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A mulher da luz

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h25 - Publicado em 26 out 2017, 11h09

Musa do cinema nacional, a agora diretora Helena Ignez fala sobre “A Moça do Calendário”, filme baseado em um roteiro inédito de Rogério Sganzerla

Helena Ignez na Mostra de Cinema de Tiradentes

Por Rafael Spaca

Helena Ignez é considerada uma lenda do cinema nacional. Como atriz, foi dirigida por cineastas como Glauber Rocha (Pátio, 1959), Roberto Farias (Assalto ao Trem Pagador, 1962), Júlio Bressane (Cara a Cara, 1967), Joaquim Pedro de Andrade (O Padre e a Moça, 1966), além de Rogério Sganzerla, com quem foi casada e fez vários filmes, entre eles O Bandido da Luz Vermelha, (1968). Um time que, apenas, formou nossa identidade cinematográfica.

Também roteirista e diretora, Helena Ignez tem principalmente curtas no currículo, e agora se prepara para lançar o longa A Moça do Calendário, filme baseado em um roteiro inédito de Sganzerla. O protagonista do filme é Inácio (André Guerreiro Lopes), que durante o dia trabalha como mecânico de automóveis e, à noite, como dançarino. Mas seu pensamento está na exuberante garota que estampa o calendário da oficina. E é a partir desta idealização que a história se desenrola, gerando conflitos de toda ordem no rapaz. A estreia está prevista para 2018. A seguir, Helena fala do filme, da sua carreira e do Brasil ontem e hoje.

Quando você atuava em filmes como A Grande Feira, O Grito da Terra, A Mulher de Todos, Copacabana Mon Amour, O Bandido da Luz Vermelha, Assalto ao Trem Pagador e O Padre e a Moça passava pela sua cabeça que um dia estaria atrás das câmeras dirigindo um filme?

Sim, considerava absolutamente normal dirigir. Gostava de filmar e fiz com Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Ivam Cardoso o making off dos filmes da Belair que resultou em A Miss e o Dinossauro — Bastidores da Belair, editado 35 anos depois, em 2005. O filme estreou na Itália no Torino Film Festival na Retrospectiva Rogério Sganzerla e foi exibido em vários festivais no Brasil.

Claudinei Brandão e André Guerreiro Lopes em cena de “A Moça do Calendário”

Por que filmar A Moça do Calendário?

A Moça do Calendário é um filme essencial. Ele naturalmente deveria existir, e isso desde que fomos contemplados no primeiro edital de longa-metragem da SPcine. Ele é de uma atualidade absurda e foi muito bem recebido pela plateia e crítica desde a sua primeira sessão no 50ª Festival de Cinema de Brasília.

O quão difícil é tirar um projeto do plano das ideias e levá-lo ao cinema?

Como se pode imaginar o trabalho é grande, mas existia até o impeachment uma quantidade de editais que poderiam suprir o desejo do realizador. No caso de A Moça do Calendário, desde a adaptação do roteiro em 2014, seleção no edital e produção tivemos dois anos de trabalho. O filme será lançado em 2018 pela Pandora Filmes nos cinemas do Brasil.

Quanto tempo leva, em média, da vontade de fazer um filme ao seu lançamento?

O momento político atual é completamente instável, caótico e é completamente desfavorável à criação artística. O projeto de A Moça do Calendário nasceu antes do impeachment e pôde ser bem sucedido e rápido.

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A Moça do Calendário parte de um roteiro original de Rogério Sganzerla e você o adapta. Como foi esse processo de adaptação?

A adaptação foi radical, a começar pelo ambiente social do filme, do subúrbio do Rio de Janeiro de 1987 para acidade de São Paulo de 2017.

Helena Ignez e Rogério Sganzerla em 1970

Você o faz pensando com a sua própria cabeça ou é inevitável pensar imaginando como Rogério Sganzerla o pensaria?

A Moça do Calendário é um filme pensado por mim e possui um forte viés feminista.

Em seus filmes encontramos sua filha, Djin Sganzerla, e seu genro, André Guerreiro Lopes, no elenco. Como é filmar com eles?

Sempre é muito bom trabalhar com Djin e André. No caso de A Moça do Calendário eles estão mais uma vez extraordinários interpretando os seus personagens instigantes.

A família por perto te traz segurança?

Sempre traz amor.

Como é feita a montagem do elenco dos seus filmes?

