montar uma performance.

B! | Você já fez performance antes, não?

MD | Já, com uma bodybuilder, como parte da Esfíngico Frontal, uma mostra coletiva organizada pelo Germano Dushá na Mendes Wood DM. Isso foi em 2023 e a performance se chamava Garment Activation. Garment era a luva de metal e pelos que fazia esse misto de períodos históricos — pensando em vestuário, mas também referenciando um objeto de defesa, com unhas pontiagudas, e o vestuário de uniforme de luta. Era uma mistura de várias coisas. A partir desse momento percebi que gosto de pensar em performance, pensar a roupa enquanto elemento visual e artístico. Entender como vestir esse corpo, como esse corpo apresenta essa roupa no espaço e o que ela traz de significados. Pois são mil escolhas que você precisa fazer no momento que escolhe vestir um performer.

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Garment (2023) (divulgação/divulgação)

B! | Essa ideia da luta ressurgiu então nessa exposição que aconteceu em abril, há uma ligação aí?

MD |  Eu tinha essa ideia de fazer uma performance com duas minas lutando boxe com um vestuário que não fosse de uniforme. Era um desejo de criar uma espécie de cena estática com personagens. Ao passo que comecei a entender a complexidade de fazer uma performance real com o vestuário que queria colocar, cheguei na ideia dos manequins. Essa foi a base da Touch, que aconteceu em abril, na Nassif Moutinho, e vai se desdobrar na exposição que abre em outubro na Yehudi Hollander-Papi. Os manequins me permitem conseguir essa performance estática que idealizava. Na Touch, eram duas garotas lutando, uma de frente para a outra, cercada por quatro caixas de som que formavam um semioctógono de luta. E elas, dependendo do ângulo que você olhava ou fotografava, pareciam muito com performers reais — tanto que várias pessoas que só viram a montagem por fotos acharam que era uma performance de verdade.

B! | As roupas dos manequins davam toda uma camada a mais. Conta mais sobre isso?

MD |  Com os manequins, acabei conseguindo essa imagem, esse acontecimento ficcional com os dois personagens que estavam caracterizados de forma muito ampla e híbrida: é essa mistura de vestuário ordinário, um jeans muito bagaceiro, com essa coisa um pouco mais de objeto de arte. E o trabalho com texto também: tinha essa jaqueta de couro com FASHION escrito nas costas. Sou apaixonada por logotipos e por escrita, ver como comunica algo sobre aquele objeto que vai além do objeto. “Fashion”, por exemplo, é a marca mais genérica que existe no mundo do vestuário: não quer dizer nada, mas, ao mesmo tempo, está em todo lugar. Ando muito de metrô e sempre tem gente com uma mochila escrito “fashion”. Aquela jaqueta da Touch, inclusive, vem de uma mulher que vi no metrô com uma assim. O metrô, para mim, é um lugar muito forte de pesquisa. Normalmente é um momento em que estou ouvindo música e observando o que está acontecendo. Tenho um olhar estático dentro dessa cena, acabo criando uma ideia de composição — a disposição dos corpos no espaço, um casaco de couro, uma bolsa amarela, um logotipo… E fico pensando o quanto é cultural, do período que a gente vive e consome, as cores que estão sendo usadas, o espaço que essa pessoas estão habitando. Até mesmo na fricção entre os corpos, essa ideia de uma composição aleatória de corpos, volumes e textura. Acho isso tudo muito interessante como pesquisa.

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MARINA-DALGALARRONDO
Touch, 2024 (divulgação/divulgação)
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Ão, inverno 2025 (divulgação/divulgação)

B! | É um retrato do espaço-tempo.

MD |  Exato. E a escolha das roupas no cotidiano comunica muito, né?

B! | Lembro que, no dia da abertura da Touch, você disse que queria fazer uma coisa bem camp naquela montagem.

