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OLÁ,

A legalidade do horror na construção poética

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h47 - Publicado em 25 set 2016, 11h15
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Por Ruy Filho — Editor Revista Antro Positivo, crítico teatral, diretor e dramaturgo.

A artista catalã Angélica Liddell, radicada em Madri e, desde 1993, à frente da companhia Atra Bilis (bílis negra), conhecida pela força performática dos seus trabalhos, trouxe para a última edição do Festival de Artes Cênicas, Mirada, o espetáculo “¿Qué haré yo con esta espada?”.

Alguns diretores de teatro pedem para ser desafiados. São figuras perigosas e complexas, deslocadas e inteligentes, influentes, e infelizmente cada vez em menor número entre os jovens artistas. Sobreviventes do mercado de espetáculos ideológicos, determinam o submundo das vanguardas com tal domínio que ultrapassam sua condição tangencial, instituindo outro mercado, o de experimentações, ao serem apropriados e replicados por artistas de diversos lugares e culturas, como exemplos do verdadeiro fazer teatral.

Seus espetáculos são potências transformadoras, ruídos de profundo embaralhamento. Diretores que são mais. São criadores. E, dentre os especiais, poucos são sinceramente tão complexos e provocativos quanto Angélica Liddell.

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Espera-se de um espetáculo de Liddell a verborragia circunscrita na busca da artista pela compreensão de sua própria falência humana. Seus espetáculos partem sempre da desconfiança sobre si mesma, do ódio de sua trajetória e história, do desprezo pelo permanecer viva.

Exímia poeta, são discursos imprevisíveis até aos mais atentos ao seu trabalho, cuja reunião de palavras de rancor e indulgência constrangem no nível do insuportável. Não bastasse, sua performance em cena explora a pornografia de seu corpo, expõe sua feminilidade como espécie de caricatura e problema social, e esbarra, na presença da exposição máxima, os limites do aceitável.

A vontade é sempre subir ao palco e pará-la. Exigir-lhe o fim. Desistir e obrigá-la ao mesmo. Mas não dá. Quem enfrentaria essa mulher disposta a tudo? Quem enfrentaria a artista incontrolável? E qual de fato seria seu limite? É por desconhecermos as fronteiras que a confinam que se torna impossível invadir seu universo. Resta-nos assistir. E, impressionantemente, a cada trabalho nas últimas décadas, por mais que tentemos acompanhá-la, sempre está argumentativamente mais à frente e visceralmente mais ao fundo do poço. Poço que assusta por se revelar sem fim.

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O título do espetáculo estreado no Festival de Avignon, sua mais recente criação, é complexo: ¿Qué haré yo con esta espada? (Aproximación a la Ley y al problema de la Belleza). Segunda parte da Trilogia do Infinito, com quase cinco horas de duração, em três atos, a espada em questão é mesmo a palavra, o dizer. Mas, ao contrário do esperado, Liddell utiliza o longo primeiro ato e parte final do terceiro para costurar imageticamente uma narrativa simbólica, substituindo o discursivo que retornará no momento apropriado.

A peça aproxima Issei Sagawa, universitário japonês que canibalizou a colega como ação artística, na França de 1981, e os ataques por terroristas ao Bataclan, também em Paris, em 2015. A artista estava na cidade durante o ataque à boate, cidade esta que sempre fora, desde criança revela ela, seu maior sonho.

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Miticamente, Liddell se coloca como epicentro dos dois acontecimentos. Justifica sua descrença ao mundo e ao indivíduo como força motriz para o desenvolvimento dos fatos. Como se pudesse, com seu niilismo profundo sobre a existência, construir energias capazes de mover o todo ao mais terrível da destruição humana.

Nada disso é meramente uma estratégia dramatúrgica. Liddell não é simplista em momento algum. E nos oferece a compreensão dessa percepção pelo quão horrível fora sua infância próxima a retardados camponeses e abusadores de toda ordem. Uma vida terrível sublimada ao ser assumida publicamente, enquanto sucumbe ao destino de não poder ser outra.

