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A cruz dos caiapós

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h27 - Publicado em 16 ago 2018, 08h18

Livro resgata a história de Damiana da Cunha, caiapó que atuou como mediadora entre índios e colonizadores na Goiás do século 18

Por Aline Khouri

Índia caiapó nascida por volta de 1779, convertida ao cristianismo mais tarde, ela foi batizada Damiana da Cunha pelo então governador da capitania de Goiás D. Luís da Cunha Meneses. Personagem obscura, ela exerceu papel de destaque na história do Brasil, auxiliando na mediação de conflitos entre índios e os colonizadores na região. Em uma tentativa de resgatar essa trajetória, a historiadora Suelen Siqueira Julio escreveu o livro Damiana da Cunha: uma Índia entre a Sombra da Cruz e os Caiapós do Sertão (Eduff).

Segundo Suelen, Damiana era vista como uma “soberana dos caiapós” e realizava expedições para convencê-los a viver em aldeamentos, criados pelos colonizadores para aculturar os indígenas — a catequização e o uso de mão de obra faziam parte desse processo. Damiana era respeitada pelos índios e transitava cultural e fisicamente entre esses dois mundos. Seu prestígio entre os brancos dependia da sua habilidade de negociação com os caiapós, o que ajuda a compreender a razão de sua contribuição com o projeto colonial.

Na obra, a historiadora descortina não apenas Damiana, mas também as histórias de outras indígenas cujas atuações foram negligenciadas e resumidas a estereótipos relacionados, sobretudo, à vitimização e à sexualidade. Na entrevista que se segue, Suelen explica que o foco na perspectiva de gênero mostra uma história muito mais complexa do que é aprendido nas escolas.

Você foi apresentada à Damiana da Cunha enquanto procurava um tema de pesquisa relacionado a mulheres indígenas. Que aspectos da biografia dela mais te atraíram?

Em um primeiro momento, o que mais me atraiu foi o conjunto de caiapós com os quais Damiana da Cunha lidava, principalmente aqueles que ela buscava levar para o aldeamento. Fiquei pensando em como seria a vida deles, o que esperavam quando decidiam seguir Damiana, o que viveram no aldeamento; como decidiam fugir de lá e qual o impacto dessa volta na vida deles e dos que haviam ficado no sertão. Infelizmente, são questões pouquíssimo documentadas e seria inviável um trabalho sobre esses caiapós especificamente. Daí vi que poderia abordar essas questões através da própria Damiana que, como figura de algum destaque no mundo colonial, teve sua vida um pouco mais documentada. A partir da decisão de pesquisar mais sobre a vida dela, chamou-me a atenção o fato de uma mulher ocupar esse papel de destaque e passei a prestar atenção em como os cronistas do século 19 e mesmo escritores do século 20 avaliaram isso. Percebi uma tendência em transformar discursivamente essa atuação política em um papel missionário e pedagógico, talvez numa busca de colocá-la mais perto do que os estereótipos de gênero esperam de uma mulher.

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Qual é a importância de aliar a historiografia às relações de gênero?

A primeira importância é: fazer uma avaliação mais correta da sociedade. A história sempre foi marcada pelo gênero, no caso, o masculino. Só que esse androcentrismo era (e ainda é) passado como algo neutro. Falar explicitamente das relações de gênero é corrigir essa distorção. É perceber que tais relações atravessam não só a história das sociedades, mas também o próprio modo de escrever História. As próprias pessoas que se tornam historiadoras estão imersas em sociedades cujas relações de gênero influenciam no modo como o passado é visto. Além disso, atentar para as relações de gênero no passado nos capacita a descobrir novos temas, novos personagens (sobretudo mulheres) e novas questões, que inclusive nos ajudam a pensar o presente. Um exemplo de questão urgente do presente é: as mulheres têm as mesmas oportunidades de se tornarem historiadoras de destaque? Numa sociedade em que os cuidados com filhas e filhos, por exemplo, ainda recaem, sobretudo, sobre as mulheres, estas têm as mesmas oportunidades de estarem à frente de órgãos de fomento à pesquisa, reitorias de universidades, editoras etc? Pensar em tais questões nos ajuda a entender por que certos temas e historiadores têm mais destaque do que outros. E, se completarmos esta reflexão com os recortes de classe e raça, a coisa fica ainda mais complexa. Quantas historiadoras negras nós lemos durante a nossa formação universitária? E indígenas? O que sabemos sobre essas mulheres no passado? O que faremos para mudar esse quadro?

