Mônica Ventura e a geografia do sagrado: “A arte pública precisa existir e resistir”
Entre rituais ancestrais e arquitetura contemporânea, a artista Mônica Ventura cria manifestações que reconectam o público às raízes afro-brasileiras

Na sala do Octógono da Pinacoteca de São Paulo, um chão de terra batida se estende sob 12 metros de um cordão que desce do teto de vidro até quase tocar um espelho d’água. Estamos diante de “Daqui um Lugar”, instalação da artista paulistana Mônica Ventura, que convida o público a pisar, sentir e habitar a obra. “A arte pública precisa existir e resistir”, afirma a artista, cujo trabalho tensiona as hierarquias da arte contemporânea enquanto questiona: quem pode ocupar os espaços institucionais?
Nascida em São Paulo em 1985, Ventura constrói sua trajetória artística como um ato de resgate e reinvenção. Formada em Desenho Industrial pela FAAP, sua prática transita entre escultura, instalação, performance e arquitetura, mas é na interseção entre o ancestral e o contemporâneo que sua voz ganha potência. Mulher negra, ela entrelaça memórias pessoais, cosmologias afro-ameríndias e filosofias védicas para questionar a materialidade da arte. Mônica vai além, ela também busca explorar seu papel como instrumento ativo de conexão e transformação social.

A escolha pela arte surgiu de um percurso orgânico. Após mergulhar no design e na moda, foi em 2015, durante uma performance em homenagem à Carolina Maria de Jesus no Museu Afro Brasil, que Ventura encontrou seu chamado. Trabalhar como assistente da artista Sara Ramo ampliou seu repertório técnico, e foi em 2018, com a individual “O Sorriso de Acotirene” no Centro Cultural São Paulo, que consolidou sua linguagem: uma mistura de rigor formal (herdado do design) e narrativas que desafiam a colonialidade.
Seu trabalho, exibido em instituições como Masp e Farol Santander, investiga a complexidade psicossocial da mulher negra, usando o corpo como território político e espiritual. “Minha motivação é continuar percebendo o mundo, as matérias, técnicas, assuntos, a história, minhas origens e traduzir visualmente essas inquietações em elaborações passíveis de serem apresentadas ao público”, afirma em conversa exclusiva com a Bravo!.

Terra batida: Reveste o piso, permitindo interação física e evocando ancestralidade.
Cordão de 12 metros: Desce do teto de vidro, conectando verticalidade e horizontalidade.
Estrutura circular: Cobertura a 2,75 metros cria sensação de abrigo, contrastando com a arquitetura imponente. (Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/divulgação)
Um microcosmo de seu universo
No Octógono da Pinacoteca de São Paulo – espaço monumental que um dia abrigou um Liceu de Artes e Ofícios do século XIX –, Mônica Ventura ergueu “Daqui um Lugar”, instalação que transforma a arquitetura colonial em território de diálogo. Além do cordão, um chão de terra batida cobre 168 m² convida o público a interagir.
“A instalação é um espaço imersivo que convida a entrar, sentir, pisar, estar. O chão de terra batida, que traz uma força sensorial em textura, cheiro, cor, temperatura, acústica, já foi pensado desde o início para ser feito de modo que resistisse a interação do público”
Mônica Ventura

A obra, que fica em cartaz até agosto, questiona a história do edifício. Cabaças – símbolos de fertilidade em culturas africanas e indígenas – pendem de uma estrutura circular revestida de cobre, material conhecido por sua alta capacidade de condução de energia. No piso, o espelho d’água duplica a intervenção, criando um jogo de reflexos que desafia a verticalidade imponente do espaço.
A curadoria é assinada por Lorraine Mendes, pesquisadora que desenvolve projetos com ênfase em relações raciais e de gênero nas artes visuais e identidade. “Minha escolha foi delimitar a arquitetura vertical traçando um horizonte com uma cobertura a 2,75 metros do chão, uma medida padrão dentro da arquitetura convencional, trazendo a sensação de abrigo e teto. Interfiro na hierarquia verticalizada mas não a anulo, pois uso essa imensidão de altura para içar os 12 metros de um cordão que desce com graciosidade desde o telhado de vidro até quase encostar no espelho d’água”, compartilha a artista.

