Retratos de um mundo indígena
Exposição coletiva no Masp abre portas para artistas de povos originários de diferentes continentes que há muito tempo tentam se inserir no mercado de arte
Tentar resumir a história de povos de diferentes partes do mundo, seja na literatura ou na arte, é, certamente, uma tarefa pretensiosa e corre o risco de cair em grandes equívocos. Quando o Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), um dos maiores e mais importantes museus da América Latina, assumiu a missão de representar narrativas de grupos diversos e sub-representados, não faltaram alertas sobre os desafios que a instituição poderia enfrentar. O principal dizia respeito à ameaça de construir histórias pautadas no preconceito e estereótipos.
Finalmente, chegou o momento da abertura da exposição coletiva “Histórias Indígenas” no museu, a principal mostra de 2023, que abre as portas (da frente) para coletivos e artistas indígenas que há muito tempo tentam se inserir no circuito e mercado de arte sem serem estigmatizados como exóticos. Um dos primeiros passos foi convidar um corpo curatorial que tivesse legitimidade e autonomia para traçar os rumos da exposição. A missão ficou a cargo dos curadores-adjuntos de arte indígena Edson Kayapó, Kássia Borges Karajá e Renata Tupinambá, cada um representando uma etnia indígena.
A coletiva dá continuidade a uma série de exposições que começou em 2016 no Masp, com “Histórias da Infância” (2016), “Histórias da Sexualidade” (2017), “Histórias Afro-Atlânticas” (2018), “Histórias das Mulheres, Histórias Feministas” (2019), “Histórias da Dança” (2020) e, por fim, “Histórias Brasileiras” (2021-2022). Desta vez, acontece em parceria com o Kode Bergen Art Museum, na Noruega. Para esta nova história, reuniram uma multidão de vozes, de artistas, coletivos, pesquisadores e curadores indígenas (ou de ascendência indígena) das Américas do Sul e do Norte, Oceania e Escandinávia. Na exposição que abriu no último dia 20, é possível conferir 285 obras multimídia, de cerca de 170 criadores, num exercício de retratar as perspectivas, tradições, estéticas e técnicas plurais de povos originários de diferentes regiões do mundo.
Quem visita as galerias do 1º andar e 2º subsolo do museu notará que a exposição está dividida em oito núcleos temáticos, sendo que sete deles representam diferentes partes do mundo: “Relações que Nutrem: Família, Comunidade e Terra” (Canadá); “A Construção do ‘Eu'” (México); “Histórias de Pintura no Deserto” (Austrália); “Pachakuti: O Mundo de Cabeça para Baixo” (Peru); “Rompendo a Representação” (Maori, Nova Zelândia); “Tempo Não Tempo” (Brasil); “Várveš: Escondidos do Dia” (Sami, Noruega). O último núcleo, onde ocorre um encontro de todos os curadores envolvidos na mostra, é intitulado “Ativismos,” mostrando as muitas lutas dos povos originários.
Histórias Pessoais
É uma segunda-feira de manhã, véspera da abertura da exposição. Estou online com os curadores Edson Kayapó, Kássia Borges Karajá e Renata Tupinambá. Embora a conversa gire em torno da exposição, é inevitável que suas próprias histórias e experiências como artistas que navegam no mercado de arte se tornem um tema importante.
Edson é o primeiro a falar. Não demora muito para que o estigma seja tema da conversa. “Há uma música do Paulinho da Viola que diz ‘Eu não vivo no passado, o passado vive em mim.’ Quando ouço essa letra, penso nos povos indígenas, porque somos povos contemporâneos do tempo presente, em carne e osso. No entanto, a sociedade brasileira, as instituições de todos os tipos, incluindo as culturais, insistem sistematicamente na ideia de que somos parte do passado. Isso nos torna totalmente invisíveis, invisibilizando nossos povos, nossas línguas, nossas tradições, nossas maneiras próprias e nossas artes.”