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Voltemos às imagens, ainda. O espetáculo funde a perspectiva da Lei com a da Beleza. São oito garotas lindas, jovens, louras, magras, três atores japoneses, sendo Ichiro Sugae excepcional dançarino, outra atriz oriental, outro ator ocidental, um velha, e ela mesma. Um elenco que, por si só, já configura seu arcabouço simbólico às representações do Homem. Enquanto os japoneses ritualizam a beleza das meninas, essas são gradativamente dessexualizadas. Desnudam-se, e é lindo de ver. Masturbam-se, porém com lulas mortas; chicoteando as próprias costas, servindo-se de seus tentáculos ao estímulo dos sexos, misturando cheiros e líquidos e carnes. A beleza sucumbe ao asco provocando uma espécie de guerrilha. O belo deixa de ser produto erótico. O corpo esquece-se de suas seduções. E assistir ao grupo de garotas agride sobretudo pela dessacralização de suas perfeições. No proscênio, as cabeças decepadas de peixes fixam seus olhares duros em nós. Desafiam-nos. Quem, afinal, desejaria partes desses corpos, tal qual o canibal-homem-machista-terrorista?

O espetáculo anunciara, logo no início, a incapacidade francesa em produzir poetas como Shakespeare. Esse é o dilema maior explorado por Liddell, apropriando-se de Nietzsche para encontrar no potencial da violência concreta os estímulos essenciais ao desenvolvimento de forças poéticas. É o que nos exige aos gritos microfonados, a artista, já no início do terceiro ato. Quer nosso pior, que aceitemos as condições de nossos horrores, nossas bestialidades, sem artificiais explicações psicanalíticas, para chegarmos, enfim, à possibilidade de destruição plena, restando-nos somente a reinvenção completa.

Angélica Liddell ironiza a si mesma. Queria ser Thomas Ostermeier, repete incansavelmente. Assim poderia tudo. Ter dois metros, ser homem, ter estruturas e recursos, poder e influência inquestionáveis, direito a fazer o que quiser. O diretor alemão, um dos principais nomes no panteão dos diretores a serem desafiados, divide parte do reinado com o italiano Romeo Castellucci. Este fora confrontado pela diretora exatamente na estetização das cenas imagéticas, chegando a lembrá-lo pelas escolhas conceituais e estéticas. Agora é a vez de fazer o mesmo com Ostermeier. E Liddell vai bem ao provocar o espectador. No entanto, há um deslize no desejo de ser ambos. Castellucci tem deixado de ser tão simbólico; Ostermeier também não é mais tão desconstrutivo ao tratamento da narrativa. São os diretores de ontem, os trazidos por Liddell, e seria mais provocativo e impactante se a ironia ocorresse a partir do presente, comentando-os em tempo real, por um olhar apurado e ousado, e não pelo passado disponível à qualquer um e já há muito discutido, copiado e negado.

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Na resposta trazida ao título pelo espetáculo, Liddell acerta principalmente quando é mais próxima a ela mesma, também ao ampliar seu vocabulário acusativo ao simbólico, ao construir argumentos inversos ao politicamente correto dominante, quando se faz figura central à história em uma estrutura mítica. No entanto, carrega nos discursos, sobretudo nos últimos, um certo ser demasiadamente ela, exatamente quando quer ser o outro, não conseguindo escapar plenamente de si mesma, e não sendo o outro em profundidade. É outra, mas outra dela mesma. É alguém a ser descoberta se continuar a pesquisa em seus próximos espetáculos.

De todo modo, Angélica Liddell continua sendo um problema incontrolável ao mundo e ao teatro. E isso é uma das melhores notícias nessa realidade desumanizada e em colapso. Se o Homem fracassou como existência por não compreender a importância de aceitar seu pior ao desenvolvimento de leis poéticas novas, a diretora, por sua vez, fracassa genialmente ao querer ser o belo próprio de outro alguém, como se o devorasse em pedaços e rancores. Mas não seria esse exatamente o argumento do espetáculo?

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