Os desafios e avanços na recuperação do Museu Nacional, na voz de seus representantes
Reaberta em julho com a exposição temporária “Entre Gigantes”, a instituição vive uma nova fase e retoma seu lugar no circuito artístico e cultural brasileiro

Quase sete anos depois do incêndio que consumiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, uma das maiores tragédias da história brasileira no campo das artes e da memória, o espaço voltou a fazer parte do circuito artístico e cultural carioca. Desde o começo de julho, a exposição temporária “Entre Gigantes” recebe visitantes no histórico Paço de São Cristóvão, permitindo o reencontro com peças que sobreviveram ao fogo, como o meteorito Bendegó, além de novos acervos e obras restauradas.
A mostra se tornou uma manifestação concreta da resiliência do museu, e marca também um momento crucial da reconstrução física e simbólica da instituição, que abriga um dos maiores acervos científicos e culturais da América Latina. Com o orçamento parcial já captado e um cronograma de obras em andamento, a previsão é que o museu reabra completamente em 2027, com espaços modernizados e infraestrutura reforçada para garantir a segurança do acervo e dos visitantes.
Nesta fase de retomada, conversamos com representantes do Museu Nacional para entender o que foi recuperado após o desastre, as medidas adotadas para evitar novas tragédias, os desafios da restauração e o envolvimento crescente do público. Para eles, este é um momento de reconstrução, em que os esforços se concentram em reafirmar a importância do museu para a memória e a identidade do Brasil.

Bravo: Após o incêndio de 2018, quais itens originais do acervo foram recuperados e estão preservados atualmente?
Andrea Ferreira da Costa, vice-diretora do Museu Nacional/UFRJ (AC) – O trabalho de resgate de acervos durou cerca de 18 meses, envolveu muitos especialistas e superou as expectativas. Milhares de peças, como cerâmicas, fósseis, amuletos, esculturas e afrescos foram resgatadas, e passam atualmente por processos de conservação e restauração para que possam voltar a integrar as novas exposições do Museu.
Lucia Basto, gerente executiva do Projeto Museu Nacional Vive (LB) – Além disso, centenas de elementos históricos e artísticos do palácio que resistiram ao incêndio, como esculturas, molduras, guirlandas, frisos, cimalhas e sancas foram protegidos. Réplicas foram produzidas para garantir a adequada restauração dos ambientes. Trinta esculturas com mais de duzentos anos, produzidas em mármore de Carrara, foram restauradas. Duas delas já podem ser apreciadas pelo público na experiência temporária ‘Entre Gigantes’.
O museu tem recebido doações ou novos artefatos desde o início do processo de reconstrução?
AC – Por meio da campanha Recompõe, lançada em 2021, mais de 14 mil peças já foram incorporadas ao acervo do Museu, das quais 1.815 farão parte dos novos circuitos expositivos. Apenas no ano passado, 1.105 fósseis originários da Bacia do Araripe foram doados, além de peças de origens africanas e indígenas, populações que também estão colaborando com a recomposição dos acervos.
Quais medidas foram adotadas para evitar que tragédias como a de 2018 voltem a ocorrer, especialmente no que diz respeito à parte elétrica e ao sistema de prevenção de incêndios?
LB – O projeto de sistema de prevenção e combate a incêndio já está aprovado pelo Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro. Além disso, como resultado de uma consultoria realizada na área de gestão de riscos, novas proteções foram incluídas no sistema. O objetivo foi reforçar a compartimentação horizontal, ou seja, impedir a propagação de fogo para outros setores de um mesmo pavimento. Quando reinaugurado, o Museu contará com portas corta-fogo nos vãos de passagem entre os blocos; fechamento com gesso acartonado resistente ao fogo em janelas próximas umas das outras; dispositivos (dampers) corta-fogo nos dutos de ar-condicionado; além de hidrantes distribuídos de maneira adequada.
A estrutura elétrica atual já foi completamente revisada e modernizada?
LB – A contratação dos serviços de infraestrutura para passagem de instalações elétricas e a execução dessas instalações é a próxima etapa da obra. Os projetos já estão prontos, orçados e a fase atual é de preparação de todos os documentos necessários à licitação. A exposição temporária em cartaz possui Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) específica das instalações elétricas nos três ambientes à disposição do público, além de autorização do Corpo de Bombeiros.
O que o Museu Nacional considera essencial para que tragédias como o incêndio de 2018 não voltem a acontecer? Quais medidas estruturais, operacionais e institucionais são vistas hoje como indispensáveis para garantir a segurança do acervo e do edifício?
