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A melancolia verborrágica de Mark Kozelek

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h28 - Publicado em 24 Maio 2018, 06h14

Front man do Sun Kil Moon recusa retrospectiva e apresenta em São Paulo músicas de novo disco e diários de viagem em formato spoken word

Por Edson Valente

Já nos primeiros acordes do show, o homem que dita as ações no palco é surpreendido com o brilho dos holofotes. Incomodado pela súbita claridade, microfone em mãos, imediatamente pede que o cenário seja de novo escurecido, no tom azulado que predominava até então, e o faz seguindo a melodia da música. “Diminua as luzes”, ordena ao controlador da iluminação, tapando os olhos como quem é atingido por um sol escaldante. “É muito pra mim.”

Talvez seja pouco. O homem ali, que parte da plateia nem sabe de quem se trata — sua banda não é a principal atração da noite no festival Balaclava –, é Mark Kozelek. Talvez o termo lendário se aplique a ele para os que acompanharam a história do indie/folk americano no último quarto de século, ou adentrem por genealogias mais específicas como a do slowcore, estilo de som de andamento mais vagaroso do qual Kozelek, pode-se dizer, é um dos precursores.

Foi em meio a um azul pantanoso, no palco do Tropical Butantã, zona oeste de São Paulo, em um Dia das Mães, 13 de maio, que, aos 51 anos, o artista apresentou sua mais recente persona — ou, melhor dizendo, as novas incursões criativas do Sun Kil Moon, grupo-projeto que encabeça desde 2002.

Mark e sua obra de fato se confundem; suas canções são confessionais desde os primórdios de seu primeiro grupo, Red House Painters, em cujos registros pela gravadora 4AD os vocais assombrados do compositor entregam suas perturbações em meio a arranjos esparsos. Nostalgia, inadequação, vidros de remédio e amores frustrados davam o tom daquele tempo; mais de 20 anos depois, seu espectro de angústias passou a abranger certo cinismo até em relação às mazelas pessoais. Ao tirar o casaco durante o show, por exemplo, desdenhou da própria barriga.

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Quem foi à apresentação em busca de uma retrospectiva pode ter se decepcionado. Quando alguém da plateia pediu por uma faixa de seu velho repertório, Mark foi categórico ao dizer que não toca mais as músicas de épocas tão passadas, acrescentando que tais composições deveriam ser institucionalizadas ou algo assim.

Seu caráter prolífico mal o mantém no presente. Assim, mostrou ao público paulistano músicas de um álbum a ser lançado em novembro, sendo que acaba de acrescentar a seu currículo um disco-solo. Também interpretou peças que disse ter escrito nos dias que antecederam ao espetáculo. Elas seguem muito do perfil de sua produção recente.

Mark tem narrado o conteúdo de uma espécie de diário de viagem; sua própria jornada perceptiva. São fatos e impressões colhidos ao longo de turnês, quartos de hotel, cidades, relações diversas, transformados em récitas musicadas — no show, esteve ladeado por guitarra, bateria e teclados e ocasionalmente foi também guitarrista. As letras, extensas, são em sua maioria lidas por ele em folhas de papel dispostas em um suporte para partituras. Um spoken word verborrágico, por vezes vociferado, que mistura temas variados, de trivialidades como um pedido de comida italiana a onomatopeias de animais domésticos, com disposição suficiente para uma declaração de ódio aos Gipsy Kings e até alguns gritos, meio contidos, de quem sempre esteve mais acostumado à introspecção.

Essa desenvoltura em cena contrasta com suas esquivas nos bastidores. Ciente de que ele só tem dado entrevistas por e-mail, tentei abordá-lo dessa forma, tanto por intermédio da assessoria de imprensa do Balaclava como diretamente com o staff da Caldo Verde, gravadora que o próprio Kozelek fundou. Não obtive sucesso — a assessora do festival me informou que ele não falaria nem mesmo quando estivesse por aqui. De qualquer maneira, guardei meus cartuchos para uma investida in loco, que resultou em nada, uma vez que o artista voltou para o hotel depois de passar o som no dia do show e escafedeu-se logo depois de sair do palco, já havendo anunciado para o público, durante a apresentação, que partiria no dia seguinte — havia tocado no Chile na noite anterior.

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Sendo assim, quem sabe eu não tenha escapado de alguns jabs — Mark é fã de boxe (e também do AC/DC, de quem gravou um álbum de versões) e possui um histórico de entreveros com a imprensa, notadamente com uma jornalista do The Guardian que, em 2015, foi insultada pelo músico com um quê de misoginia — ele a chamou de “bitch”.

https://www.youtube.com/watch?v=IWwAUAWN5lQ

Paradoxalmente, seus relacionamentos com as mulheres inspiram algumas de suas produções mais personalistas, desde os tempos de Red House Painters. No show do festival Balaclava, no Tropical Butantã, dois petardos emocionais mais à moda do “velho” Mark — ou nem tanto, visto que provenientes do álbum Benji, lançado pelo Sun Kil Moon em 2014 — foram guardados para o epílogo: Dogs, em que trata com amargura das experiências do primeiro beijo, do primeiro amor, da primeira trepada, da rejeição; e I Can’t Live Without my Mother’s Love, reflexão dolorida sobre o inconformismo diante da perda — e desfecho iluminado do cartão de visita aos que desejavam conhecer, ou reconhecer, um talento.

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