MD |  Acho que há uma vibe meio camp porque tinha um exagero na composição dessas duas manequins e na escolha das peças, os saltos quebrados dos sapatos, as duas minas com cabelo de perucas compridas, uma delas com um volume extra na bunda, a expressão NO FEAR bordada em vermelho. A carga do camp fica maior por causa da energia um pouco de club, de uma certa sexualidade. Tem esse exagero de imagem que pode ser também um pouco kitsch e que adoro experimentar nesses trabalhos de arte. É um caminho de vestuário, digamos, ordinário, que não é exatamente o que experimento na Ão. Ali a pesquisa é de produto, mais sofisticada no acabamento, na construção, na modelagem. Ela é direcionada para um público que, querendo ou não, é mais intelectualizado. Dentro do trabalho de arte, tenho mais liberdade para experimentar esse lado camp, esse ordinário.

B! | Você acha que esse camp vem dessa observação do cotidiano, das cenas do metro? Ele vem dali ou está ali e você traduz?

MD |  Acho que é natural que venha da minha observação diária das pessoas na rua. É um exercício que faço há muito tempo, me fazer atenta ao que elas estão vestindo. Tenho muito interesse em personagem, em pessoas, reflito sobre a existência delas. Um dos trabalhos que vou apresentar na Yehudi Hollander-Papi se chama Girl with diagonal torso e vem dessa observação. Um dia, pelo Centro de São Paulo, encontrei uma menina que caminhava com uma bolsa de um lado e tinha alguma questão de coluna, talvez uma escoliose muito forte. Ela era de fato diagonalizada. Fiquei pensando como essa existência, além de difícil, é impressionante. Porque a visão dela do mundo, de tudo, é realmente na diagonal. Então o quão interessante é a experiência de mundo desse corpo, sabe? Essas existências únicas me interessam muito. Além, óbvio, de toda uma questão estética de um tempo. Da curiosidade de entender por que tal pessoa está vestindo uma roupa. Em outro momento, vi no metrô um cara com uma camiseta escrito “influencer” — e era um homem normal, trabalhador, com seus 50 anos. Isso me coloca para pensar o que é, para essa pessoa, essa estampa? Ele realmente trabalhou essa ironia ou foi uma escolha casual de uma camiseta que estava à mão? Gosto das sutilezas dos detalhes.

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B! | Essa história toda de observação vai parar no seu Instagram pessoal, né? Tem ali uma estética muito própria que é claramente sem esforço, do ordinário do dia a dia, que gosto muito. Quase uma obra em si.

MD |  Uso muito o Instagram como parte do processo de criação. Vejo essas figuras na rua e jogo no feed, que se transforma no meu board. É uma coisa muito natural. Tem essa foto que eu adoro, que faz parte da pesquisa do próprio trabalho novo: esse cara com chapéu de pelo, a textura do cabelo branco, os óculos.

B! | Como isso tudo foi parar na obra?

MD |  Tudo, tanto em termos de cor quanto em linhas, modelagem, você percebe traduzido no que estou fazendo. É sobre capturar essa composição muito interessante. Gosto muito de composição. Há um pensamento escultórico na construção desses objetos, dos manequins e das peças de roupa. E um pensamento de equilíbrio de cor, de volume, que é um pensamento de fato mais formal de escultura. Especialmente se você isolar o trabalho conceitual que está por trás daquela composição e pensar exclusivamente em termos de imagem, de cabeça, corpo e pele, como isso entra como modelagem escultórica.

B! | O Touch teve uma repercussão interessante, como uma mostra solo pela primeira vez?

MD |  Teve, para o bem e para o mal. Acho que teve quem odiou e quem gostou, assim como quem olhou e pensou que aquilo era moda, não arte. Para mim, tanto faz a categoria que a pessoa coloque. O importante é que comunique algo. Adoro quando odeiam.

B! | Como é a criação da roupa para esses trabalhos de arte?