LB – A principal medida nesse sentido é o desenvolvimento das obras e projetos técnicos respeitando todas as normas relacionadas à preservação do patrimônio histórico e segurança em museus. Além disso, há especialistas nas mais diferentes áreas: arquitetura, restauro, instalações elétricas e hidráulicas, climatização, estrutura, acústica, gestão de riscos, entre outras, aplicando as melhores e mais atualizadas práticas profissionais. Todos os projetos técnicos já contam com a aprovação de órgãos como o Iphan, Corpo de Bombeiros, Prefeitura do Rio de Janeiro e demais órgãos competentes. O desenvolvimento aconteceu de forma integrada, com diálogo e cooperação entre as áreas.
AC – Na esfera institucional, o Museu tem o desafio de estabelecer um plano permanente de manutenção e tem conquistado mais recursos para essas atividades, realizando projetos em parceria com outras instituições da sociedade e contado, por exemplo, com o apoio do BNDES na formulação de uma proposta de sustentabilidade financeira pós-inauguração, prevendo estratégias como a gestão de um fundo patrimonial.

Em que estágio estão as obras de restauração do Paço de São Cristóvão? A previsão de reabertura para 2027 se mantém?
LB – Todas as fachadas e coberturas dos blocos 1, 2 e 3 estão restauradas. Uma nova claraboia foi instalada sobre a escadaria monumental de mármore, e os projetos técnicos de arquitetura e complementares foram concluídos. A fase atual de obras contempla a reforma e a ampliação do prédio Alípio de Miranda Ribeiro (anexo ao palácio), o reforço estrutural de vãos, consolidação de alvenarias e execução de lajes nos blocos 2 e 3, além da instalação de sistemas de proteção contra descargas atmosféricas (SPDA) e captação de águas pluviais. O orçamento estimado para reconstruir completamente o Museu é de R$ 516,8 milhões de reais (sem considerar recomposição do acervo). Deste total, foram captados R$ 347,2 milhões. Para o Museu ser reinaugurado em 2028, ainda há o desafio de captação no valor de R$ 169,6 milhões.
Quais melhorias estruturais estão sendo realizadas além da recuperação do prédio principal?
LB – Foram iniciadas a reforma e ampliação do prédio Alípio de Miranda Ribeiro, anexo ao Paço. A primeira fase contempla serviços como reforço estrutural de vigas, pilares e muros existentes; e também a construção de lajes, áreas de subsolo e outras ações necessárias à completa readequação do prédio para o uso contemporâneo. No local, serão instalados um auditório multiuso, áreas técnicas, vestiários, refeitório, entre outros setores importantes para o funcionamento cotidiano do Museu.
Está ainda no escopo do PMNV a reforma e ampliação da Biblioteca Central do Museu, que já ganhou uma nova área útil de 2 mil m², novas salas para aulas, leituras e guarda de publicações, além de sala para exibições audiovisuais, laboratório de restauro e conservação, e um moderno sistema de prevenção e combate a incêndio. Os equipamentos de climatização estão em fase final de instalação.
AC – Além disso, avança também a implementação do novo Campus de Pesquisa e Ensino do Museu Nacional. Estão em funcionamento o módulo administrativo e o Laboratório Central de Conservação e Restauro (LCCR). Em 2024, três módulos emergenciais para abrigar laboratórios de pesquisa e servir como locais de guarda e conservação de acervos também foram entregues. Outro destaque é o ritmo avançado das obras de construção do prédio que vai abrigar o Laboratório para manuseio de coleções em meio líquido.
Como tem sido o diálogo com órgãos do governo federal em relação à manutenção do espaço e à garantia de verbas para o funcionamento pleno do museu?
AC – O Ministério da Educação (MEC) é responsável pela dotação orçamentária da UFRJ e, logo, do Museu Nacional. Temos tido uma importante interface com o MEC, reforçada pela UFRJ, para a reconstrução do Museu e sua manutenção. Pela primeira vez na história foi criada uma ação orçamentária destinada aos serviços de manutenção do Museu Nacional. Ela começou a vigorar em 2024, a partir do pedido da Direção do Museu Nacional, esclarecendo que é imprescindível haver recursos para realizar a manutenção do que já está sendo entregue, como as fachadas e coberturas dos blocos 1, 2 e 3 do Palácio. Contudo, apesar da existência dessa ação orçamentária, é muito importante que o MEC destine recursos específicos a ela.
