Ventura Profana profetiza a vida de corpos dissidentes através da arte
Com exposição em cartaz no MASP, multiartista reflete sobre universo da arte contemporânea, religiosidade e até bancada evangélica
A fé é o que move Ventura Profana. A artista baiana, que reivindica o título de pastora, tem como missão disseminar a palavra da vida, do afeto e do poder de corpos dissidentes. Ela não usa apenas uma plataforma para alcançar seu público, mas várias: o vídeo, a fotografia, a música e a performance são veículos que carregam sua mensagem. No Masp, em São Paulo, a evangelista está em cartaz na Sala de Vídeo até o dia 18 de agosto.
Com curadoria de David Ribeiro, a mostra apresenta quatro trabalhos inéditos que combatem a colonização, o racismo e a transfobia. Os vídeos ressignificam os símbolos e valores da doutrina cristã para combater a visão opressora e fetichista que reproduz a exploração de corpos negros e travestis. “Costumo dizer que sou fruto de uma mensagem. Há um evangelho que precisa ser disseminado”, diz Ventura à Bravo!.
Apesar de se afastar da doutrina religiosa, a artista não deixou de lado os ensinamentos pregados por Jesus, como amor ao próximo, afeto e cuidado com a natureza. “A comunidade é a nossa maior força porque não existimos no mundo sozinhos. Quando cuidamos de nós e de nossas individualidades, também estamos cuidando do coletivo. É fundamental que artistas que não reproduzam as dinâmicas de violência às quais nós somos aprendidos. Não é do meu interesse devolver na mesma moeda”, reflete.
“A comunidade é a nossa maior força porque não existimos no mundo sozinhos. Quando cuidamos de nós e de nossas individualidades, também estamos cuidando do coletivo. É fundamental que artistas que não reproduzam as dinâmicas de violência às quais nós somos aprendidos. Não é do meu interesse devolver na mesma moeda”
Seus trabalhos já foram expostos no museu durante a mostra Histórias brasileiras (2022), na 35ª Bienal de São Paulo (2023) e em diversas outras instituições no Brasil e no exterior, como o Werkstatt Der Kulturen Berlin (Alemanha), o Museu Nacional da República (Brasília, DF), o Dragão do Mar – Museu de Arte Contemporânea do Ceará (Fortaleza, CE), o Centre d’Art Contemporain Genève (Suíça) e o MAR – Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro, RJ). Abaixo, confira a entrevista completa com Ventura Profana:
Como você se aproximou das artes visuais?
A arte chegou na minha vida desde cedo. Cresci na primeira igreja Batista da região metropolitana de Salvador. Meus tios, minha mãe e minha família no geral foram muito engajados na programação. Me lembro de participar de peças de teatro, cultos especiais e acompanhar os ministérios de dança – que eu não participava porque era exclusivo para figuras femininas. Ao mesmo tempo, eu estava presente em toda brecha e isso era bem importante. Quando nos mudamos para o Rio de Janeiro, fomos para outra igreja onde consegui conquistar a confiança do pastor e promover uma série de celebrações diferentes, sempre envolvendo arte. Para mim, não há uma diferença entre o que eu fazia lá e o que eu faço hoje. Aos 18 anos, me desliguei da religião evangélica justamente no momento em que ingressei em uma escola livre de artes para jovens da periferia. Passei a estudar fotografia, design gráfico e vídeo – foram minha únicas experiências de formação e isso abriu muitos caminhos.
Você se desligou da religião ou da igreja?
É muito difícil se desligar de maneira absoluta. Vim de uma família completamente imersa no universo cristão. Fui apresentada à igreja aos nove dias de vida e tudo ao meu redor foi construído com base nisso – os valores éticos, espirituais e emocionais, por exemplo. Aos 18 anos, me desliguei da convenção, de certa forma. Parei de frequentar. Mas eu morava com os meus pais, que trabalham até hoje dentro dessa dinâmica. Ou seja, por mais que tivesse esse desejo de me desconectar de uma tradição, é muito difícil conseguir executar isso. Foi um processo de afastamento – não da fé, talvez da religião e dos códigos de conduta que a compreendem. As marcas evangelísticas na minha espiritualidade permanecem até hoje me conduzindo.
Você canta, faz colagens, performances e tem outros tantos suportes para fazer arte. Como você se encontrou como multiartista? Isso vem de uma necessidade de expandir sua voz?
Sim, sem dúvida. Costumo dizer que sou fruto de uma mensagem. Sou evangelista, há um evangelho que precisa ser disseminado. Sou essa voz que clama no deserto mas, ao mesmo tempo, essa mensagem vai sendo articulada de múltiplas formas. Não acredito em fronteiras que separam a fotografia da performance ou a performance da pintura ou a pintura da escultura ou a escultura da espiritualidade. Meu processo de composição musical, por exemplo, está completamente conectado ao meu processo de composição das alegorias e das colagens. O que tento fazer é conseguir construir um arsenal de possibilidades para que a mensagem chegue ao maior número de pessoas e gere compreensão.