MD |  Eu tenho usado muitas peças prontas e construídas. E tem a questão do tecido, que é essa matéria-prima infinita. As possibilidades são tão amplas, de cintilância, transparência, rigidez, de construção mesmo. Sofro muito fazendo esses trabalhos porque eles têm essa amplitude de alternativas. Às vezes, paro e fico olhando por horas. Posso fazer qualquer escolha — e qualquer modificação que fizer nesse tecido posso comprometer todo o processo e corromper o que estava pensando antes. Se pegar essa forma que estou construindo e pintar esse tecido de branco, não tem volta. Ou posso pintar de marrom para voltar à cor original, mas não vai ficar do mesmo jeito. É preciso uma certa impulsividade na hora de colocar a mão em um trabalho, se não eu travo e fico com receito de perder o que já construí. Óbvio que me arrependo muito, às vezes. Ou percebo que chego em um resultado que nunca pensaria se não fosse no impulso. Isso se apresenta muito no resultado final, com uma espécie de precariedade que eu gosto. Como na Touch, com os saltos quebrados, a cola aparecendo, os sapatos descascados. Não é um trabalho polido, um trabalho de arte que tem uma finalização sofisticada.

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B! | Que é diferente do seu trabalho na Ão, como estilista.

MD |  Na Ão, eu faço questão de que a roupa esteja com o melhor acabamento possível. Pois ela é um produto e quero vê-lo no seu melhor nível de excelência. Agora, no trabalho de arte… sinceramente não me importo se vou vender ou não. Claro que vender é legal, mas não me sinto muito nesse lugar. Tenho encontrado no trabalho de arte um escape muito rico de criação, de liberdade. Uma euforia, assim. E que é, ao mesmo tempo, uma desgraça — pois, como falei, eu sofro. Sou uma pessoa que sofre.

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Imagens de moda da Ão (divulgação/divulgação)

B! | Você tinha mais espaço para experimentar na Ão, no começo. Esse escape para a arte aumentou à medida que a criação de moda se solidificou como business?

MD |  Totalmente. Eu tenho uma trajetória que começa com figurino, depois estudei artes visuais e desenvolvi trabalhos de arte no paralelo. Daí, muito nova, me vi nessa berlinda de ter que decidir se faria um trabalho na arte que falasse sobre moda ou um trabalho de moda que falasse sobre arte. Então, no começo da Ão, fiz a escolha de construir uma marca que poderia ter uma característica mais artística na apresentação, nas peças e na maneira como nós comunicamos tudo. Construí esse espaço em que comunico roupa por um viés mais artístico, um pouco mais conceitual. Mas é claro que batemos de frente com um mercado consumidor que é, na sua grande maioria, conservador. E onde é preciso atender a determinadas demandas, até mesmo de corpo. Há um limite do quão doido seu trabalho pode ser. Claro que você pode ser ultraexperimental na moda, mas não vai conseguir vender aquilo ao ponto de sustentar um negócio. Funciona como imagem, como conceito. Agora, estou numa fase muito madura de vida em que a Ão entendeu que tem uma linguagem artística mas que também sabe ser comercial, com esses dois lugares nos seus devidos equilíbrios.

B! | E isso abre espaço para explorar esse outro lado?

MD |  Mais do que isso, é uma necessidade. É um lado que foi sendo tomado pelo dia a dia da marca. Senti que, como criadora, precisava fazer coisas mais experimentais. E nem acho tão maluco o resultado, nem acho tão estranho. A verdade é que, para mim, é tudo belo. Vejo muita beleza no que estou construindo. Comecei assim, em doses homeopáticas, a desenvolver trabalhos de arte que foram quase sempre comissionados. Como conheço muita gente do meio da arte, começaram a olhar para a Ão e pensar que dali poderia ser um trabalho interessante de arte. Nesse momento comecei a ser chamada para fazer trabalhos comissionados.

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Máximo Desempenho Alta Performance, 2020 (divulgação/divulgação)
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B! | Qual foi o primeiro?

MD |  Foi na Farsa, uma exposição coletiva curada pela Marta Mestre no Sesc Pompeia. A ideia era exatamente fazer uma performance, mas que acabou se inviabilizando por conta da pandemia, em 2020. Então fiz esse vídeo em 3D que tinha uma questão com o vestuário e com esforço físico: era uma figura correndo em uma esteira usando um vestuário que imitava um corpo amorfo. Esse foi o primeiro comissionado. Depois, fiz para a Jaqueline Martins, na Mendes Wood DM, na Quadra e essa individual na Nassif Moutinho.

