Arte brasileira e o lugar reservado aos artistas negros
Duas novas mostras do Instituto Inhotim investigam o papel fundamental dos criadores da diáspora atlântica para além da representação da figura negra
Desde o dia 23 de setembro, é possível visitar no Instituto Inhotim as exposições Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim e Direito à forma. Ambas fazem parte do quarto ciclo do Programa Abdias Nascimento, que há dois anos vem trazendo para dentro do maior museu à céu aberto do país um diálogo com o Museu de Arte Negra (MAN) e com o legado do pintor, ativista, escritor e político, uma das pedras fundamentais do pensamento negro brasileiro.
Em entrevista à Bravo!, o curador convidado Igor Simões (responsável pela montagem das duas mostras) explica sua investigação do formal e do abstrato na produção de artistas diaspóricos: “Nesse momento, Inhotim ajuda a ampliar a discussão de arte afro-brasileira a partir dessas três exposições [as duas já citadas acima e uma outra dedicada ao Mestre Didi, que foi aberta em maio deste ano e também leva curadoria de Igor]. Isso é algo muito importante: que nós não tentemos encaixar a produção afro-brasileira em um ou outro significado único, em um ou outro estilo, em uma ou outra linguagem. A arte afro-brasileira é uma categoria política.”
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Em Fazer o moderno, construir o contemporâneo se abre o diálogo entre a produção de Rubem Valentim e as reverberações de sua obra, apresentando-a ao lado de outros 10 artistas cujos trabalhos tocam, atritam, amplificam ou continuam as explorações do pintor baiano. Lucas Menezes, curador ao lado de Simões, destaca: “Rubem foi um artista que expôs muito, esteve presente em várias bienais, em várias exposições no Brasil e no mundo. Ele deu espaço para que pensemos em como seu trabalho conviveu com outros trabalhos, como ele se relacionou a outras figuras da arte brasileira. Por isso, quisemos retomar essa dinâmica como convite para pensar a obra – que é extremamente generosa, pela produção profícua, mas também pela troca intensa. Fomos conduzindo o processo de pesquisa para que duplos se formem no encontro do olhar, ao girar 360º, as triangulações e outras geometrias se criam no espaço.”
A montagem da exposição ocupa a galeria Lago que, estreita, conduz o visitante sempre para frente. Em meio a pinturas, relevos, esboços, objetos, emblemas serigráficos e registros que se expandem por 30 anos da produção de Valentim, pode-se ver como a equipe curatorial conseguiu criar momentos, pausas, nesse trajeto. Três grandes guias estão colocados ali: O primeiro, “Fora do fazer, não há salvação”, pensa o trabalho do ateliê, a criação constante, múltipla e obsessiva, as trocas com outros artistas. O segundo se debruça sobre a negação de Rubem em seu manifesto tardio, em que diz: “nunca fui concreto”, e o que significa essa distinção, como podemos perceber que a exploração de Valentim não era apenas estética, mas, carregada de simbologia, história, fé, religião, se torna transcendental. E por último, o terceiro foca na busca constante pelo conhecimento.
“Encontramos uma chave para pensar não apenas a obra de Rubem Valentim, mas a partir dela gerar uma série de reverberações. A primeira delas foi entender que qualquer noção de moderno brasileiro, ou de arte moderna brasileira, tem que passar pela experiência do Atlântico, e Rubem Valentim se ergue como um moderno Atlântico por excelência. Tentamos situar Rubem Valentim como uma dessas figuras-chave para compreender a arte brasileira e, ao mesmo tempo, para conectar com a outra exposição, compreender a arte afro-brasileira como algo múltiplo, multifacetado, que não cabe em caixinhas” diz Igor Simões.
–As vizinhanças propostas na exposição se estendem pelos trabalhos de Mestre Didi, Rosana Paulino, Emanoel Araujo, Jaime Lauriano, Rebeca Carapiá, Allan Weber, Bené Fonteles, Rubane Maia, Froiid e Jorge dos Anjos, compreendendo projetos demais variados, da fotografia à escultura. Comprovando assim a envergadura e a importância de Rubem Valentim.
A segunda exposição, Direito à forma, abre e tem como ponto de partida a frase da historiadora, ativista do movimento negro e intelectual Beatriz Nascimento: “Sou atlântica”. Igor Simões explica: “Nós partimos desse caráter atlântico que liga toda essa produção, a herança de discussão formal, de discussão de linguagem, está no cerne do fazer de artistas negros, não só brasileiros. É a conexão da diáspora africana e do atlântico como esse lugar de fluxos, trocas, negociações e de tensões.” Deri Andrade, que assina a curadoria ao lado de Igor, acrescenta: “A exposição é atlântica, é afro-diaspórica. Reparem que além de artistas brasileiros, estão aqui presentes também Igshaan Adams e Jabulani Dhlamini. Igshaan faz parte do acervo do Inhotim e, apesar de não ser um artista brasileiro, entendemos que havia uma conexão com o que estamos propondo.”
Sonia Gomes_sem título, da série Torções, 2021Ele explica também que a mostra “é uma exposição que parte da coleção do Inhotim, e isso é interessante porque, Quilombo, no ano passado, também partia da coleção. O instituto tem adquirido trabalhos de autoria negra e aqui alguns deles estão presentes. É uma maneira de tensionar essa coleção, de se entender como ela está sendo formada.”
Ao escolher centralizar a exploração formal e não dar espaço para obras que representam o corpo negro, a curadoria se livra da armadilha do tema negro. “Gosto bastante dessa anedota: se a gente pega as imagens que circulavam ali no final do século XX quando se falava de arte afro-brasileira, um conjunto aparecia muito: os orixás de Caribé. Por muito tempo, elas foram associadas à arte afro-brasileira. Vejam só, um homem branco e argentino pensando, produzindo, essa ideia de arte afro-brasileira”, se diverte Igor.
“O direito à forma nesse momento, hoje, é necessário para que possamos discutir com foco na elaboração formal. Se de um lado é muito importante que tenhamos um número muito maior de artistas negros nas galerias, no mercado, por outro lado, isso também tem criado uma espécie de ênfase, quase como se a gente estivesse caindo em outro tema de arte afro-brasileira em termos de linguagem: a pintura figurativa com representação de corpo negro geralmente em situação de precariedade. Isso não é uma crítica à pintura negra brasileira, que é excelente, mas onde encontramos espaços para outras discussões? Como nós podemos escapar dessa armadilha nova de tentar mais uma vez fixar o que pode um artista negro? O artista negro pode aquilo que ele quiser, um artista negro pode, inclusive, não se interessar em discutir raça, um artista negro pode abstrair”, Igor continua.
Reunindo cerca de 60 trabalhos de mais de 30 artistas, Direito à forma nos apresenta a pluralidade da produção afro-brasileira em suportes diversos do fazer artístico. Assim, demonstra que o caminho trilhado por Rubem Valentim, Mestre Didi e Abdias Nascimento continua se expandindo, de modo que é realmente impossível pensar a arte contemporânea brasileira sem considerar essa produção cara, rica e atlântica.
Galeria Lago (eixo rosa) e Galeria Fonte (eixo amarelo)
Instituto Inhotim | Rua B, 20, Inhotim, Brumadinho, MG
De quarta a sexta-feira, das 9h30 às 16h30, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30.
Ingressos: R$ 50 (inteira), R$ 25 (meia-entrada*). Todas as quartas-feiras são gratuitas
“Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim” fica em cartaz até setembro 2024
“Direito à forma” fica em cartaz até março de 2024