A arte da ocupação
O Teatro da Vertigem comemora os 25 anos de sua trajetória tornando-se seu próprio objeto de pesquisa em livro
Por Gabriela Mellão
A potência da arte de ocupação do Teatro da Vertigem foi revelada inicialmente pela fúria com que católicos fundamentalistas tentaram impedir O Paraíso Perdido de transformar a Igreja de Santa Ifigênia em palco, em 1992. Como é retratado no livro que leva o nome do grupo e celebra seus 25 anos, fiéis acusaram os artistas de profanar o espaço sagrado. Protestos, denúncias de bomba e até cartas e telefonemas anônimos com ameaças de morte ao diretor Antonio Araújo tentaram impedir a obra inaugural da companhia de acontecer.
Tamanha exaltação estimulou o grupo incipiente em vez de fragilizá-lo, indicando que o caminho a seguir estava justamente na extrapolação dos limites da cena, na fricção entre teatro e cidade.
Desde então, a arte do Vertigem invadiu hospital (O Livro de Jó, 1995), presídio (Apocalipse 1,11, 2000), rio Tietê (BR-3, 2006), arranha-céu de São Paulo (Kastelo, 2009), bairro de periferia (Bom Retiro, 958 Metros, 2012) e até mesmo teatro (O Filho, 2017), renovando conceitos relacionados a palco, plateia, linguagem teatral, processo colaborativo, espectador, experiência, e por que não?, também cidadania.
Os espetáculos transformam questões urgentes do Brasil em ataques sensoriais, políticos e poéticos nascidos da mistura indissociável entre forma e conteúdo, ou seja, entre o assunto discutido e o lugar escolhido para examiná-lo. Para a crítica Silvia Fernandez, organizadora da publicação Teatro da Vertigem, a abordagem de problemas candentes do Brasil contemporâneo é feita pelo coletivo a partir de espaços selecionados não apenas para ambientar discussões, mas por serem parte delas.
Além de determinar a ação e intervir na narrativa, a escolha força os espectadores a tomarem consciência do espaço que os rodeia. “Tem um assalto aos sentidos e o nosso desejo é que seja uma experiência capaz de produzir uma percepção crítica, seja do país, seja da cidade”, afirma Araújo. Suas experiências imersivas levam o espectador ao avesso das cidades. Jogam luz sobre o que é ignorado consciente ou inconscientemente convidando a uma ressignificação do entorno. Feito digno de um urbanista, conforme ressalta a pesquisadora francesa Josette Féral em um dos ensaios do livro.
Pesquisa e pluralidade
A mesma predileção por pesquisa que norteou o grupo ao longo de sua trajetória orienta a publicação. Teatro da Vertigem, a maior compilação de registros do grupo já realizada, faz uma análise profunda da trajetória do coletivo compondo uma polifonia de imagens e vozes de artistas e pensadores. São 115 fotos, reveladoras da força e beleza plástica dos espetáculos do grupo ilustram ensaios de jornalistas e estudiosos das artes do palco, colaboradores da companhia, além de alguns dos principais pilares do Vertigem: Araújo, que atualmente divide a direção com Eliana Monteiro, ela própria, o iluminador Guilherme Bonfanti e a atriz Miriam Rinaldi. A publicação também reproduz uma entrevista com os três primeiros realizada por críticos de teatro.
Na pluralidade de leituras apresentadas, a companhia é exaustivamente examinada. Textos de especialistas viram do avesso a trajetória e o processo de criação do grupo. Pontos de vistas acadêmicos e pessoais surgem lado a lado traduzindo o desejo do grupo se desenvolver a partir de um diálogo profundo com seus interlocutores. Sejam eles seus pares, nos longos processos colaborativos de cada criação, ou o público. Destaca uma preocupação não apenas na elaboração intelectual do trabalho, também na experiência sensorial, particular e intransferível gerada por ele.
O passado é revisto para driblar a efemeridade do teatro e refletir sobre o futuro. Araújo menciona um convite para uma criação em Bolonha, na Itália, mas destaca dúvida quanto aos próximos passos do Vertigem. O rumo permanece incerto. Tão incerto quanto o Brasil, o que, ao menos artisticamente, é uma ótima notícia, uma vez que para o grupo crise equivale a ponto de partida, conduzida pela intuição de seus membros, honrando sempre o nome de batismo do coletivo que os une.
Vinte e cinco anos depois, a palavra vertigem permanece guia. Desequilíbrio, risco, perturbação e caos continuam a orientar o caminhar insólito desta companhia, que segue avançando com movimentos contraditórios, em passos tão sólidos quanto instáveis.
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Teatro da Vertigem, Editora Cobogó, 336 págs., R$ 80