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Giselle Beiguelman usa botânica e IA para discutir sobre memória, exclusão e colonialismo

Na exposição "Venenosas, nocivas e suspeitas", em cartaz na Fiesp, artista cria um jardim de plantas estigmatizadas e mulheres cientistas apagadas pela história

Por Julia Flamingo
15 abr 2025, 07h00
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Mesclando botânica, imagens de plantas inventadas e retratos de mulheres esquecidas pela história, Giselle Beiguelman cria um jardim no centro cultural Fiesp (Giselle Beiguelman/divulgação)
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A tecnologia carrega consigo os mesmos preconceitos das sociedades que a criam. Como qualquer sistema de conhecimento, a inteligência artificial, tão inovadora e hoje indispensável, continua a seguir as mesmas narrativas dominantes e excludentes que há séculos estruturam o poder, a cultura e a produção do conhecimento. Tente usar o Chat GPT para escrever um texto com linguagem neutra ou criar imagens fora do padrão normativo ocidental, e você logo perceberá que as respostas desses sistemas algorítmicos seguem as mesmas noções tradicionais sobre beleza, estética, corpo, identidade, gênero e linguagem. 

“Inteligência artificial é horrível? Não. Horríveis são os humanos, que produzem dados que excluem, silenciam, e sobrepõem”, explica a artista paulistana Giselle Beiguelman em entrevista à Bravo!. “Você pode ser treinada pelo sistema, pela máquina, para que você faça exatamente aquilo que é a prerrogativa dela, a estética dela mais comum, que é o pensamento hegemônico, o clichê. Ou você pode realmente aprender como ela desenvolve certos raciocínios para negociar outros”.

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Giselle Beiguelman (Paula Monroy/divulgação)

É a partir deste corpo-a-corpo com a inteligência artificial, que a artista paulistana vem desenvolvendo um trabalho potente, vigilante e crítico sobre as novas tecnologias. Tanto no âmbito artístico como acadêmico — ela é professora da FAU-USP e dá cursos em instituições como Masp e Sesc —, ela vem engajando públicos no importante debate sobre a naturalização dos preconceitos nos espaços digitais e fora dele. 

Não pense que as suas exposições são repletas de computadores, fios, e códigos. Pelo contrário: para falar sobre temas como exclusão sistêmica, imaginário colonialista, e memória na tecnologia, ela escolheu, pasme, a botânica (ou a inteligência nem humana nem artificial, mas natural). Em plena Avenida Paulista de São Paulo, no Centro Cultural Fiesp, a exposição Venenosas, nocivas e suspeitas é um grande jardim ocupado por coloridas suculentas, mandrágoras e carnívoras que dividem espaço com retratos de cientistas mulheres feitos em colaboração com inteligência artificial. 

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Luzia Pinta (Giselle Beiguelman/divulgação)

Esta inusitada conexão traz emoção, natureza e história para o debate sobre apagamento ontem e hoje. Plantas estigmatizadas receberam rótulos por suas propriedades químicas, ou construções sociais — muitas foram associadas à feitiçaria, à rebeldia ou ao perigo — da mesma forma que mulheres cientistas foram desacreditadas, excluídas ou tiveram seus trabalhos apropriados por colegas homens. 

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Trotula de Salerno (Itália, 1050. Data de morte desconhecida) (Giselle Beiguelman/divulgação)

Criar retratos especulativos de mulheres que foram apagadas da história com a inteligência artificial demorava semanas, já que as IAs simplesmente não possuíam esses dados. Trazia imagens de mulheres jovens e brancas, ou de estética semelhante aos desenhos japoneses. Após uma extensa pesquisa sobre tais cientistas, mergulhando em bibliografias quase escassas para reconstruir suas imagens na idade em que morreram, ela finalmente conseguiu criar a galeria de retratos de mulheres velhas com suas rugas e marcas, pose altiva e queixo erguido.  “A imagem da velhice é um imaginário de tristeza, de muita derrota. E eu não queria que essas mulheres aparecessem como derrotadas pela vida. Eu queria dar uma dignidade que talvez o mundo masculino não deu para elas”, conta Giselle que foi bastante estimulada pelo etarismo que ela própria sente aos 62 anos. “Existe toda uma tática de violência e apagamento com mulheres de mais de 60 anos. E um risco de esquecimento muito grande, de neutralização da sua história”. 

