MAC Bahia e o abalo das estruturas coloniais
O recém inaugurado MAC_Bahia mostra-se um espaço contemporâneo de arte à beira de tornar-se uma encruzilhada ou um pós-museu
De certo modo, difícil é precisar quando ocorreu a abertura exata do Museu de Arte Contemporânea da Bahia. Sua estrutura física já era conhecida pela cidade de Salvador. Parte do seu acervo inicial é formado por obras premiadas pelos Salões de Arte da Bahia, ocorridos entre a década de 90 e o início dos anos 2000 no Museu de Arte Moderna da Bahia, o MAM. Sua abertura ocorreu durante 60 horas seguidas entre os dias 30 de setembro e 01 de outubro. Durante as 60 horas, o público que visitou o MAC_Bahia acessou laboratório de tecnologia, obras interativas, imersão com realidade virtual, estúdio de podcast, cinema ao ar-livre, pista de skate, mural de grafite e pixo e duas mostras abertas ao público também ininterruptamente. Tratou-se de uma ação intensa, provocativa e marcante. Agora, meses após sua abertura, o MAC_Bahia mantém de pé sua proposta capaz de arquear muralhas epistemológicas ou não que tratem de distanciar do público aquilo que nos pertence.
Situado no bairro da Graça, o Museu teria tudo para perseguir a tradição deixada pelos europeus escravocratas e seus herdeiros ainda habitantes do bairro. A área na qual está instalado, abriga o Palacete do Comendador Bernardo Martins Catharino, construído em 1912 pelo arquiteto italiano Rossi Baptista, o mesmo arquiteto que construiu quatro anos mais tarde o Palacete Tira-Chapéu, na Rua Chile. O Comendador Bernardo Martins Catharino foi um dos empresários mais ricos da Bahia no século XX. Proprietário de vários terrenos em toda a cidade, o Comendador foi definido por Bruna Silva Matos e Rosângela Moreira de Oliveira no artigo “Revolução Industrial e As Indústrias Têxteis na Bahia” como portador de uma visão paternalista em razão dos “diversos benefícios voltados à população como colégios, tanto para os filhos dos operários como para as outras crianças da comunidade”.
A família Catharino era a maior acionista da Companhia Progresso e União Fabril da Bahia, a qual pertence a antiga Fábrica São Braz, cujos escombros se encontram ainda hoje no bairro da Plataforma, subúrbio-ferroviário de Salvador. Segundo Cecília M. B. Sardenberg no artigo “O Gênero da Memória: Lembranças de Operários e Lembranças de Operárias”, o Comendador utilizou da imagem de patrão benevolente “para a interiorização da dominação tanto por operários como pelos demais moradores do bairro (de Plataforma).” Não são poucos os relatos de gratidão ao Comendador. No entanto, percebe-se que, em troca da garantia de alguns direitos, havia uma intensa exploração infelizmente comum à época.
O comendador Bernardo Martins Catarino e sua esposa Úrsula Catarino foram pais de Henriqueta Martins Catarino, ativista baiana responsável pela formação do Instituto Feminino da Bahia, uma instituição filantrópica católica que trabalha com assistência social e conservação do instituto artístico, histórico e religioso do Estado. O Instituto Feminino da Bahia fica no bairro Politeama, no centro de Salvador. No Memorial Virtual: Museu da Memória e da História do Bairro do Garcia encontram-se indícios de que o tradicional bairro teria sido ocupado também por funcionários das fábricas pertencentes à família Catharino, alguns o fizeram através do processo de arrendamento.
É importante mencionar que há no bairro uma distinção devido à desigualdade socioeconômica presente. É chamada de Garcia a área entre o Teatro Castro Alves e o início da Ladeira do Arco, onde encontra-se prédios e edifícios residenciais com população com maior poder aquisitivo, escolas particulares de destaque na Cidade, como os colégios Sacramentinas e Antônio Vieira. O trecho do Bairro conhecido como Fazenda Garcia se inicia no 1º Arco e é caracterizado por casas “populares”. Vemos então a presença da família Catharino em, no mínimo, três bairros da capital baiana ocupados pela classe trabalhadora, formada por pessoas negras e pobres. Bairros nos quais, apesar da filantropia e benevolência, há a reafirmação e preservação de algumas noções de distância. Algumas delas veementemente ameaçadas pelo Museu de Arte Contemporânea da Bahia.