Ele destaca que, longe da imagem propagada, a prática artística não é estranha para as sociedades indígenas. “Sempre tivemos artistas, não produzimos obras apenas para pendurar nas paredes de galerias ou museus. Nossas obras fazem parte de nosso modo de existir no mundo, reafirmam nossas identidades e fazem parte de nosso projeto social e de resistência.”
Edson compartilha que, em um passado, ele foi desencorajado a buscar espaço em museus e instituições de arte convencionais, já que por muito tempo esses locais se mantiveram fechados para artistas indígenas. No entanto, na visão dele, ainda é necessário descolonizar esses lugares. “Quando fazemos esse movimento, estamos agindo em nome de uma coletividade, em nome de uma resistência e em nome dos projetos de sociedade dos povos indígenas. Chamamos isso de Artes indígenas no plural, porque são muitos povos, mais de 300 povos que falam mais de 275 línguas diferentes. Nossa intenção é que a sociedade brasileira conheça e reconheça todas essas diversidades.”
Kássia tem uma longa trajetória nas artes, que começou nos anos 1980. Ela lecionou na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade Federal de Goiás e, mais tarde, na Universidade Federal de Uberlândia. Além de ter sua própria pesquisa como artista. Em todos esses territórios, a dificuldade e o preconceito eram marcas do dia a dia, conforme ela relata. “Fiz arte desde 1980 e sei como é lutar para poder fazer parte de uma exposição. Nunca pensei que fosse conseguir, porque os salões em que eu participava sempre apresentavam uma nova dificuldade. Enfrentei um grande preconceito. Muitas vezes, fui tratada como ignorante ou colocada à margem.”
Para ela, há uma diferença muito marcante entre a arte indígena e a arte feita por não indígenas. Os primeiros, ela afirma, não separam arte e vida. “Nós somos contemporâneos o tempo todo. Quando fiz o curso de Artes na década de 1980, não falavam de arte indígena, mas sim de artefatos. Acho que é desnecessária essa distinção. Ela vem dos colonizadores, que separavam muito a arte do artesanato. Desde então, eu queria refletir sobre o significado da arte para os não indígenas. Portanto, estar aqui agora significa ver que algumas coisas mudaram e é uma conquista nossa por meio de nossa resistência, porque temos que resistir o tempo inteiro.”
Já Renata tem uma trajetória diferente dos outros dois curadores. Ela se formou em Comunicação e, desde o início, encontrou lacunas na divulgação de informações de interesse e relacionadas aos povos indígenas. Ela fundou uma rádio indígena e também trabalhou como roteirista de audiovisual, podendo acompanhar de perto a luta de artistas por visibilidade e reconhecimento nesse setor. O que se vê hoje, ela conta, é fruto de um movimento antigo e conjunto. “A transformação nas instituições vem justamente desse movimento forte dos artistas, que, diante de seu pioneirismo em ocupar determinados espaços, tornou mais propício o momento que vivemos agora. É o resultado de uma luta coletiva que envolve muitas histórias e muitas vidas. Quando olhamos para trás, na Constituinte, houve um movimento para que nós, indígenas, saíssemos desse local de objeto e passássemos a ser vistos como cidadãos de direitos. E muito mais do que isso, que nossas produções, nossa perspectiva e nossa cosmologia também fossem respeitadas.”
Conheça abaixo a história e o trabalho de dois artistas em destaque na mostra “Histórias Indígenas” a partir de relatos feitos em primeira pessoa:
Duhigó
Obra: “Nepu Arquepu”
“Sou Duhigó, que significa ‘primogênita’ na minha língua Tukano. Nasci em 02 de março de 1957, na aldeia Paricachoeira, no município de São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro, Estado do Amazonas, Brasil. Sou filha de um pai Tukano e uma mãe Dessana. Moro em Manaus desde 1995. Concluí o curso de Pintura na Escola de Arte do Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura da Amazônia, em 2005. Sou a primeira mulher indígena do meu povo a se profissionalizar nas artes visuais.
