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A nova ordem

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h21 - Publicado em 17 jun 2019, 07h47

Bravo! lança com exclusividade um capítulo inédito do romance distópico de Bernardo Kucinski, que será lançado pela Alameda Editorial

trecho da arte de Enio Squeff para a capa de A Nova Ordem

O jornalista, escritor e professor titular aposentado da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Bernardo Kucinski, que tem entre seus romances publicados K e Pretérito Imperfeito, ambos pela Companhia das Letras, lança nesta terça, dia 18 de junho, às 18h, no Centro Maria Antonia, seu novo romance, A Nova Ordem, pela Alameda Editorial.

Distopia sobre um Brasil que mergulha em uma ditadura militar, A Nova Ordem detalha a aniquilação do humano por um governo de força, seguindo de perto a história dos que trabalham para implementar um programa de extermínio e docilização da população, usando novas e velhas tecnologias. Em um presente carregado de passado, povoado por personagens alegóricos e muitas vezes patéticos, Kucinski escolhe trilhar um caminho em que o sucesso das políticas de controle são justamente o ponto mais frágil do efetivo controle social.

A Bravo! publica com exclusividade um capítulo de A Nova Ordem:

VII.

o general fagundes celebra o

desbaratamento da subversão.

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o extermínio dos utopistas capturados

Brasília amanheceu de céu limpo. Será mais um dia de canícula e secura extrema. Do perímetro verde, onde se agrupam os comandos militares e as centrais de inteligência, jipes e caminhões partem velozes em todas as direções levando soldados. É o segundo dia da operação Quimera, concebida para aniquilar a subversão utopística*.

Da ampla janela da sala de reuniões do Estado Maior, o General Lindoso Fagundes acompanha satisfeito a movimentação, cofiando seu espesso bigode, cultivado ao estilo dos seus dois ídolos, o general Augusto

Pinochet e o marechal Josef Stalin. Para Lindoso, cada um a seu modo exerceu o poder supremo, o de ditar quem pode viver e quem deve morrer.

Os relatórios que lhe chegam são tranquilizadores. Os utopistas foram apreendidos na cama, de pijamas. Muitos de seus simpatizantes, também. Os do Sudeste estão recolhidos em navios ancorados em Santos e na Guanabara. Os do Sul, no Quartel de Santa Maria; os de Belém, Recife e todo o Nordeste seguem para Fernando de Noronha.

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O fator surpresa foi determinante, como ensina Clausewitz. O grande estrategista referia-se a um inimigo externo, mas suas ideias geniais aplicam-se melhor ainda ao inimigo interno, insidioso, porque se mistura à população.Um inimigo que se faz invisível e traiçoeiro, agindo com baixa intensidade, porém alta sofisticação, o general Fagundes não se cansa de repetir a si mesmo e a seus subordinados.

Ah, se fosse uma guerra convencional. Mas não. Os utopistas são pessoas comuns. Indistinguíveis. E não se expõe, são espertos, sutis, não praticam violência. Muito diferentes dos black blocs que depredavam bancos, mascarados e vestidos de preto, fáceis de serem abatidos. A maioria dos utopistas são estudantes, filhinhos de papai. Outra categoria é a dos artistas e intelectuais que os apoiam sem, no entanto, romper os laços com as instituições. Cada um deles foi identificado e localizado. Poucos escaparam, os que se embrenharam na mata ou que estavam em trânsito. Talvez uns dez por cento, conclui o general, ao ler os relatórios.

O general rememora os meses de preparação, cruzando os nomes dos que recusaram empréstimo bancário com matrículas escolares e as contas de luz e

de água. Nunca as Forças Armadas demonstraram tal eficiência, ele avalia. E a um custo baixo. As empresas cederam os dados sem cobrar um tostão. Só tiveram que pagar pelo software israelense que identifica subversivos e gays pelo rastreio de palavras chaves trocadas pelo WhatsApp.

O general volta-se para a longa mesa em torno da qual estão reunidos os oito generais de quatro estrelas, oito brigadeiros e oito almirantes de esquadra que compõem o Alto Comando da Nova Ordem. Como oficial mais antigo e da maior arma, Lindoso Fagundes coordena o Alto Comando. Embora a patente de marechal tenha sido extinta há décadas, é assim que ele se sente, dando ordens a generais. Stalin era Marechal da União Soviética, Pinochet tinha cinco estrelas. Ele é o Augusto Pinochet da Nova Ordem.

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Por motivos táticos, modera seu otimismo.

— Senhores, posso informar que a operação Quimera transcorre de modo satisfatório. O inimigo foi surpreendido. Temos, em decorrência, cerca de dez

mil prisioneiros, mantidos nos locais predeterminados. O objetivo desta reunião é decidir o que fazer com eles. Evidentemente não podemos mantê-los, não só por razões de logística, também de segurança. Capitão Gonçalves, apresente o plano.

Um oficial jovem, da arma da cavalaria, sobe ao pódio

— Os americanos nos ofereceram a Ricina, é uma dioxina poderosa, bastam 3 miligramas para matar um adulto. E não há riscos na manipulação, ao contrário do polônio e do antrax, que também foram cogitados. Mas nos faltam instalações adequadas para dar fim aos corpos. A alternativa mais prática, discreta e barata é o mar. Nem é preciso envenenar, basta anestesiar. Ainda temos as instruções recebidas dos chilenos nos idos gloriosos, mas era preciso testar em águas brasileiras. Fizemos o teste com seis corpos, leves e pesados. Largados a 300 milhas náuticas da costa do nosso litoral Sul. A partir do Paraná, nenhum retornou ao continente. Amarraremos um lastro em cada corpo para impedir que flutuem e sejam avistados por alguma embarcação.