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Mary Elizabeth Banning (EUA, 1822-1903) (Giselle Beiguelman/divulgação)

E assim ela deu rosto para mulheres como Mary Elizabeth Banning (1822-1903), também conhecida como “senhora cogumelo venenoso”, que foi autora do manuscrito de 1888 hoje considerado o primeiro trabalho científico dedicado aos cogumelos dos Estados Unidos. Maria do Carmo Vaughan Bandeira (1902-1992) foi a primeira botânica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro que coletou e identificou mais de 500 espécies de plantas, mas, ignorada pelos círculos científicos dominados por homens, ela nunca foi publicada. Se mudou para um convento com clausura total. Constança Eufrosina da Borba Paca (1844-1920),por sua vez, foi ilustradora de arte botânica, contribuindo imensamente para a catalogação e registro de plantas, mas nunca assinou os seus trabalhos. 

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Maria Bandeira (Rio de Janeiro, 1902-1992) (Giselle Beiguelman/divulgação)
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Por outro lado, as legendas que acompanham as plantas da exposição trazem histórias surpreendentes sobre elas, muitas das quais usamos no dia a dia, na culinária, na medicina, nos cuidados de beleza. A pimenta malagueta, por exemplo, foi demonizada pelas elites europeias que diziam ser um afrodisíaco usado apenas por mulheres vulgares. A erva-mate — planta sagrada para os indígenas guarani, mas pura cafeína sem processamento — foi condenada pelos jesuítas, porque diziam deixar os indígenas muito atentos. O mesmo aconteceu com a coca. Quando os espanhóis entenderam que era uma planta energizante, passaram a obrigar os indígenas a mascarem para que eles aguentassem ainda mais o trabalho nas plantações. Era uma dupla opressão. 

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Maria Sybilla Merian (Alemanha, 1647 – Holanda, 1717) (Giselle Beiguelman/divulgação)

“Muitas pessoas choram aqui. Muitas mulheres. Acho que mexe com questões ancestrais. Éramos tão conectados à natureza e perdemos essa conexão completamente”, diz Giselle. Fascinada por flores desde sempre, a pesquisadora tem se aproximado de botânicos para aprofundar seus conhecimentos nessa área da biologia. Na exposição Botânica Tirânica, apresentada no Museu Judaico de São Paulo em 2022, ela já investigou como as plantas se cruzam com o colonialismo e a dominação da natureza. A mostra revelou como muitas plantas, antes nomeadas por povos originários, foram rebatizadas com termos carregados de misoginia, racismo e antissemitismo.

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Maria Graham (Inglaterra, 1785-1842) (Giselle Beiguelman/divulgação)
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Em cartaz desde novembro de 2024 e até o próximo dia 20, a mostra já soma mais de 100 mil visitantes. Ao longo dos meses, ela foi literalmente florindo e crescendo, teve visitas de vários insetos e uma lagarta, que mordeu todo o pé de tabaco. Ao final da mostra, as plantas serão divididas entre o pessoal da equipe que, como nos últimos meses, seguirá cuidando delas. Cuidado: a melhor palavra para resumir esta exposição. 

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Plantas inventadas (Giselle Beiguelman/divulgação)
Venenosas, nocivas e suspeitas

Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp
Av. Paulista, 1.313 (em frente ao metrô Trianon-Masp)
6 de novembro de 2024 a 20 de abril 2025 | Terça a domingo, das 10h às 20h
Entrada gratuita – Livre para todos os públicos

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