Você profetiza a vida de pessoas dissidentes, o poder para as pessoas pretas, trans e travestis, e é o oposto do que vemos, por exemplo, na bancada evangélica – que deveria estar pregando a mesma coisa. Como você percebe essa dualidade de profetizações?
É um processo histórico muito delicado. O Brasil é fruto de uma construção colonial complexa. Nós temos um problema de memória crônica. Acho que faz sentido ter uma bancada que propaga ódio quando a gente entende que a maneira como o cristianismo chega nesse território é através da violência. O que sinto é que esse processo nada tem a ver com a figura de Jesus ou com o que a Bíblia nos conta sobre Jesus. Quando aprendemos sobre Ele, encontramos valores muito bem organizados e explícitos sobre o amor e o respeito à vida. Jesus é uma figura que, inclusive, é penalizada e crucificada pelo sistema de forma brutal de maneira muito parecida com a qual pessoas pretas, indígenas e travestis são condenadas. Jesus mais se assemelha a um cidadão de pele escura, favelada, dissidente, do que com esses senhores latifundiários. O que a gente vê se alastrando nessas bancadas têm mais a ver com o desejo desses senhores de domínio, com o roubo de terras e com uma ação latifundiária alinhada à mineração – ou seja, a violência contra a terra e a um processo de racismo ambiental.
Sua religiosidade vem como uma forma de resistência?
Acredito que nós somos corpos espirituais. Acredito que o Espírito nos possibilita viver. É importante ter compreensão disso porque é tão importante cuidar do Espírito quanto cuidar do corpo e da matéria. O trabalho de cuidado precisa ser mútuo e é fundamental cuidar do coletivo.
Quando vi sua obra no MASP, algumas palavras me passaram pela mente, como acolhimento. Como você percebe o acolhimento nas suas obras?
Isso é fundamental quando pensamos no propósito da igreja e da congregação. A comunidade é a nossa maior força porque não existimos no mundo sozinhos. Quando cuidamos de nós e de nossas individualidades, também estamos cuidando do coletivo. Também é fundamental que artistas que não reproduzam as dinâmicas de violência às quais nós somos aprendidos. Não é do meu interesse devolver na mesma moeda. Por sermos travestis, nós trazemos no corpo as memórias e as marcas da própria transfiguração, da transformação da vida em sua forma mais plena. Isso nos possibilita olhar para esses traumas que carregamos e desejar fazer diferente. O poder é importante, mas quero ter poder para reproduzir as mesmas dinâmicas de violência ou para fazer a diferença? O propósito dessa geração que se levantou, da qual faço parte, é vivermos mais. Por isso, profetizamos a vida abundante. Não aceitamos a morte e o extermínio. Buscamos nos nutrir e nos organizar para viver um tempo de abundância, de festa, de saúde, de prazer e de fartura. Não adianta eu conquistar nada sozinha, quero que todas nós conquistemos espaço.
O MASP está promovendo um ano de exposições LGBTQIA +, mas o meio artístico tradicional ainda tem resistência em reconhecer potências de artistas trans e travestis. Como você analisa esse cenário?
O Brasil é um país adoecido. Nós somos como a água. Quando pudermos mergulhar e beber a água do Rio Tietê de novo, talvez a gente consiga triunfar. Para mim, não basta um ano para falar de histórias de pessoas LGBTQIA + quando temos 500 anos de barbárie. Acho que é sobre assumir um propósito e um compromisso a longo prazo de transformação desses espaços. As instituições precisam ser transmutadas tal qual o Brasil precisa ser transformado. E isso se trata de um processo a longo prazo, e não que se finda no ano que vem. O que fazemos hoje tem um impacto a longo prazo gigantesco.
O que temos vivido de forma muito preciosa é a construção da memória e dos nossos arquivos. Ou seja, não nos embranquecerão, muito menos nos transformarão em pessoas cisgêneras, não nos enterrarão com os nossos nomes mortos. Nós seremos reconhecidas pelos nomes que nós escolhemos para nós mesmas. É lógico que é fundamental e é uma delícia poder viver momentos em que um dos maiores museus do Brasil, abre exposições com temáticas LGBTQIA+. Isso é louvável, mas não é tudo – não é, na verdade, nada diante da dívida impagável de reparação. O fato é: nós estamos nos especializando, estudando, nos preparando. Somos organizadas, plenas, coerentes, dedicadas e excelentes naquilo que fazemos, e é por isso que a nossa presença nesses espaços tem se tornado cada vez mais incontornável. O que temos vivido não pode ser como uma nuvem que passa, precisa ser um processo muito bem planejado a longo prazo, não dá para nos satisfazermos com miséria.
Para você, qual é a diferença entre o sagrado e o profano?
Acho o profano extremamente sagrado, a profanação é sacra. Não vejo o sagrado e o profano como coisas dicotômicas ou opostas, eles são parte um do outro. O sagrado alimenta a profanação, e a profanação é fundamental para que o sagrado se manifeste.