Laudelina de Campos Mello: dignidade, luta e a arte que humaniza
Exposição no IMS Poços de Caldas une história, militância e obras contemporâneas para resgatar o legado de uma heroína esquecida

Em uma cidade marcada pelas águas termais e pela arquitetura colonial, Poços de Caldas (MG) revela agora outra faceta de sua história: o berço de Laudelina de Campos Mello (1904-1991), pioneira na luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil. Nomeada heroína da pátria em 2023, Laudelina ganha luz na exposição “Dignidade e Luta”, em cartaz até setembro de 2025 no Instituto Moreira Salles (IMS).
A mostra — organizada em sete núcleos temáticos — é um convite a pisar no chão simbólico de quem construiu resistência a partir da base. Documentos históricos, como a certidão de nascimento da ativista e fotos de bailes que organizou para empregadas domésticas nos anos 1940, dialogam com obras de 41 artistas contemporâneos, entre eles Rosana Paulino, Emicida, Kika Carvalho, Walter Firmo e Dayane Tropicaos, Juntos, eles tecem uma narrativa que vai do Brasil escravocrata às batalhas atuais por direitos trabalhistas, passando pela vida de uma mulher que transformou cozinhas em espaços de debate e sindicatos em palcos de dança.

Uma exposição que emerge da base
A curadoria de Raquel Barreto e Renata Sampaio não escolheu as cores ao acaso. O verde remete à organicidade da militância negra, representando os movimentos de base que Laudelina ajudou a construir. O roxo, ligado ao feminismo e à luta das mulheres, ecoa sua atuação na Frente Negra Brasileira. Já o branco perolado evoca o luxo simbólico do Baile Pérola Negra, que desafiava a segregação ao ocupar espaços nobres com trabalhadoras domésticas vestidas a rigor. Os sete núcleos da exposição, dispostos em diálogo com o chão — como os nomes das obras posicionados abaixo da linha do olhar —, reforçam a ideia de que a mudança começa “pela base”, inspirada no sindicalismo que Laudelina praticava.
Entre as obras, destaca-se “Abre Caminho”, da artista mineira Dayane Tropicaos. A instalação reúne dez uniformes de profissões subalternizadas — faxineiras, babás, copeiras —, cada um bordado com frases como “Você é muito mais” e “Força invisível”. Acompanham os trajes vídeos que mostram trabalhadores narrando suas histórias, rompendo o silêncio imposto pela rotina de serviços muitas vezes anônimos. Em entrevista à Bravo!, Dayane explica a gênese do projeto:
“Cresci em Contagem, vendo minha mãe e minhas tias como domésticas. Quando entrei em espaços institucionais de arte, senti a necessidade de trazer essas vozes para dentro. O uniforme, que normalmente apaga a identidade, aqui vira um símbolo de resistência”.
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A artista relembra a reação do público durante a montagem: “Trabalhadores do entorno do museu entraram e começaram a procurar seus próprios uniformes nas vitrines. Um senhor apontou para o de gari e disse: ‘Esse é o meu, mas nunca imaginei ver isso num museu’”.

Laudelina de Campos Mello’ (Revista Bravo!/Redação Bravo!)
“Minha mãe limpava casas alheias, mas em casa era uma artista — cantava, bordava, contava histórias. Quero mostrar que a periferia também é feita de delicadeza e potência”, reflete.
A obra também dialoga com a trajetória de Laudelina, que organizava bailes para empregadas ostentando vestidos de gala — um contraponto à ideia de que “lugar de doméstica” é apenas na cozinha.
A exposição também traz trabalhos de Kika Carvalho, que na tela Seu Chopin, me desculpe retrata atrizes negras como Zezé Motta e Ruth de Souza em cenas que subvertem estereótipos. A roupa branca das figuras, longe de remeter à servidão, simboliza a elegância cotidiana em uma sexta-feira qualquer. Já Mulambö questiona hierarquias sociais em Feijoada IV (2020), pintura sobre um prato Duralex, e Queria um pincel, me deram uma vassoura (2018), obra que transforma um utensílio de limpeza em suporte artístico.