B! | Teve também a exposição no espaço do Pivô, não?

MD |  Sim, no final do ano passado, quando a Ão montou uma loja pop-up no térreo do Pivô. Fizemos essa coletiva com a Triple Frontera, um projeto de artistas e designers da Argentina, junto com o Bruno Mendonça, chamada As Xerox dos dólares ficaram ótimas. Também participei da exposição, mas com trabalhos que já estavam prontos.

B! | Você se autocomissionou.

MD |  Tipo isso. Claro que, eventualmente, também rolam trabalhos independentes para outros projetos que não são comissionados. Fiz uma exposição curada pelo Gustavo Torres, que também é artista. Ali mostrei essa série de objetos que chamo de Otherbodies: partem de uma ideia de pegar essa estrutura de crinolina e distorcê-la, criar outros volumes, trazer cores e pensar no que vai por dentro da roupa. Esse foi um trabalho mais formal.

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Otherbodies, 2024 (divulgação/divulgação)

B! | Você prefere trabalhar comissionada?

MD |  Como arte não é meu ofício integral, não é como se um curador pudesse visitar meu ateliê para ver os trabalhos já prontos. E gosto de trabalhar em projetos, pensar no site specific. É legal olhar o espaço e entender o que pode ser interessante para aquele lugar dentro da linguagem que estou desenvolvendo.

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B! | Como foi o convite para a exposição na Yehudi Hollander-Papi?

MD |  Sofia e Matheus, donos da galeria, viram a Touch e pensaram que faria sentido me chamar para um projeto especial. Me convidaram há três meses e me ofereceram o mezanino da galeria, em paralelo à exposição da Stephanie Lucchese, pintora que vai ocupar o espaço de baixo.

B! | E deram liberdade total?

MD |  Sim. Gostaram muito da ousadia da Touch e queriam algo assim, mais conceitual, até mais… estranho. Essa coisa da estranheza é algo que me persegue um pouco, até mesmo por conta do que desenvolvemos na Ão. A marca tem essa ideia do weird sexiness e o que me interessa muito, aquela imagem de moda que não é óbvia, não é dada. Que você não consegue localizar exatamente no espaço-tempo, sabe? Você vê essa figura, essa roupa, e não sabe dizer muito bem qual é a natureza daquilo. Eu vou dando pequenos indícios de localização, de temporalidade, mas a possibilidade é tão ampla. Mas voltando: sim, me deram liberdade para pensar nesse projeto, então me isolei um tempo para pensar e chegar nessa proposta.

B! | Conta mais sobre ela?

MD |  É algo que tem feito sentido para mim ultimamente. Quando estava fazendo a Touch, eu precisava montar e desmontar os manequins o tempo todo — testando posições, colocando e tirando roupas. E eles são pesados, é um trabalho bem braçal. Nesse processo, quando eu tirava uma perna ou um braço, restava aquele objeto que já era interessante, isoladamente. Vem uma ideia de fragmentação do corpo. Pense no manequim inteiro, vestido — ele tem uma luva, um casaco, uma bota, um cabelo etc. No momento que tiro um braço, fica só uma manga e uma bolsa. E esse elemento pode estar associado com várias outras coisas. Esse isolamento me interessa muito. Parece um algo mais concentrado. E, para mim, por trabalhar com modelagem de roupas o tempo todo, é muito natural pensar em somente uma perna — e visualizar como ela funcionaria em três dimensões, em uma roupa. Então já tenho um certo olhar treinado para pensar nesses membros à parte. E eles carregam uma espacialidade interessante.

B! | É uma ideia de espalhar um corpo enquanto foca nesses pedaços?

