A bordo dos escombros do Minhocão
Por Eder Chiodetto, curador especializado em fotografia.
A obra de Giselle Beiguelman nos coloca diante de alguns paradoxos da imagem no mundo contemporâneo. As imagens criadas, machucadas e arruinadas pelas estratégias da artista, parecem flagradas num trânsito entre o nonsense que se tornou a experiência de circular pelas grandes metrópoles como São Paulo e a nossa incapacidade em representar tal paisagem, por mais que possamos captar imagens pelos mais diversos e incríveis aparatos criados com ferocidade capital pela indústria tecnológica.
O conjunto formado pelas obras de Cinema Lascado (presente na Caixa Cultural de São Paulo de 17 de julho a 25 de setembro) investe numa possível nova estética a partir dos escombros da paisagem urbana metaforizados pelas ruínas geradas no confronto entre diferentes equipamentos — telefones celular ultrapassados, softwares descontinuados etc — os quais Beiguelman força uma relação, um diálogo.
Mais que gerar imagens totalizantes que apontam para um referente específico, a artista atua na estrutura formadora da combinação binária das imagens digitais, corrompendo códigos, abrindo a porta para que o acaso também participe dessa equação que a indústria, com seus aplicados engenheiros, empreende tantos esforços para que o “erro” seja totalmente eliminado.
Quando o acaso é injetado nesse sistema de representação da paisagem urbana — foco de interesse da artista — , Beiguelman restaura, na representação, a possibilidade da deriva. A mesma deriva que nos dá o direito de caminhar livre pela cidade sabendo que a cada esquina dobrada uma grande surpresa pode acontecer, como tão bem nos ensinou o personagem do flanêur, criado por Charles Baudelaire. Um golpe potente contra o tédio da previsibilidade.
A videoinstalação Cinema Lascado | Minhocão é obra paradgmática nesse sentido. Projeto arquitetônico dos mais absurdos, criado em 1969 durante a ditadura militar, a via elevada denominada popularmente de Minhocão transformou uma das regiões mais agradáveis e tradicionais da cidade de São Paulo numa mancha territorial miserável, desvalorizada e suja. Uma fratura social. Construção feita para ser ruína!!!
Beiguelman a bordo de um carro filmou a via elevada em alta definição, percorrendo-a por cima e por baixo. Ao submeter essas imagens a programas de edição já obsoletos no mercado tecnológico, as ruínas começaram a se revelar não apenas na superfície das imagens — como acontece com a maioria daqueles que se aventuram a representar o caos citadino -, mas na própria natureza, no DNA que forma tais imagens. Mais que imagens, meta-imagens.
Essas imagens que pensam imagens, formadas por superfícies rugosas, quebradiças e por vezes com cores inesperadas provenientes de relações binárias conflituosas, levam a percepção ocular a procurar a origem da sua instabilidade. Território resultante de forças distintas e contrárias que, a partir de movimentos tectônicos provocados pela artista em seu interior, resultam em superfícies que se esforçam por harmonizar e criar uma estética errática a partir dos escombros formados por essas forças antagônicas.
A experiência de estar diante da projeção agigantada de Cinema Lascado | Minhocão é radicalmente semelhante a estar em deriva por esse cenário em ruínas que nossa civilização criou para espelhar suas próprias idiossincrasias.
Este texto faz parte do episódio “São Paulo Autofágica” da revista Bravo!. Clique aqui para acessar o episódio.