Não faltam referências históricas: Refeição (1970), de Maria Auxiliadora, retrata cenas domésticas com cores vibrantes, enquanto a delicadeza dos bordados de Madalena Santos Reinbolt contrasta com a dureza do tema que abordam — a invisibilidade do trabalho feminino negro. “Laudelina via a cozinha como trincheira, e essas obras mostram que a arte também pode ser um espaço de confronto e acolhimento”, reflete Raquel Barreto.
Associações, bailes e sindicatos: a estratégia de Laudelina para mudar o jogo

Nascida em 1904, Laudelina iniciou a militância aos 16 anos, fundando o Clube 13 de Maio para oferecer cultura a jovens negros excluídos de espaços públicos. Sua luta ganhou corpo em 1936, com a criação da primeira associação de trabalhadoras domésticas em Santos, posteriormente transformada em sindicato. “Ela via o trabalho doméstico como uma extensão da escravidão”, afirma Raquel Barreto.
Mas a exposição não se limita ao mito. Objetos como panelas e vestidos revelam uma Laudelina que “cozinhava feijoadas maravilhosas”, como destaca Renata. A curadoria também resgata sua atuação cultural: bailes, escolas de dança e até um evento de patinação no gelo dentro do sindicato. “Ela entendia que a luta pela dignidade passava pelo direito ao lazer, à saúde e à autoestima”, completa Raquel.
Elisabete Pinto, autora da dissertação que embasou a mostra, lembra a resistência enfrentada ao estudar Laudelina na década de 1980: “Na Unicamp, diziam que o tema era insignificante. Tive que bater o pé”. Sua pesquisa revelou frases emblemáticas da ativista, como “Humildade é virtude; subserviência, vício”, ecoando o conselho do pai de Elisabete. Laudelina, que se recusou a cargos políticos para permanecer “na base”, via na educação e no descanso pilares da emancipação — tema que encerra a exposição, em um recado urgente para uma sociedade marcada por jornadas exaustivas.
Trabalho doméstico hoje: entre a lei e a escravidão moderna
Apesar da PEC das Domésticas, aprovada em 2013, que buscava garantir direitos básicos e melhores condições de trabalho, o cenário para trabalhadoras domésticas no Brasil ainda apresenta desafios significativos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 65% da categoria permanece na informalidade, sem acesso a direitos fundamentais como seguro-desemprego, FGTS e aposentadoria. Esse cenário é ainda mais agravado pelo fato de a maioria dessas trabalhadoras serem mulheres negras, refletindo uma herança histórica e estrutural de desigualdade racial e social.
Casos recentes e emblemáticos de trabalho análogo à escravidão reforçam a atualidade da luta que Laudelina iniciou décadas atrás. A pesquisadora Elisabete Aparecida questiona: “O que Laudelina diria sobre casos recentes de trabalho análogo à escravidão?”. A resposta talvez esteja justamente na abordagem curatorial que optou por incluir documentos que registram as mediações discretas e eficazes realizadas por Laudelina em casos graves de abuso e exploração. Esses registros, embora sem expor nomes, destacam sua atuação fundamental na busca por justiça e dignidade para as trabalhadoras domésticas em situações de extrema vulnerabilidade.

A inclusão de Laudelina no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, em 2023, reconhece oficialmente seu papel histórico, porém, a exposição “Dignidade e Luta” prefere celebrá-la sob a perspectiva mais íntima e profunda da “intelectual orgânica” que ela foi. Ao adotar esse enfoque, a mostra reforça a importância da consciência política cotidiana e do engajamento direto com a realidade social, trazendo Laudelina como uma figura inspiradora cuja militância ultrapassa honrarias oficiais e ecoa na luta contínua por igualdade e dignidade no trabalho doméstico.