MD |  É como se pude explodir esse corpo. Daí veio a ideia do Blast Pressure, que é o nome da exposição. Uma propagação de uma onda de pressão, a partir de uma explosão, que vem antes do estilhaço, antes da destruição. É como uma metáfora para falar sobre interrelações de corpos, objetos, meios de transporte, arquitetura, o quanto tudo está sempre na iminência de se chocar ou se atravessar. A Touch já tinha essa relação da iminência do impacto, aquele soco que ficava congelado a um centímetro de tocar. Talvez eu esteja buscando esse impacto, algo que me tira do ordinário, de quando você é arrebatado por algo. E eu tenho uma certa intensidade em tudo o que faço, então acho que faz parte um pouco da minha natureza, essa busca. Coloco muita força para cortar coisas, por exemplo, falo de maneira muito expressiva…

B! | Uma intensidade que não chega a ser agressiva.

MD |  Não é uma agressividade, é uma força mesmo. Uma impulsividade, enfim. Então, pensando na ideia da Blast Pressure, comecei a pensar nesse estilhaço, nessa pós-pressão e o que isola essas partes. Tem esse grupo de manequins que se misturam, mas, ao mesmo tempo, têm partes faltando. Há uma relação com uma ideia de performance estática por conta do próprio movimento paralisado, ao mesmo tempo em que vem também uma espécie de composição mais formal — um pensamento de cores, volumes e texturas, com as indumentárias que construo neles. Tem a questão de um vestuário histórico, meio híbrido, meio ficcional. Por exemplo: um sapato com dois saltos que é uma esquisitice visual — mas tem inspiração num sapato medieval que era usado para andar na lama.

B! | Além dessa fragmentação física, essa montagem me remete a um viés comportamental também. Convivemos hoje com essa ideia de moda, de cultura, de personalidade online, em que é tudo muito fragmentado. Tudo pode ser uma pessoa só, mesmo que não esteja em harmonia. Faz sentido?

MD |  Essa vida de rede social, a forma como a gente se comunica, a rapidez que não se absorve as informações… tem a ver. Pensa-se muito nisso, o quanto nosso inconsciente captura de fato tudo isso e como transformamos na nossa maneira de estar no mundo. Acho isso muito esquizofrênico. Eu mesma uso muita rede social para pesquisar e me distrair. E vejo tudo ao mesmo tempo, de um vídeo supertécnico de modelagem ao meme mais idiota — tudo está ali, separado por fração de segundos. E acho que tem a ver com o que eu já faço: a Ão já tem uma linguagem que é uma colagem de coisas, esse conceito de vestuário histórico com alfaiataria contemporânea, a distorção de silhueta, fazer sportswear com tecido de alfaiaria e roupa de alfaiataria com tecido de sportswear. Tudo está muito associado com como consumimos imagem e informação hoje em dia.

B! | É tudo descompartimentalizado.

MD |  Tudo vira, de fato, fragmentos jogados no pedaço. A narrativa que você constrói com esses fragmentos é da sua responsabilidade.

B! | E isso se reflete nessa sua remontagem de manequins. Você pode trocar uma perna com a outra, mas não necessariamente isso vai ser fácil ou parecer menos desconjuntado. É como uma reconexão dessa personalidade frenética.

MD |  Nesse trabalho específico, eu queria trabalhar com esse desenho de composição. Pensando em três corpos que seriam o epicentro dessa explosão, como eles estariam posicionados? Aí é jogar o braço para trás, construir esse desenho de movimento dessas três pessoas, experimentar. É esse pensamento de movimento congelado.

B! | É sua versão contemporânea de uma escultura de mármore?

MD |  Muito mais fácil do que mármore, né? Mas também tem a sua dificuldade. E é uma coisa nova para mim, é o segundo trabalho que faço com manequins. Mas tenho grandes inspirações de artistas que já fizeram isso e que sempre olhei com essa visão de, nossa, é muito próximo de um corpo. Dá até uma certa aflição, pois acabam carregando uma imagem muito similar. E sair carregando eles pela sala, manipulando, como se fosse uma pessoa. Fica um sentimento meio de filme de terror.

B! | Você não construiu as roupas?