Para além da programação, da pista de skate, do paredão de grafite e da performance musical de Tiganá Santana, o MAC_Bahia se revelou ciente dessas distâncias e do seu papel na redução delas. A mostra Acervo do MAC_Bahia revela ao público muito mais que as obras premiadas pelas edições dos Salões de Arte da Bahia. Ela nos revela que, embora fossem da Bahia, os salões premiaram majoritariamente artistas sudestinos e brancos. A expografia foi pensada justamente de acordo com a divisão das regiões do país premiadas. O maior espaço foi tomado pelo Sudeste. Dessa forma, Daniel Rangel, diretor e curador do MAC, se diz ciente da necessidade de equalizar o Acervo da Instituição. Ou seja, inserir artistas jovens, indígenas, negros, baianos, LGBTQIAPN+, trans, PCDs historicamente invisibilizados de toda e qualquer forma injusta.
A mostra inaugural do MAC_Bahia é Agô – Ayrson Heráclito. Dedicada à produção do baiano nascido na cidade de Macaúba, interior do estado, a mostra Agô, bem como a produção do artista, realiza a arte contemporânea no sentido da sua vocação à aproximação com o público e suas/nossas questões. A produção de Ayrson é pensada a partir de princípios religiosos, estéticos e filosóficos afro-baianos e afro-diaspóricos. A sua famosa série “Bori” apresenta ao público fotografias que elaboram uma leitura artística do ritual que consiste na oferta de um alimento específico a um orixá específico. Ao se deparar com a série, o público é impactado pela beleza das obras mas também com a proximidade entre elas e o universo religioso, cultural e gastronômico de Salvador, da Bahia e de parte considerável do Brasil.
Já na série “Sacudimento”, formada por dois vídeos e uma série de fotografias, há a noção da natureza e suas manifestações como promotora de bem-estar físico, psicológico e espiritual, mas também como agente de libertação e limpeza daquilo que atravessa o tempo não linear, não homogêneo e não-vazio, se formos pensar na descrição feita por Walter Benjamin do tempo segundo o historicismo. Aqui temos uma perspectiva do tempo segundo a qual Exú é o orixá da transmissão daquilo que está além do próprio tempo, como o próprio orixá.
A curadora e crítica Napê Rocha no ensaio-experimento “Apontamentos Sobre a Encruzilhada Como Perspectiva Crítica Para as Artes Visuais” estabelece Exu como um ser sempre contemporâneo quando afirma que “Exu, articulador e mantenedor do sistema dinâmico nagô e banto, estabelece as conexões entre todas as fronteiras do(s) mundo(s), mediando todos os atos de criação e interpretação do conhecimento”. Segundo a autora, “a tradição diz que sem Exu não se faz nada, nem mesmo aquilo que conhecemos, descrevemos e experienciamos como arte”.
A mostra Agô representa muito bem a presença de Exu nas artes, para além da produção de Ayrson Heráclito. Na obra “Bipolaridade”, por exemplo, o artista apresenta duas fases do dendê em reservatórios diferentes. A mais escura e fluida, representando o sangue de Exu, a mais espessa e clara, representando o esperma dourado de Exu. Ambos líquidos sem os quais a vida se torna inviável, impossível. Entendendo vida não só como funcionamento regular do corpo, mas também como bem-estar psicológico, espiritual, físico e material, somos levados a pensar a importância da preservação e da transmissão de saberes hoje considerados ancestrais para a vida da população negra ao longo dos séculos que habitamos o que convencionou-se chamar de Brasil.
