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O mundo mágico de Laerte

Com humor, graça, e forte conexão com a realidade, Laerte Coutinho consegue colocar as aflições de uma sociedade em seus desenhos

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 20 mar 2023, 11h29 - Publicado em 20 mar 2023, 11h28
Autorretrato de Laerte.
 (Laerte/arquivo)
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É provável que você já tenha se deparado, no jornal ou nas redes sociais, com uma ou outra ilustração criada por Laerte. Lembra daquela sobre a ficha que um dia vai cair, viajando pelo espaço a caminho da Terra? Tantas outras já viralizaram e seguem sendo replicadas como acuradas representações do tempo em que vivemos.

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Com alguns riscos, Laerte consegue ilustrar o indizível. Ela possui a valiosa competência de solucionar de forma sensível os momentos de uma sociedade aflita e consegue comover a ponto de provocar aquele sorriso discreto de quem entende e concorda com o que vê. Ela está no topo da lista dos maiores cartunistas do país. No entanto, parece discordar sempre que escuta alguém falar de sua importância e não tem paciência para muitos elogios. São exageros, em sua opinião. Enquanto isso, Laerte aguarda o momento em que as pessoas irão descobrir que ela é uma grande fraude: “Essa é a essência da tal da síndrome do impostor ou da impostora. Às vezes, acho que faço parte desse diagnóstico. Quer dizer, eu sei que o meu trabalho tem valor, mas tenho dificuldade de enxergar e muitas vezes isso me atrapalha e me impede de criar”, ela conta em conversa conosco.

Trecho do livro Manual do Minotauro.
Trecho do livro Manual do Minotauro. (Laerte/arquivo)

Reconhecer o próprio valor, de fato, pode ser um desafio, mas essa dificuldade pode fomentar uma grande ilusão. E no caso de Laerte, não há dúvidas de que esse seja o caso. Fato é que ela não precisa de aprovações. Sua longa carreira, que já ultrapassou cinco décadas, fala por si só.

Ela não sabe precisar exatamente o que a orientou para essa área. O que pode dizer é que desenhar foi um dos primeiros e mais eficazes canais que encontrou para expressar o que sentia e o que via no mundo. Todos seus irmãos também desenhavam, lembra. No começo, ela se limitava a copiar figuras que encontrava nos jornais e revistas. E com a prática, foi se aprimorando até se emancipar com a própria imaginação. Com o hábito, passou a ser vista pelos amigos e familiares como aquela pessoa que desenha e que é boa nisso. Essa foi sua primeira forma de validação.

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Trecho do livro Manual do Minotauro.
Trecho do livro Manual do Minotauro. (Laerte/arquivo)

Seus companheiros do dia a dia eram os gibis de Ziraldo e Maurício de Sousa. Nas décadas de 1950 e 1960, a Mônica – que completou recentemente 60 anos – não existia, mas existia Bidu e Franjinha, de Maurício, para entretê-la. “Eles foram especialmente importantes porque percebi que era um trabalho feito no Brasil, que isso era possível. Até ali, quadrinho era uma coisa que vinha do exterior ou que vinha do passado. E ver trabalhos feitos por pessoas do meu contexto foi fundamental.”

“Essa é a essência da tal da síndrome do impostor ou da impostora. Às vezes, acho que faço parte desse diagnóstico. Quer dizer, eu sei que o meu trabalho tem valor, mas tenho dificuldade de enxergar e muitas vezes isso me atrapalha e me impede de criar”

Laerte

Havia, entretanto, um ilustrador norte-americano que lhe intrigava e que a estimulava a continuar desenhando: Norman Rockwell, famoso no início do século XX por retratar os costumes, os valores e ideais da sociedade estadunidense. “Eu queria descobrir a mágica que ele fazia. Queria imitá-lo, mas sem ter o trabalho de fazer. Sempre fui meio preguiçosa”, conta aos risos. “Queria obter aquele efeito de luz dele, que é hiper-realista.”

Até hoje, ela brinca, a preguiça lhe acompanha. Não é vexame algum dizer que gostaria de obter resultados com o mínimo de esforço. Afinal, quem não?

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Laerte conta que adorava as introduções das animações da Disney que mostravam um pincel mágico que simplesmente aparecia e criava, imediatamente, toda uma cena. Até hoje, gostaria de ter um daqueles, ela diz. Sua realidade, talvez não seja necessário dizer, é bem diferente dessa fantasia. Todos os dias, ela se põe a desenhar. Sua rotina de trabalho é dedicada quase integralmente às tiras que publica diariamente na Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, e também às charges políticas que ilustram semanalmente o mesmo periódico.

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Em fevereiro, uma de suas criações foi escolhida como a melhor charge de 2022 pelos leitores da Folha de S.Paulo. A ela deu o nome “Renascimento” e mostra flores brotando com a partida do ex-presidente Jair Bolsonaro. Essa foi apenas mais uma das tantas agraciações que recebeu por seu trabalho. No ano passado, foi finalista no Prêmio Jabuti de Melhores histórias em quadrinhos com seu livro Manual do Minotauro, onde publicou 1500 tiras criadas entre 2004 e 2015.

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Laerte é desenhista, como todos sabemos, é também jornalista de formação, mas acima de qualquer outra coisa, uma pessoa que trabalha com humor. Embora, tampouco, se enxergue como humorista. Há motivos para isso. “Já não uso mais o desenho caricatural que usava, aquele desenho e as soluções de roteiro de construção de situações humorísticas que eu costumava usar. Eu uso outras coisas. É tudo dentro do humor, mas eu não sou uma produtora de humor profissional.”