A escolha dos materiais não é casual. Enquanto o cobre brilha em diálogo com os tijolos aparentes do prédio, a terra batida – frágil e efêmera – propõe um contraste com a solidez histórica do local. Para além da poética, a instalação é um exercício técnico. Ventura, que domina suportes como cerâmica, modelagem 3D e performance, uniu precisão industrial e narrativas decoloniais.
“A criatividade faz parte do meu processo, mas não é a definição de como me vejo artista. Existem muitas etapas que envolvem pesquisa de materiais, fornecedores, viabilidade orçamentária… Mas claro que me apoio em materiais como livros, sites, conversas com outros artistas, meditação entre outras ferramentas para serem disparadores de criação da minha poética”
Mônica Ventura

Para a instalação da Pinacoteca, a artista revela que a ideia surgiu como uma visualização que teve durante um exercício meditativo. “Neste caso, usei a meditação e a yoga como ferramentas dentro do processo criativo”. O resultado é uma obra que não é apenas para ser vista, mas vivida. Um convite para pisar na história e, quem sabe, ajudar a reescrevê-la.
“Projetar minha obra em um prédio histórico, construído no século XIX traz um contraste bem evidente, pois minhas escolhas são materiais sensíveis, frágeis que buscam comunicar sutileza, natureza e ancestralidade. Fico muito contemplada em propor essa intervenção”, ressalta.
Este ano, a Pinacoteca completa 120 anos e Ventura reforça a urgência de repensar o papel das instituições: “Como vamos fazer arte nos próximos 120 anos? Precisamos fortalecer o financiamento à arte institucional, que é diferente da comercial. É sobre criar capital simbólico”. Sua instalação, nesse contexto, é um manifesto: “Sou uma mulher negra de origem periférica ocupando um espaço centenário. Levo comigo muitas histórias que precisam ser vistas”.

Arte pública como ato de resistência
Para Ventura, a arte contemporânea brasileira enfrenta um dilema estrutural: a falta crônica de recursos financeiros direcionados ao circuito institucional e público. “Precisamos de mais comissionamentos, exposições, incentivos, editais, bolsas e prêmios”, afirma a artista, que conhece na prática os desafios de criar em um sistema ainda emergente. Ela ainda afirma: “Enquanto artista, faço muitas concessões para adequar orçamento versus projeto proposto. E olha que falo de um lugar privilegiado, o eixo Rio-São Paulo, onde os investimentos estão concentrados”.
O problema, segundo ela, é sistêmico. “Arte é feita por pessoas – artistas, assistentes, fornecedores. Mais recursos significam melhor qualidade de mão de obra e bem-estar para todos”, enfatiza, lembrando que o subfinanciamento afeta ainda mais quem está fora dos grandes centros. Enquanto países como Alemanha e EUA já consolidaram a arte pública como capital simbólico e econômico, o Brasil, na visão de Ventura, “segue um caminho emergente. Estamos bem, porém longe do ideal”. A solução? Fortalecer o financiamento à arte institucional. “Diferente do comercial, que está superaquecido”.

Na prática, sua resposta ao cenário é a resistência poética. “Minha postura é oferecer reflexão, mesmo quando os recursos limitam o trabalho. Arte pública tem que existir e resistir”, diz, referindo-se a instalações como “Daqui um Lugar”, no Octógono da Pinacoteca. Para ela, cada obra é um ato de fé:
“Tenho o papel de continuar acreditando, fortalecendo e moldando o sistema
Mônica Ventura
da arte contemporânea brasileira”.
Em um país onde políticas culturais ainda são tratadas como supérfluas, Ventura transforma terra, cobre e cabaças em ferramentas de reinvenção. São materiais que, mais que ocupar espaços, questionam: arte pública é luxo ou direito?
Em cartaz até 3 de agosto
Pina Luz | Praça da Luz, 2 | Bom Retiro | São Paulo
De quarta a segunda, das 10h às 18h
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada); Gratuito aos sábados