É com dendê que o artista nos propõe uma revisão da história da arte e da pintura baiana através da obra “Regresso à Pintura Baiana: Igreja Rosário dos Pretos”, uma maquete da Igreja banhada de dendê, através da qual o artista propõe alguns questionamentos, entre eles: a que se deve o catolicismo que temos na Bahia e no Brasil? Que pintura vem à mente quando a discutimos dentro de um museu? Por que não pensamos na pintura predial? A partir desse ponto, quem foram os primeiros pintores da Bahia? Ora, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi construída por e para pessoas negras. Nela se criou uma associação com o objetivo de garantir o bem-estar físico, espiritual e material de pessoas negras, garantindo, claro, a transmissão e consequente preservação das filosofias afro-baianas. Nesse sentido específico, não há, portanto, uma distância tão grande entre o intuito da associação e o papel desempenhado pelo orixá Exu.
A série “Regresso à Pintura Baiana” conta também com um site specific: uma parede banhada de dendê. O aroma inunda a galeria e a arte se apresenta como experiência corpórea, afetiva e atiçadora de um pertencimento radical. Napê Rocha no já citado artigo afirma: “a encruzilhada possibilita que saberes, estéticas, formas e experiências afro-diaspóricas sejam privilegiadas para dar conta de uma experiência de corpo inteiro, e não apenas de olhos em direção a um objeto centralizado”. E continua: “o que está posto é a necessidade de desmantelar os modelos e lógicas espaciais com os quais estamos acostumadas, reposicionar e reequilibrar objetos e também sujeitos que fazem parte das dinâmicas de produção de arte”.
A provocação feita por Napê se encontra, até certo ponto, muito coerente com a crítica traçada pela escritora, historiadora e ativista francesa Françoise Vergès que lançou no Museu de Arte Contemporânea da Bahia o seu mais recente livro Decolonizar o Museu – Programa de Desordem Absoluta no qual, além de criticar o museu ocidental e universal, propõe a criação do que denomina “pós-museu”: “Isto é um museu que não se alinha às normas do museu ocidental, que busca formas diferentes de exposição e funcionamento e ao mesmo tempo aprende com as normas de preservação que o Ocidente conseguiu desenvolver graças à sua riqueza. Essa necessidade de transmissão transgeracional e preservação não é nostálgica nem melancólica. Ela resiste ao discurso universalista abstrato tentando situar objetos, sons, imagens e memórias no ambiente vivo”.
Vergés continua: “um espaço de exposição de exposição e transmissão que leve em consideração análises críticas de arquitetura e história nas artes plásticas. É preciso criar um lugar onde as condições de trabalho daqueles/as que limpam, vigiam, cozinham, pesquisam, administram ou produzem, sejam plenamente respeitadas; onde hierarquias de gênero, classe, raça, religião, sejam questionadas”.
Se o Museu de Arte Contemporânea da Bahia já se tornou um pós-museu ou uma encruzilhada, ainda é cedo para responder. No entanto, mostra-se fato que ele deixou de ser o que Vergès define como “um triunfo econômico polivalente para os bilionários”, isto é, um museu universal ocidental. Se o MAC_Bahia está revolucionando os seus arredores, também deve estar despertando mudanças internas de forma que o Museu se torne cada vez mais democrático gerando pertencimento aos seus verdadeiros detentores: a população da cidade e do estado, formada majoritariamente por pessoas negras. Não há, portanto, razão para um equipamento público dessa espécie servir apenas à minoria, à Graça, à burguesia branca. No muro dedicado à arte urbana no MAC_bahia há a frase “O museu é a rua”, grafitada pelo Pombagem, coletivo de arte popular da periferia de Salvador criado em 2009. “O Museu é o mundo”, disse Hélio Oiticica, certa vez. Sendo a rua e o mundo pertencentes ao povo, com o museu não deve ser diferente. Que assim seja! É um dever.
Agô: até 3/3
Acervo: até 30/09
Rua da Graça, 284, Graça, Salvador, Bahia
Terça a sábado – das 10h às 22h Domingo e feriados – das 8h às 20h
Entrada gratuita