MD |  Em parte. Há um trabalho forte, mas são todas peças compradas e customizadas. Para além das peças de vestuário, estou olhando muito também para o que essas partes isoladas poderiam carregar consigo. Um braço, que tem uma estrutura de manga renascentista, vai ter uma rosa de metal nas mãos. Ela faz referência à alemã Isa Genzken, que é a minha artista favorita. A admiro infinitamente pela capacidade de transformação do seu trabalho, a reconfiguração que foi fazendo durante a carreira. Ela tem trabalhos que são superminimalistas e cartesianos enquanto, ao mesmo tempo, tem esses manequins, que chama de actors. É tudo tão distinto, mas faz tanto sentido que tenha sido feito pela mesma pessoa. Isa é, de fato, a maior inspiração para essa minha construção de trabalho com manequins. E ela tem esse trabalho que é uma rosa gigantesca, numa escala absurda, daí a referência. Penso muito sobre isso: como a mesma artista que fez essa rosa imensa faz um manequim que é superesquisito? Esse braço vai se chamar Girl with diagonal torso, thinking about Isa Genzken. Os nomes dos trabalhos são muito importantes, dão uma camada de significado como se fosse um mapa.

B! | O trabalho que você fez com a Regina Parra, na performance e exposição Pagã, em 2023, entra na sua lista de obras?

MD |  Aquele foi um trabalho de figurino por encomenda. Faço muito isso, desenvolver figurinos para artistas de performance. Agora estou trabalhando com o Davi Pontes e com a Pode. Já tinha trabalhado com o Davi para a performance que ele fez no Panorama do MAM-SP, em 2024; agora vai ser para um filme que devemos filmar no final do ano. É um processo bem diferente, pois o artista entra com uma demanda determinada. Assumo que quem me convida para trabalhos assim já espera que eu tenha um dedo na criação, claro. Com o Pagã, tive muita liberdade, Regina é muito generosa. Ela me explicou tudo sobre o conceito do trabalho, sobre as performances, me deixou pensar nessa ideia dos figurinos da Electra e da Minotaura e topou tudo o que propus. Imagina a felicidade? Ela me deu esse palco, mas foi uma cocriação — tanto que o figurino hoje faz parte do acervo dela.

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Vistas da performance Pagã, de Regina Parra, 2023 (divulgação/divulgação)

B! | Você gosta de fazer figurinos?

MD |  Gosto bastante. Comecei fazendo isso, né? O figurino vem com essa demanda inicial para você trabalhar em cima. E é preciso entender se ele deve ter uma porrada, uma presença, como foi no caso da Regina — ou se é o caso de ser algo neutro.

B! | Diria que o seu trabalho como figurinista é algo estanque em relação ao seu trabalho visual?

MD |  São histórias separadas, entendo esse trabalho de arte como algo totalmente autoral, que parte de um conceito que já estou exercitando. O figurino vem e vai com uma camada do trabalho de quem está encomendando, da pesquisa daquela pessoa. Mas as coisas se misturam também, ainda mais por ter uma marca de roupa com tanta identidade. Quando me convidam, costumam se basear em algo que já fiz no meu trabalho de arte ou no trabalho com a Ão. No ano passado, fiz um figurino para o Balé da Cidade. O Luis Garay me chamou para o espetáculo Pensamento cintilante. Ele já conhecia a Ão, mas tinha uma ideia que não tinha relação com a marca: era um desejo de fazer uma pesquisa sobre salas de ensaio, sobre o que os próprios bailarinos levam para esse ambiente e como transformar isso em algo para o palco. Eu fiquei muito orgulhosa do resultado, parece um trabalho simples mas tem mil camadas que só quem trabalha com figurino e quem entende de roupa, de construção de imagem, percebe o equilíbrio.

B! | Blast Pressure é o seu maior trabalho até agora. Foi uma evolução deliberada?