Como é de conhecimento geral, a situação orçamentária da UFRJ é bastante complexa, e dada a situação da tragédia vivida pelo Museu Nacional e todos os esforços que estão sendo feitos para a reconstrução, é necessário garantir a continuidade dessa ação orçamentária e dos recursos específicos ao Museu. Assim, esse ano temos o indicativo de recursos para a manutenção, todavia, estamos enfrentando, como a UFRJ e outros órgãos públicos, um enorme contingenciamento na liberação de recursos para pagamentos de serviços e contratos. Esse é um tema que envolve tanto o Governo Federal como outros entes responsáveis pelo orçamento público. Nós já temos o caminho para atender demandas de manutenção, o mais importante agora é dar continuidade e aprimorar as conquistas. E isso somente será possível com o empenho do Governo Federal e demais entes responsáveis pelo orçamento público.
Há previsão de aumento no orçamento do Museu Nacional para os próximos anos? Como está o andamento da captação de recursos?
LB – A elaboração de projetos e demais ferramentas de captação para o Projeto Museu Nacional Vive seguem em andamento, contando com a mobilização de instituições estratégicas como o BNDES e o Ministério da Educação, que têm demonstrado compromisso público com a articulação de mais recursos e novos patrocinadores. O valor a ser captado é de R$ 169,8 milhões, e corresponde a 33% da meta global.
Como foi concebida a mostra “Entre Gigantes” e o que ela representa nesse momento simbólico de reabertura parcial?
AC – Esta é uma programação que evidencia a resiliência do Museu, a excelência das ações de restauro que estão em andamento e a relevância científica dos nossos acervos. O maior significado é o do reencontro da população com a sede do Museu, é a promoção do acesso ao conhecimento científico e o diálogo com a sociedade que fazem parte da função social da instituição.
LB – É ainda um convite ao diálogo sobre as conquistas e os desafios desta reconstrução. Além da claraboia sobre a escadaria monumental, o público pode apreciar diversos elementos artísticos restaurados na sala do Bendegó que, mesmo antes do incêndio, estavam encobertos por camadas de tinta, por exemplo. Apresentar informações sobre o restauro e a história do palácio é, então, mais uma forma de incentivar a preservação deste patrimônio brasileiro.
Quais os critérios para a escolha das peças expostas; como o esqueleto do cachalote, o meteorito Bendegó e as obras de Gustavo Caboco?
AC – O Bendegó é um acervo emblemático do Museu, é ele que dá as boas-vindas aos visitantes, está na memória afetiva do público, então, a sua presença é fundamental nessa ativação da relação do Museu com a sociedade. Já o cachalote é um acervo recente de muita relevância científica e também museal, transmite a mensagem de que, mesmo após o incêndio, o Museu seguiu desenvolvendo pesquisas, colecionando acervos e compartilhando conhecimentos.
LB – Outra marca deste processo de reconstrução do Museu tem sido o compromisso com práticas decoloniais, então, a exibição de obras do artista wapichana Gustavo Caboco traz concretude a este desejo institucional e mostra que há outras narrativas, outras formas de elaboração – para além da científica – sobre o Bendegó.
O museu planeja novas exposições temporárias ao longo das obras de reconstrução?
LB – Sim! O momento atual é alinhamento do cronograma de obras com a previsão de entrada de novos recursos financeiros e a oportunidades de apresentarmos novas exposições no interior do palácio até a reinauguração do Museu. Esta é uma forma de manter viva a relação do público com a instituição e de convidar a sociedade a acompanhar de perto as ações de restauro, de aprendermos com este processo histórico e desafiador.
Como foram os primeiros dias de retorno do público ao museu? Já é possível perceber um novo engajamento da população com o espaço?
Fernanda Monteiro (historiadora e educadora museal atuando na mostra Entre Gigantes) – Os primeiros dias de reabertura foram muito marcantes para todos nós. Pela primeira vez desde o incêndio de 2018, o público pôde voltar a circular pelo prédio do Museu, e isso tem gerado encontros emocionantes. Muitos visitantes compartilham memórias e sentimentos profundos ao reencontrar um espaço que fez — e ainda faz — parte de suas histórias. Quem já frequentava o Museu antes da tragédia costuma expressar uma mistura de saudade e dor, mas também esperança.