A escolha do elenco dos meus filmes se faz através da identificação dos atores com os personagens. Sempre foi assim em todos os meus filmes, não só com Djin e André, mas com, por exemplo, Ney Matogrosso e Simone Spoladore que povoam a minha imaginação.

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Onde encontra os atores com que gostaria de trabalhar?

Nos palcos e na vida. Prefiro atores e atrizes que de alguma maneira tenham sua imagem preservada. Não gosto de estereótipos conhecidos.

Djin Sganzerla em cena do filme

Djin Sganzerla trilhou seu próprio caminho, conquistou reconhecimento graças ao seu talento. O que vê nela que lembra você como atriz e o que tem nela e que não tem em você como atriz?

Djin é imensamente criativa e tem uma fotogenia maravilhosa. Como atrizes temos a mesma obsessão pelo trabalho, pela perfeição na interpretação. Acredito que temos os mesmos valores na interpretação, apesar da diferença que temos naturalmente de idade.

Outra grande atriz que está em seu filme é Zuzu Leiva. Fale a respeito dela, como chegou nela?

Amo Zuzu como atriz há muito tempo. Em Luz Nas Trevas — A Volta do Bandido da Luz Vermelha, ela faz uma participação deliciosa. No teatro já trabalhamos juntas dirigidas por André Guerreiro Lopes. Zuzu e Djin formam um incrível par em oposição a A Moça do Calendário.

Há espaço no cinema atual para personagens como Ângela Carne e Osso, que você interpretou em A Mulher de Todos?

Em “A Mulher de Todos” (1969)

A visceralidade de Angela Carne e Osso pertence ao próprio filme. Não é um gênero, é um filme de arte e sempre haverá espaço pra uma obra de arte, desde que haja um realizador capaz de fazê-la.

Quando lê um roteiro ele já aparece em imagens na sua cabeça ou todo o enredo vai se construindo com o tempo?

A primeira coisa que me interessa no filme são as ideias. São essas ideias a origem da imagem. Os planos vão se encaixando como em um quebra-cabeça, o tempo todo.

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E a fotografia, por qual razão imagens em preto e branco em pleno século 21? É para causar estranhamento nas pessoas?

Algumas sequências da oficina Barato da Pesada em que Inácio, o personagem, trabalha como mecânico são em preto e branco — ou melhor…em tons de cinza, aliás belíssimo. No mais o filme é todo colorido. É extremamente funcional o resultado do preto e branco nessas sequências. Recebemos elogios e nenhum estranhamento foi registrado.

Seus filmes têm uma preocupação muito grande com as imagens, com a beleza delas, um olhar arguto tão forte como a dos diálogos. Tem essa preocupação em “prender” o espectador pelos olhos?

Cinema é imagem e som, é claro que todo o tempo desejo ter a magia necessária para prender o espectador, não só pelos olhos mas pelos ouvidos. Sou atenta às trilhas sonoras e já fui recompensada com alguns prêmios.

Sua narrativa também não é a convencional, isso é um estilo ou uma forma de marcar presença?

Como atriz sou performática, criei um estilo. Com a narrativa do filme tenho a mesma energia de inovação. Meus trabalhos sempre marcaram presença. “Quem tem estilo não envelhece”, escreveu Rogério Sganzerla.

Pra quem você faz cinema?

Para o meu público. que cada vez cresce mais, com a presença de muitos jovens e as ativistas em geral, junto a pessoas de todas as idades que se emocionam com meus filmes e recebem deles força e alegria. Sempre tem sido assim com todos os meus filmes, longas e curtas.

Você se inspira em algum cineasta ou procura marcar uma identidade própria para filmar?

Gosto de Rogério, Glauber, Júlio Bressane e Tsai Ming-Liang. Me inspiro em alguns jovens, como Cristiano Burlan. Recentemente assisti na TV o primeiro filme de Affonso Uchoa, A Vizinhança do Tigre. Com Cristiano protagonizei junto a Jean-Claude Bernadet Antes do Fim. Foi um prazer e honra.

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Alguns críticos dizem que sua direção possui uma vertente teatral. Concorda? Por quê?

Alguns críticos dizem mais do que isso, que possivelmente sou a única cineasta com uma vertente teatral tão clara. Concordo e fico feliz com essa percepção. O teatro está na minha essência.

Hoje, com Whatssap, Facebook, etc. as pessoas ainda se interessam, ou até mesmo conseguem, ficar quase duas horas concentradas fruindo um filme?