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— Quantos aviões serão necessários? Pergunta o general Epaminondas.

Quem responde é o General-Brigadeiro Feitosa, o mais antigo do corpo de brigadeiros.

— Dez Hercules, fazendo duas decolagens por dia. Em seis dias é possível dispor de seis mil corpos. Não é conveniente prolongar. Talvez um dia mais, se houver mau tempo.

O capitão sinaliza a uma operadora no fundo da sala, que acessa um power-point, e retoma explicação:

— Senhores, como podem ver pelo gráfico, cruzando os dados do patrimônio familiar com a ideologia do pai, identificamos um grupo de 2.000 utopistas filhos de famílias ricas para os quais propomos um programa de reeducação, tendo em vista a importância dessas linhagens na manutenção da nossa estrutura de dominação social e controle da terra.

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— Um momento! Interrompe o almirante Euclides

— É preciso punir também os filhos das elites, para que seus pais e principalmente seus irmãos entendam do que se trata! Afinal, eles traíram sua classe, o que não se pode dizer dos demais.

— Perfeitamente, almirante, para esse fim, separamos um outro grupo, de 500 utopistas filhos dessas famílias com mais de 24 anos e formados em ciências sociais ou filosofia. Avaliamos que são irrecuperáveis e mais úteis abatidos. Damos um forte recado, como diz o almirante Euclides, e demonstramos equidade.

— Em que se baseia a avaliação de que os 2.000 podem ser recuperados? Insiste o almirante Euclides.

O capitão Gonçalves parece se empolgar com a pergunta, que lhe dá a oportunidade de exibir conhecimentos amplos:

— Baseia-se na constatação de uma diferença significativa entre utopistas das classes médias e os de famílias tradicionais. Os da classe média, especialmente da baixa classe média, têm estrutura psíquica semelhante à do criminoso comum, são movidos pela frustração e a inveja dos que possuem mais, ao passo que os nascidos em famílias tradicionais rebelam-se contra a autoridade do Estado, que para eles tem significação análoga à da autoridade paterna, em especial, porque estamos falando de famílias patriarcais.

— Rebelam-se contra o Estado como se fosse contra o pai?

— Exatamente, almirante. A raiz do delito político do utopista de família rica é edipiana; o poder do pai, que ele substitui pelo poder do Estado, precisa ser destruído pela ação revolucionária, para que a pátria, que ele identifica com a mãe, seja possuída.

Murmúrios de admiração percorrem a mesa.

— Além disso, volta a falar o capitão Gonçalves, concluímos que era de vital importância regenerá-los porque a dominação oligárquica exige não só a hereditariedade biológica, também a de ideias e valores.

— E como regenerá-los?, insiste o almirante.

— Fazendo com que entendam a origem de sua rebeldia e reconheçam sua identidade de classe. Essa é a base da operação Reabilitação. Serão transferidos para dois campos que estão sendo erguidos, um nas Agulhas Negras e outro nos Afonsos, e submetidos a um programa intensivo de modelagem cerebral.

— Pelas minhas contas ainda falta solução para cerca de dois mil utopistas, observa o general Epaminondas.

O capitão Gonçalves retoma a palavra:

— São os detidos em pequenos grupos, em lugares remotos. Para esses, temos a experiência exitosa da Operação Cátedra. Covas de três metros de profundidade por três de largura, fáceis de serem abertas por escavadeiras que os empresários nos cederam. Cada cova abriga até três camadas de corpos e não há limite de extensão. As empreiteiras tocam obras em todo o país. Isso nos facilita muito. Sobram utopistas isolados que podem ser enterrados em cemitérios locais, como indigentes, ou incinerados em fornalhas de usinas de açúcar.

Os oficiais generais entreolham-se impressionados pela amplitude e detalhamento do plano. Batem na mesa com seus lápis, em sinal de aprovação. A um sinal do General Fagundes o capitão desce do pódio e a reunião é encerrada. Na saída, o general Epaminondas se aproxima do general Fagundes e pergunta à meia voz:

— E os padres? Você não falou dos padres utopistas.

— Epaminondas, omiti de propósito. Com a Igreja é preciso cuidado redobrado. Nós temos uma tradição de 200 anos, eles têm de dois mil anos.

E baixando mais ainda voz ele acrescenta:

— Chama-se operação Capela, código 27, nada por escrito, tudo verbal, igual fizemos com os gays.

Bate uma displicente continência e apressa o passo para pegar o jatinho da FAB que o levará a São Paulo. Vai ter uma festinha no Clube Militar e ele tem a certeza de que a Marilda vai estar.

*No Estado Maior houve debates sobre a designação correta do movimento subversivo. Deveria ser “revolução utópica”, “revolução utopista” ou revolução utopística”? Foi descartado o adjetivo “utópica” por sua conotação de movimento fantasioso, sem nenhum perigo e fixado o adjetivo substantivado “utopista” para designar a pessoa subversiva e o adjetivo “utopístico” para o movimento.

Serviço:

A Nova Ordem, de B. Kucinski ( Alameda Editorial, 180 páginas)

R$ 46

Lançamento:

18/6, às 18h, no Centro Maria Antonia (Rua Maria Antonia 258/294, São Paulo)

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