O sagrado e o artístico em “Um defeito de cor”
Exposição que chega ao Sesc Pinheiros, inspirada na obra de Ana Maria Gonçalves, aborda temas como a escravização, abolição e o racismo presente
Na arte contemporânea, as obras e os espaços frequentemente se confundem com cenas e objetos do cotidiano, criando uma semelhança tão grande com a realidade que, não raro, provocam estranhamento. No entanto, há ocasiões em que uma exposição de arte consegue elevar o espectador a um estado quase sagrado. A exposição Um Defeito de Cor é um exemplo recente disso.
Em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, a mostra concebida por Marcelo Campos e Amanda Bonan, ambos do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), tem percorrido o Brasil. Inspirada no livro de Ana Maria Gonçalves, Um Defeito de Cor (Record, 2006), a exposição começou no Rio de Janeiro, passou por Salvador (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, o Muncab) e agora está em São Paulo. Em todos os lugares, a sensação de fascínio e comoção se repete. O reflexo da realidade que a exposição apresenta é implacável, acompanhando as transformações históricas de um país colonizado, escravocrata e fundado num sistema racista.
O livro se passa no século XIX, durante o período da escravidão no Brasil. A história segue Kehinde, uma mulher negra capturada no Reino do Daomé, com sua avó e irmã, para ser escravizada na Bahia. No Brasil, ela é a única sobrevivente de sua família. Com o tempo, em Salvador, ela consegue comprar sua alforria. Livre, ela se casa com um comerciante português e juntos têm um filho. No entanto, o marido vende o filho para ser escravizado. Kehinde então parte em uma jornada para encontrar o filho, levando-a de volta à África. E lá, ela vive uma profunda reviravolta e se torna uma empresária.
O título tanto do livro quanto da exposição refere-se a uma lei colonial que impedia pessoas negras de ocuparem cargos civis, militares, eclesiásticos e administrativos. O motivo? Um “defeito de cor”. Se uma pessoa negra desejasse assumir um desses cargos, era necessário solicitar ao imperador uma “licença do defeito de cor”.
Não é comum encontrar uma mostra de arte protagonizada por personagens e narrativas de uma obra literária. Apesar de inusitada, a ideia surgiu de uma leitura. No final de 2018, Marcelo Campos, curador-chefe do MAR, leu o livro de Ana Maria Gonçalves e ficou impactado. Após percorrer as mais de 900 páginas, ele teve um insight que logo compartilhou com sua colega no museu: “Esse livro daria uma exposição.” Ambos viram inúmeras oportunidades ali. Havia um vasto conteúdo histórico a explorar, além da possibilidade de estabelecer conexões com questões e artistas contemporâneos. Temas como violência policial, religião, comunidades femininas, empreendedorismo, juventude, imprensa e afeto estão distribuídos entre os diferentes blocos da exposição.
O primeiro passo corajoso do curador foi escrever um simples e-mail para a autora. Optou por fazer isso de sua conta pessoal, receoso de que a autora considerasse a ideia ruim. No entanto, a resposta foi muito diferente do que esperava. “Ela aceitou e disse: ‘Nunca fiz curadoria, mas acho essa uma ótima ideia’”, declara o curador. A partir daí, eles iniciaram um longo processo coletivo de construção de uma nova narrativa. “Ela foi nos contando histórias sobre o livro, sobre como ele foi escrito, suas referências e pesquisas, incluindo sua relação com os arquivos sobre as mulheres negras do século XIX. Juntos, decidimos como narrar uma história que se transformaria em uma exposição”, explica Marcelo.
A exposição conta com mais de 370 peças, incluindo arte têxtil, fotografias, instalações, cartazes, pinturas e esculturas de artistas de diversas nacionalidades, do Brasil, das Américas e da África. Integram a mostra mais de 100 artistas de diferentes gerações, como J. Cunha, Rosana Paulino, Silvana Mendes, Yêdamaria, Maria Auxiliadora, Yedda Affini, Djanira, entre outros. A exposição também apresenta obras inéditas de Kwaku Ananse Kintê, Kika Carvalho, Antonio Oloxedê e Goya Lopes. Um dos aspectos predominantes nos núcleos é o protagonismo feminino, que se manifesta nos cuidados da casa e da família, na religião e por meio do trabalho e do empreendedorismo (no livro, Kehinde se torna empreendedora).
“O grande desafio foi quebrar a lógica de uma narrativa única e uma voz predominante que conta a história. É uma história que requer atenção e precisa ser impactante para que o espectador não desista. Um livro pode ser abandonado e retomado, mas uma exposição não. Em uma exposição, você entra e sai dela; é claro que você pode ficar dois minutos ou uma hora, mas a exposição precisa ser experimentada de uma só vez”, conta o curador.
Durante um processo contínuo de dois anos, os curadores e a autora do livro estabeleceram critérios para não apenas adaptar a obra, mas transformá-la em algo mais. A exposição é organizada em 10 blocos, refletindo os temas dos 10 capítulos do livro. No entanto, o espaço expositivo não reproduz nem busca explicar a história literária. Embora haja menções aos personagens e passagens do livro, ele é utilizado como uma base para ir além. Trata-se mais de uma reinterpretação, onde a obra serve como interface para discussões mais amplas.
“Em cada capítulo, levantamos questões da história do Brasil em geral. Desde a vinda dos escravizados da Nigéria, sobretudo do Benin, para Salvador e Rio de Janeiro, até outros assuntos da macro história brasileira: a presença das religiões de matrizes africanas, as lutas e revoltas negras. Fizemos um levantamento para além do livro também, olhando para a história dos retornados, os ex-escravizados que voltaram para Benin e Nigéria e construíram comunidades brasileiras”, explica Amanda Bonan.
Quando chegamos ao segundo andar do moderno prédio espelhado do Sesc, há uma suspensão da vida corriqueira. As obras tornam o local semelhante a um templo. A religião e a espiritualidade, de fato, desempenham papéis importantes, mas há algo que transcende isso, constituindo-se em uma luta ancestral que ecoa até os dias atuais. Compreender e respeitar os limites entre o artístico e o sagrado foi uma lição crucial para os curadores. “Na exposição, temos a presença, por exemplo, muito interessante do Pai Dedeco, de Itaparica, que é o líder espiritual da festa de Iemanjá. Essas bonecas, a princípio, são oferendas na festa de Iemanjá. Ao mesmo tempo que são objetos de arte, são também objetos de culto. Então, quando as expomos, precisamos fazer os devidos pedidos de permissão. Fizemos oferendas; realizamos isso no MAR, no Rio, quando passamos pelo Muncab, em Salvador, e agora no Sesc.”
A mostra atual traz algumas novidades em relação às exibições anteriores, como o “Retrato de Ana Maria”, quadro de Panmela Castro; “Bori – filha de Oxum”, do artista e babalorixá Moisés Patrício; assim como os figurinos e croquis das fantasias do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, que teve como samba-enredo a obra de Ana Maria Gonçalves.
Espaço Expositivo (2º andar) | Sesc Pinheiros – Rua Paes Leme, 195
até 1º de dezembro de 2024
De terça a sábado, das 10h30 às 21h; domingos e feriados, das 10h30 às 18h
Grátis