Se o filme for bom acredito que as pessoas ainda possam ter a felicidade de fruir um filme por “quase duas horas”.

Em “Copacabana mon Amour” (1970), de Rogério Sganzerla

Sua obra sempre foi voltada para questões profundas, que estimulem debates e reflexões. Fazendo um exercício de imaginação, se algumas de suas fitas como atriz fossem lançadas nos dias de hoje, onde há patrulha de todos os lados, a sua vida como atriz seria mais difícil, ou não?

Atravessei como atriz e como cidadã períodos tão retrógados como agora, onde convivem a corrupção e a hipocrisia. E como Jean Cocteau digo “minha vida nunca foi fácil”.

Regredimos nesse aspecto? Não há mais debates inteligentes e sim “torcidas” contra ou a favor?

Os debates atualmente são muito inteligentes, em que estão pessoas que desejam mudar a realidade opressora, seja ela por razões de cor ou sexo, ou de intelectuais e críticos estão preservando a arte. Os debates são bons e gosto de assisti-los e participar deles.

Em 1960 tínhamos a ebulição do feminismo em meio a debates sobre libertação sexual e uso de métodos contraceptivos modernos. Como analisa as pautas do feminismo hoje em dia?

O feminismo cresceu e está pensando bem. O movimento é forte e abrangente. O movimento feminista é também anticapitalista.

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Na mesma década de 60 a profissão de atriz ainda não era reconhecida, era até mesmo escandalosa, porém, atualmente, é motivo de status. Por qual razão isso mudou?

Isso mudou graças a diminuição do machismo. Não acredito que ser atriz é um status, mas uma vocação. Não me interesso nem um pouco pelo comercial, nem pelo sucesso como único objetivo nesta profissão.

O que mais te decepciona na política brasileira?

Atualmente tudo! Tem que sair todo mundo, a renovação tem que ser geral. O Congresso é um vexame, nunca houve uma desmoralização tão grande. Não podemos esquecer que apenas 3% da população aceita esse governo. Por que Temer e seu “quadrilhão” ainda continuam no poder?

Por que seus filmes não atingem o grande público? Culpa dos distribuidores ou do público?

Por que não há nenhum interesse nisso. Não me interessa o grande público, mas o público. Meus filmes não são blockbusters, são inteligentes, de arte e tem um bom público interessado neles.

Dá para conciliar a conquista da crítica e do público num mesmo filme ou eles possuem razões distintas para gostar de um filme?

Acredito que sim. Dá para conciliar a crítica e o público. Um exemplo clássico disso é O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla

O que te estimula a sair de casa para ir a uma sala de cinema?

Um filme original, um filme de invenção, que não será tão rapidamente visto nos canais de TV.

Helena na peça “Tchekhov É um Cogumelo”

A sua biografia, escrita pelo saudoso Alberto Guzik, será lançada? O que tem ali?

O que existem são entrevistas minhas para o Alberto Guzik, a quem admirava muito. No período que estivemos juntos como atores fazendo Vestido de Noiva, em 2008, com os Satyros, Alberto pediu para eu gravar meus depoimentos para um livro a ser editado pela Imprensa Oficial. Ele faleceu antes de fazer o livro, e que tenho é a cópia desses depoimentos sobre a minha vida até então.

Qual é a sensação de produzir cultura, você que tem marcado presença nos palcos também?

Adoro fazer teatro e cinema, e se o nome disso é produzir cultura, a sensação é a melhor possível. No teatro terminei a semana passada uma temporada maravilhosa, em que o público aplaudia com fortes bravos, que é Tchekhov É um Cogumelo, dirigido por André Guerreiro Lopes. Foi uma experiência maravilhosa e vamos retomar a peça para nova temporada e em festivais em 2018.

Essa é a missão da sua vida?

Sim. Também sou uma matriarca com filhas, netas e dois bisnetos e a felicidade deles faz parte dessa missão.

Já está trabalhando em seu próximo filme? Fale a respeito.

Em 2018 vou fazer A Mulher da Luz, dirigido por Sinai Sganzerla, minha filha, e estou concentrando forças, já que sou eu a personagem do filme. E estou ensaiando Ringue, peça de teatro dirigida por Cristiano Burlan em que faço uma Ring Girl, uma experiência incrível e acredito que, como em todos os trabalhos de Cristiano, será ótima.

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