MD |  Não tinha pensado nisso, mas é — fui crescendo em escala, até meio que sem querer. Sinto que agora é o momento de fazer um trabalho maior, ainda mais com toda a liberdade da galeria, tendo uma sala só minha. Foi um processo intenso em pouco tempo, fazendo uma jornada dupla com o meu expediente como estilista. Mas percebi que faria sentido um trabalho maior e de impacto. Acho que é uma obra que gera conversa, tem uma imagem que é, ao mesmo tempo, estranha e sedutora. Quero mostrar que isso também faz parte do que faço, já que, em geral, as pessoas acabam me conhecendo só como estilista da Ão, que é uma marca com mais projeção. Mas adoro poder experimentar na arte.

B! | Você já se acha uma artista resolvida?

MD |  Acho, sim. Já fiquei muito relutante com esse nome, me definir como artista. O meu ofício artístico não é constante, não é diário — e eu entendo que o trabalho de um artista deva ser constante. Ao mesmo tempo, acho que é possível desenvolver um corpo de trabalho que pode ser mais espaçado, que eventualmente eu possa ficar anos sem fazer um trabalho de arte. Ser artista também é uma forma de absorver a coisas do mundo, interpretar e devolvê-las de alguma forma. Me divirto fazendo assim, é algo prazeroso, olhar e encontrar significados, deslocá-las, estilhaçá-las, nomeá-las. Isso me faz entender um pouco melhor a minha existência na sociedade. Gosto de poder olhar para diferente perspectivas de existência. Me irrita existir numa rotina ordinária.

B! | Mesmo apesar desse ordinário te inspirar?

MD |  Talvez eu esteja buscando significado no ordinário para que ele possa fazer sentido para mim.

B! | É uma terapia?

MD |  É uma terapia bem confusa, não sei se ela soluciona muito. E terapia nem é para solucionar, na verdade, né? Mas existe uma instabilidade no trabalho criativo que é emocional, que vem um de um lugar de não saber onde está minha referência. A gente se sente mais amparado, mais seguro, quando vê que alguém já fez algo parecido, ou se percebe pertencente a um meio, a uma linguagem. Essa necessidade de identificação é algo que dá uma certa segurança. No momento em que você se coloca num lugar de vulnerabilidade, de não saber muito bem o que está fazendo, de querer experimentar algo que talvez as pessoas não entendam — seja em roupa, foto ou trabalho de arte, fazer algo que eu sei que é feio, mas acho bonito… Acho que a não-categorização do meu ofício, artista ou figurinista ou estilista, gera um desconforto de não saber onde estou me ancorando. Eu me sinto mais confortável quando me ancoro no meu core: as coisas que gosto, os artistas que admiro, que não estão necessariamente relacionados. Eu não tenho muito problema em não me achar muito em uma categoria específica. Tem uma insegurança, mas, no final, tudo vai fazendo sentido.

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Metalbone bodies, 2021 (divulgação/divulgação)

B! | Prefere se apresentar como estilista ou artista?

MD |  Por hábito, me apresento como estilista. Talvez por ocupar mais os meus dias como estilista e também para facilitar — não posso me apresentar como Marina, vírgula, artista, estilista, figurinista, diretora criativa, cozinho bem, gosto de andar de bicicleta… A figura da estilista já resume bem o que faço na cabeça das pessoas e está associada ao vestuário, o que me interessa mais. Quando você se apresenta como artista, demanda uma explicação, né? É artista de pintura, de escultura, de vídeo? De performance? Eu não saberia responder isso. Talvez seja uma artista de objeto, de vestuário. Talvez esse lugar que eu possa ocupar na arte ainda esteja um pouco em aberto.

B! | Mas você quer fechar?

MD |  Não. Sou muito interessada em mídias gerais. Tenho muita vontade de dirigir filmes, videoarte, talvez de performance. Adoro pensar na composição e todos os elementos — das falas à cenografia — pensar nessas partes isoladas também me interessa muito. Amo pensar em som. Tenho vontade de fazer pequenos objetos, fazer performance. Desfile de moda, algo que amo e já fiz muito, tenho impulso de inventar uma ideia diferente da passarela padrão.

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