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O que há de sagrado na arte contemporânea?

Mostra realizada na galeria Arte 132 discute a religiosidade nas obras de Tunga, Leda Catunda, Carmela Gross e outros artistas consagrados

Por Beatriz Lourenço
Atualizado em 31 jan 2023, 18h38 - Publicado em 30 jan 2023, 11h35

Vera e Miguel Chaia compraram sua primeira obra de arte em 1975. A gravura, de Maria Bonomi, foi encontrada em um passeio a Ouro Preto, Minas Gerais – que teve que ser encurtado pois o custo significava dois dias de viagem. A partir daí, outros trabalhos artísticos foram parar no apartamento do casal. Nomes como Tunga, Leda Catunda e Carmela Gross fazem parte de uma coleção de 900 obras.

“Nós nunca assumimos o papel de colecionadores, compramos porque amamos arte. E sempre adquirimos de artistas jovens, do nosso tempo. Todos aqueles que estão no nosso acervo estavam começando a carreira”, diz Miguel. “Até porque somos professores e não podemos comprar obras caras.”

A paixão por esse universo surgiu logo cedo: o jovem, que saiu do Mato Grosso para São Paulo estudar medicina, desistiu do ofício assim que chegou para ingressar na faculdade de cinema. Sua aula favorita era de estética, lecionada pelo filósofo Anatol Rosenfeld – que veio refugiado da Alemanha e se tornou uma das referências da crítica literária no Brasil. Já Vera tinha o pai fotógrafo e sempre foi incentivada a consumir cultura. “Ir a museus e galerias sempre foi parte da nossa rotina”, analisa Chaia.

Tomie Ohtake, um dos principais nomes do abstracionismo, tem um lugar importante e afetivo na vida da dupla. Isso porque foi dela a primeira grande obra adquirida. “Nós gostamos mas não podíamos pagar. Quando ela soube que estávamos interessados, Tomie cobrou um preço menor e deixou a gente parcelar. Isso foi essencial para que a gente conseguisse se aproximar desse mundo”, lembra o professor.

Nino Cais_Sem título_Técnica Marretas, cabo de aço e taças de vidro_Ano 2016
Na obra “Sem título”, de Nino Cais, duas marretas equilibram um par de taças de vidro. Apesar de frágeis, elas permanecem ali intactas. O trabalho nos remete à noção de desigualdade social ao questionar qual é o lugar de cada um dos elementos. (Suzana Mendes/divulgação)

Tridimensional: Entre o Sagrado e o Estético

Um recorte da coleção está na mostra Tridimensional: Entre o Sagrado e o Estético, na galeria Arte 132, em São Paulo. Ao todo, são 46 telas, objetos e esculturas de 35 diferentes artistas brasileiros. A curadoria é assinada por Miguel Chaia, Laura Rago e Gustavo Herz.

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O conceito de sagrado, por sua vez, é entendido no seu significado amplo de religioso, venerável, ritualístico, mítico, alquímico e metafísico. Sangue, vinho, água, fogo e alimento são elementos presentes na discussão. O tridimensional aparece em restrito relacionado à forma das telas, objetos e esculturas – todas as obras apresentam três dimensões e/ou perspectivas de relevo.

A ideia da exposição partiu de um convite do próprio galerista, Telmo Porto, enquanto o tema veio como inspiração da arquitetura e das obras já existentes no local. “Logo na entrada há uma escultura de mármore irremovível de um artista chamado Brunello e, no fundo, um jardim com bustos chama a atenção. No andar de cima, pinturas de cunho religioso estão presentes”, explica Miguel. “Percebi que muitas imagens ali remetem ao sagrado – que, na antiguidade, sempre estiveram a serviço da igreja. Por isso, me perguntei se existe algo de sagrado na arte contemporânea.”

A resposta é sim. Para ele, a arte está aberta a qualquer pesquisa que assuma a perspectiva da política ou da filosofia, da religião, da economia, da semiótica e da estética. E, com frequência, essas perspectivas estão interligadas, uma vez que a arte é atravessada pelas múltiplas esferas da sociedade. “O Tacape, obra do Tunga, é uma referência a alquimia – são ímãs que discutem a energia interior da matéria”, afirma. “No trabalho de Nino Cais, duas marretas fortíssimas de ferro seguram dois cálices. É como se ali o sagrado estivesse representando a mínima fragilidade.”

Deyson Gilbert. Título: Copo com Água Benta ao Lado de Copo com Água Comum. Técnica: Dois copos de vidro, prateleira de madeira, água benta e água comum Ano: 2010 Dimensões: 16 x 40 x 16 cm Edição: 3/3 + 1AP
Na obra de Deyson Gilbert, há um copo de água benta ao lado de um copo com água comum. Os dois, que parecem similares aos olhos, são diferentes em essência. (Gui Gomes/divulgação)

Além da obra de arte

Gombrich, uma das referências na história da arte, afirma que gostar ou não de uma obra não tem a ver somente com as qualidades que ela carrega. Mas sim com a bagagem do espectador. E Miguel concorda: “Há trabalhos que, à primeira vista eu não gosto, mas sei que são ótimos. Depois de um tempo estudando e convivendo, descubro que são fantásticos”, relata.

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“Há trabalhos que, à primeira vista eu não gosto, mas sei que são ótimos. Depois de um tempo estudando e convivendo, descubro que são fantásticos”

Miguel Chaia, colecionador e professor

Ou seja, quando falamos de arte contemporânea, não se trata de gostar ou não gostar de uma obra. O desafio é tentar decifrá-la. As perguntas são mais importantes do que as respostas. É possível partir das mais simples, como “quais reações ela me causa?”, para as mais complexas, como “Esse objeto seria a mesma coisa se estivesse em outro lugar?”.

Segundo o professor, apesar da arte contemporânea ser difícil e diferente de outros estilos, ela tem um brilho inegável que passa por outros âmbitos culturais. “Se envolver com cinema, literatura e teatro é o primeiro passo para ajudar a abrir a cabeça. Também não podemos ter vergonha de ir a galerias, museus e conversar”, diz. “Ouvir os artistas e críticos, além de trocar ideias com pessoas ao nosso redor nos leva a entender melhor não só a arte, mas o mundo.”

Tunga. Título: Tacape. Técnica: Ferro, imã e folhas de ouro Ano: década de 80 Dimensões: 105 x 22 x 22 cm
A obra “Tacape”, do artista Tunga, é feita de ímãs e folha de ouro – dialogando com a noção de energia e matéria. (Everton Ballardin/divulgação)
Tridimensional: Entre o Sagrado e o Estético

Galeria Arte 132
Av. Juriti, 132 – Moema
Até 11 de março de 2023
Entrada gratuita
Segunda a sexta, das 14h às 19h; sábados, das 11h às 17h

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