É comum recebermos perguntas sobre peças importantes do antigo acervo, como o crânio de Luzia, o fóssil de dinossauro, as múmias e outros itens que ficaram gravados na memória afetiva de tantos. Por outro lado, há também um público que está visitando o Museu pela primeira vez, e é bonito ver o brilho nos olhos de quem descobre o espaço agora, mesmo em meio ao processo de reconstrução. Há um novo engajamento sendo construído, baseado na reconstrução não apenas física, mas também simbólica do Museu. O público tem demonstrado grande interesse em acompanhar esse processo e, sobretudo, em manter viva a memória do que aconteceu, reafirmando a importância do Museu como espaço de ciência, cultura e identidade. O desejo coletivo é de que os laços entre o museu e a sociedade se fortaleçam ainda mais daqui para frente.
Aline Miranda (chefe da Seção de Assistência ao Ensino do Museu Nacional/UFRJ) – Na primeira semana de visitação pública à exposição “Entre Gigantes” recebemos milhares de visitantes. Mesmo com ingressos esgotados, filas se formam na entrada do museu para visitá-lo. Os visitantes chegam curiosos sobre os impactos do incêndio e sobre o trabalho de restauração que vem sendo feito. Em nossas conversas pela exposição, os visitantes se emocionam por poder visitar novamente o MN e por saber do trabalho que vem sendo feito de restauração, reconstrução e recomposição do acervo. Nos contam de suas memórias de visitas anteriores, da infância no MN, mostram fotos das visitas com a família. Perguntam sobre seus acervos favoritos, principalmente os dinossauros e as múmias, querendo saber se foram resgatados. Os visitantes ficam muito felizes ao reencontrar o meteorito de Bendegó e também ao conhecer o novo cachalote. Há também aqueles que estão fazendo sua primeira visita ao museu, principalmente crianças, que pela idade não o conheceram antes do incêndio. As conversas têm sido recheadas de memórias, curiosidades e de emoção. De maneira geral, o público tem se mostrado feliz com a recuperação do MN, apesar da tristeza que foi deixada pelo incêndio, e cheios de expectativas para sua abertura total. Acredito que a grande procura pela exposição revela o afeto que a população tem pelo MN e o grande interesse em fazer parte desse momento especial que é a reabertura parcial para visita ao Palácio.
Andrea Fernandes Costa, educadora museal do Museu Nacional/UFRJ – Já tivemos a oportunidade de receber de volta os professores e as professoras da Educação Básica que atuam em escolas públicas do território, a partir da atividade Diálogos entre Educadores/as, promovida pela Seção de Assistência ao Ensino do Museu Nacional. Esses profissionais vibraram com a oportunidade de acessar novamente o “Museu da Quinta” (nome afetivo do nosso Museu Nacional), que é uma instituição que ocupa não só um lugar muito especial nas suas memórias de infância, como também em suas trajetórias profissionais. A experiência “Entre Gigantes” encantou pelo reencontro com o Bendegó, a descoberta do cachalote, mas também pelas novas perspectivas sobre a História e as Ciências que o Museu traz em sua nova fase. A notícia da oferta de ônibus para as visitas das escolas do bairro, por meio de projeto educativo com financiamento do CNPq, deixou os professores ainda mais animados com a reabertura, pois com os ônibus poderão de fato apresentar o mais antigo museu brasileiro aos seus alunos. Estes não são só crianças e adolescentes, mas também jovens e adultos, que segundo a professora Cristiane Ribeiro de Sousa, do GET Gonçalves Dias, escola municipal do bairro de São Cristóvão, “são trabalhadores/as do território e muitas vezes, “cruzam” ou frequentam a Quinta da Boa Vista no dia a dia, mas não reconhecem o museu como espaço de visita ou de acesso.
A campanha para escolha do nome do cachalote tem tido boa adesão? Essa ação marca uma nova forma de relacionamento com o público?
AC – Em apenas três dias, a campanha recebeu mais de 200 sugestões de nomes, o que demonstra o interesse do público em participar das ações do Museu Nacional. Essa iniciativa marca a continuidade da atuação do Museu com o seu público, tentando sempre engajá-lo em suas ações. Já realizamos outras ações parecidas, como para a escolha do nome do dinossauro Maxakalisaurus topai e também na ação cultural “O que você sonha para o Museu Nacional?”, na qual o público poderia sugerir por meio de desenhos, gravuras, poemas e outros trabalhos artísticos, os tipos de acervos que eles gostariam de encontrar na reabertura do Museu.