Nas minhas telas, trago a cultura ancestral dos povos indígenas da Amazônia, e costumo representar o cotidiano do meu povo, seus artefatos e mitos nos meus trabalhos. Eu desejo registrar a memória dos índios Tukano, assim como a natureza amazônica, presente na minha obra. Além do português, falo as línguas Tukano, Dessana e Tuyuka.
Comecei a pintar aos 45 anos e nunca parei.
Acredito que tudo o que vivi desde a infância na aldeia, a convivência com meus avós, que me criaram, está muito presente na minha obra. Quando era criança, sentava-me em volta da fogueira com os adultos, ouvindo suas conversas e histórias. Nunca esqueci disso, minha língua, meus costumes e tudo que vivi. Essas memórias vêm até mim, e eu as expresso nas minhas pinturas à minha maneira. Acredito que esta exposição, ‘Histórias Indígenas’, seja de grande importância para o país, e Duhigó está aqui para mostrar que existimos e estamos vivos.
Minha obra, ‘Nepu Arquepu’, retrata a rede de macaco que abriga uma mãe e seu recém-nascido dentro da maloca Tukano. Esta cena é uma lembrança do nascimento de meu irmão Bartolomeu. A mulher que auxilia minha mãe na imagem é minha tia, e o pajé que abençoa a criança é meu pai. Isso é uma lembrança da minha infância, uma cena que nunca saiu da minha mente. Eu quis preservá-la na minha obra e compartilhá-la com todos.
Isso é muito importante, porque no passado, as coisas feitas pelos índios não eram vistas de forma positiva. Nossa vida sempre foi muito difícil, e frequentemente nossa cultura, rituais e pinturas eram considerados como algo maligno. Hoje estamos aqui, mostrando a verdade sobre como era nossa vida no passado. Quero que as gerações futuras Tukano possam conhecer nossa cultura, nossos costumes e nossas tradições através das minhas obras. Tenho produzido obras por 18 anos, e hoje a arte indígena é aceita. Pretendo continuar pintando e compartilhando tudo que está na minha memória, para que ela perdure. Quero que o mundo conheça o povo Tukano através das obras de Duhigó. Duhigó ainda tem muitas surpresas para o Brasil e para o mundo.”
Sandy Adset
Obra: Série Koiri (1981)
Sou Maori, etnia indígena da Aotearoa, da Nova Zelândia. Minha tribo é Ngati Pahauwera (dos barbados queimados).
Os britânicos começaram a chegar em nossa terra em 1769 e, após muitas diferenças e batalhas, um tratado foi finalmente assinado em 1840, e a colonização começou. Hoje, a importância de manter nossas crenças culturais, valores, língua e artes é crucial para preservar nosso lugar e identidade na Aotearoa. Minha vida foi dedicada à educação artística e como artista Maori.
Fui educado em um sistema baseado em princípios europeus. Em meados dos meus vinte anos, afastei-me de retratos e cenas para me concentrar e me comprometer com as formas de arte Maori e suas construções. Waipuna é uma pintura de padrões reconstruídos a partir de designs tradicionais chamados Kowhaiwhai. Nossa paleta é baseada no peso das cores nas crenças de criação Maori.
A exposição é uma partilha do mana (orgulho e prestígio) da indigenidade. Ter a capacidade de desfrutar abertamente das crenças com confiança e compreensão. Para ver a beleza das pessoas, suas canções, artes e cultura.
Espero conseguir oferecer o “mauri” (a essência Maori) da Tribo dos Barbados Queimados. Mauriora.
HISTÓRIAS INDÍGENAS
20.10.2023 — 25.2.2024
MASP — Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Avenida Paulista, 1578 – Bela Vista
Horários: Terça grátis. Terça, das 10h às 20h (entrada até as 19h); quarta a domingo, das 10h às 18h (entrada até as 17h); fechado às segundas
Agendamento on-line obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos
Ingressos: R$ 60 (entrada); R$ 30 (meia-entrada)