Selfie tirada pela Laerte.
(Laerte/arquivo pessoal)

Quando Laerte se senta à mesa, não necessariamente chega com uma grande ideia ou uma imagem pronta. Os rabiscos e os pensamentos vão se desenvolvendo como numa parceria. “Como o Chico Caruso falou uma vez: ‘deixo o lápis pensar.’ Mas meu lápis nunca pensa muito”, brinca.

Ela então mostra uma ilustração em seu caderno, de uma ideia que considera já ter se tornado clichê. Um dos desenhos que não levou adiante. Nele faz um paralelo com a evolução do homem e a transformação do bolsonarista, partindo de um primata a um homem vestido de terno. Até mesmo o radicalismo precisou se transmutar numa figura (aparentemente) mais apresentável. “A ideia tem que ser muito boa para me autorizar a usar um clichê tão batido quanto esse.”

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Ela explica que após formular intensamente uma ideia, consegue visualizar o trabalho como alguém de fora, como parte de seu público que encontra suas tiras diariamente no jornal. Curiosamente, o momento em que ela consegue ter esse olhar externo coincide com aquele em que ela se torna capaz de apreciar próprio trabalho e já não encontra mais objeções a fazer.

Trecho do livro Manual do Minotauro.
Trecho do livro Manual do Minotauro. (Laerte/arquivo)

Suas primeiras aventuras pelo mundo da ilustração foram suas publicações no jornal acadêmico da Escola de Artes e Comunicação, da USP, onde estudava Jornalismo. Em seguida, vieram outras. Durante seus anos de faculdade, a revista Pasquim, para qual colaborou mais tarde, promoveu um concurso aos leitores dos melhores desenhos. Decidiu mandar uma de suas ilustrações e teve a feliz surpresa ao ser selecionada. “Lembro que me senti importante na ocasião.”

Trecho do livro Manual do Minotauro.
Trecho do livro Manual do Minotauro. (Laerte/arquivo)

Na faculdade, participou de outro concurso que foi determinante para sua biografia. Em 1974, se inscreveu no Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP). Seu desenho, inspirado na fábula de Hans Christian Andersen, “O Rei está nu”, foi o grande vencedor. Na obra original, um rei é ludibriado por um suposto costureiro, que finge ter criado uma roupa original, uma que somente as pessoas mais inteligentes poderiam enxergar. O rei, obviamente, com tamanho orgulho, veste o traje inexistente e convida toda a população para ver sua roupa. Nu diante do povo, apenas uma criança tem coragem de confrontar a realidade: “O rei está nu”, diz. Na adaptação de Laerte, “O rei estava vestido”, ela retrata o jovem coagido pela tortura a dizer que o rei estava vestido. Isso no auge da ditadura militar.

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“Já não uso mais o desenho caricatural que usava, aquele desenho e as soluções de roteiro de construção de situações humorísticas que eu costumava usar. Eu uso outras coisas. É tudo dentro do humor, mas eu não sou uma produtora de humor profissional”

Laerte

Também na década de 1970 iniciou a carreira na revista Sibila, onde criou o personagem Leão. Foram outros tantos memoráveis: Overman, Piratas do Tietê, Muriel/Hugo e Lola, a andorinha. Nesse tempo, conquistou públicos muito diversos. Naquele estágio, a comunicação com os leitores se dava por meio de cartas, que demoravam a chegar. Portanto, a resposta ao seu trabalho não era imediata como é atualmente. “Era um sistema tão lento em relação a hoje. Hoje em dia, é muito louco, eu posto uma coisa no Twitter, dali a segundos já tem gente comentando, já tem gente achando bom, achando ruim, dizendo que não entendeu, dizendo que entendeu.” São tantas mensagens e comentários que ela se sente frustrada por não conseguir respondê-los.

Selfie tirada pela Laerte.
(Laerte/arquivo pessoal)

Não é exatamente surpresa que essa velocidade do mundo digital causa certo espanto. Por vezes, ela se pega refletindo sobre as novas dinâmicas impostas por essa outra realidade e sua capacidade de transformar (ou mesmo corromper) nossa visão de mundo. “Não é só um clubão aberto, muito contrário disso. Não se trata de um momento de encontro das pessoas, mas de recolhimento e isolamento. Quando a gente pensa que o que movimentou o pessoal em Brasília (em 8 de janeiro) foram as redes sociais, isso fica evidente. Não foi um encontro coletivo de elaboração de ideias, mas um encontro desses perfis todos. Tanto é que as pessoas estavam fazendo quebra-quebra, mas também registrando para colocar no ar. É uma espécie de ensimesmamento.”

 

Diante desse cenário, que é irreversível e nos torna reféns, “como usar essas ferramentas para salvar o mundo, ao invés de acabar de vez com ele?”, ela questiona.

Por fim, apesar de sua resistência em olhar para si mesma com a mesma generosidade que seus leitores, Laerte tem um poder quase como uma antena parabólica (uma representação um pouco datada, admitimos), que capta os sinais invisíveis e transformar em algo tangível. “Eu desconfio que há um grau de sintonia entre o que se passa na minha cabeça, nas minhas ideias e nos meus sentimentos, e o que está se passando no meu país. Quando essa sintonia se dá de forma clara e mais ou menos estável, eu acho que meu trabalho brota melhor. Sinto que tem relação com esse momento.”

E continua: “Ao mesmo tempo, quando sinto que meu trabalho está tropicando, coincide com momentos que eu estou vivendo um momento de confusão, de obscuridade entre o que eu sinto e penso e o mundo.”

 

 

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