Embora novos trabalhos se concentrem em complexificar os indígenas na história do Brasil, as instituições de ensino ainda reproduzem principalmente a questão da aculturação e da resistência indígena. Como a revisão da historiografia pode chegar às escolas?

Nem sequer estou certa de que as instituições de ensino abordam aculturação e resistência. A meu ver há, antes de tudo, um grande silêncio sobre a história indígena. Às vezes, esse silêncio é quebrado por ruídos. Fala-se dos povos indígenas geralmente como algo do passado, com pouca ou nenhuma informação sobre seu presente. E geralmente é um passado remoto, lá por volta de 1500. Depois é como se fossem desaparecendo, por terem sido mortos ou por terem se “aculturado”, misturando-se à população, deixando de serem índios. Sobre a resistência, pouca coisa é dita, na verdade. É como se estivessem fadados a perder, diante de europeus supostamente superiores em tecnologia e inteligência. Essa visão racista precisa acabar. A história é muito mais complexa do que isso e não caberia nestas linhas. Para que a revisão da historiografia chegue às escolas, é preciso, em primeiro lugar investimento nas condições de trabalho docente. Eu posso chegar com o livro mais avançado sobre a questão indígena em sala de aula. Se a escola está caindo aos pedaços, se eu tenho 30, 40 estudantes amontoados numa sala de aula, se muitos desses estudantes não têm uma alimentação adequada, entre tantas questões, pouco ou nada adiantará. E, se como professor/a, o salário é baixo e para sobreviver esse profissional se desdobra entre muitas escolas e turmas, me pergunto: em que horário essa pessoa prepara uma boa aula sobre questão indígena? Que tempo dispõe para ler livros, teses, dissertações atuais sobre o tema? Além disso, o currículo escolar ainda precisa mudar bastante. No meio de tanta história da Europa e dos europeus no Brasil, os povos indígenas aparecem sufocados, restando para eles umas poucas palavras em sala e umas poucas páginas na maioria dos livros didáticos.

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Entre alguns estereótipos atribuídos às mulheres indígenas estão os de vítimas e de meios de reprodução, mas elas exerceram múltiplos papéis que são frequentemente desconhecidos. Como ocorreu o silenciamento dessas narrativas e como resgatá-las?

Esse silenciamento ocorreu de várias formas. Posso começar falando das fontes. Se compararmos as mulheres indígenas com outros sujeitos históricos, encontraremos um número muito menor de fontes sobre elas. Tais fontes foram produzidas por sujeitos brancos, europeus ou europeizados, homens comprometidos com a administração colonial. Assim, pouco espaço é dado às mulheres como um todo e às indígenas em particular nessas fontes. A própria historiografia também refletia a visão androcêntrica e eurocentrada, valorizando pouco a atuação das índias. Um lento movimento de mudança tem ocorrido. O resgate dessas trajetórias se faz revisitando as fontes, que, ainda que não sejam abundantes, mostram para nós uma imagem muito mais complexa do que a historiografia tradicional passou para nós. Olhar as fontes com o olhar atento e informado sobre as questões de gênero é um exercício possível e necessário. Mas nossas descobertas não podem ficar restritas aos gabinetes. Para que tais trajetórias individuais e coletivas das mulheres indígenas venham a público, é preciso que elas tenham espaço nos currículos escolares, nas salas de aula, nos meios de comunicação. E essa é uma luta que ainda estamos travando. Uma luta que deve ser, e que de fato o é, protagonizada pelas próprias mulheres indígenas. Mulheres que, a exemplo de Sônia Guajajara (pré-candidata à vice-presidência do Brasil, pelo PSOL), aponta para nós que tem algo errado numa historiografia que pouco ou nada diz sobre a atuação política, econômica e social das mulheres indígenas.

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Damiana da Cunha: uma Índia entre a Sombra da Cruz e os Caiapós do Sertão, Suelen Siqueira Julio. Eduff. 165 págs, R$ 29

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