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A orquestração do caos

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h22 - Publicado em 19 dez 2017, 13h26

Crítica: adendo imprescindível à instalação “The Clock”, no IMS, ensemBle baBel interpreta peças de Christian Marclay e cria parede multisensorial de reorganização de tempo-espaço

Por Edson Valente

A arte é uma forma de organizar e dar sentido à confusão existencial que nos cerca. Com a evolução dos signos, pode trilhar também um ir e vir simbiótico que contempla tanto a tentativa de dar alguma ordem ao nonsense como a de incorporá-lo à sua paleta de recursos.

Medir o tempo é dimensionar o infinito, relativizando-o para que possamos nos situar tanto nas pequenezas do cotidiano como na evolução histórica do universo.

Tomemos, então, essas notas para compor um breviário do que foi a apresentação do grupo ensemBle baBel, inserida no contexto da exposição The Clock, do artista suíço-americano Christian Marclay.

Marclay trabalha com sobreposições de linguagens. Seus experimentos visuais e sonoros se iniciaram no longínquo 1979, sob a batuta de influenciadores como John Cage. Tornou-se, então, um manipulador do turntable para fazer de quebras e desconstruções a matéria-prima de seu império.

Passados 38 anos, a videoinstalação The Clock, que deu a Marclay o Leão de Ouro na 54ª Bienal de Veneza, em 2011, chegou ao Instituto Moreira Salles, na av. Paulista, onde se estabeleceu entre setembro e novembro deste ano. Trata-se de uma composição realizada com milhares de cenas de televisão e cinema que fazem menção aos horários do dia, que, nas imagens da tela, correspondem aos reais do lugar em que a obra é exibida, em um contínuo de 24 horas absolutamente fragmentado, bem nos moldes da relação que estabelecemos com o decorrer do tempo.

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Instalação “The Clock” no IMS

Como adendo imprescindível à exposição, o auditório do IMS recebeu, no dia 13 de dezembro, a apresentação do grupo suíço ensemBle baBel, devidamente credenciado para interpretar peças sônicas a partir de colagens audiovisuais de Marclay. Foram quatro delas no concerto.

A música experimental, conceitualmente, abre espaços consideráveis para a estranheza, a improvisação, o tatear de possibilidades criativas. No caso das execuções do ensemBle no Moreira Salles, o processo de encadeamento da linguagem musical requereu tipos de sinergia que extrapolam, em várias direções, qualquer concepção linear de tempo e espaço, ou, mesmo, a restrição da identidade autoral a um grupo fechado de indivíduos.

Em paralelo, o andamento das peças conferia um senso de profunda organização metódica do caos inerente a seu surgimento — uma espécie de sincronia retroativa com símbolos culturais retrabalhados pela música tocada ao vivo, no momento então presente.

Foto: Edson Valente

Na peça Fade to Slide (2012), os músicos interagem com uma projeção de fragmentos de filmes, editados em acelerada sucessão de cenas que exigem respostas imediatas e pertinentes dos instrumentos. As facadas em Psicose, um panorama de O Último Tango em Paris, a destruição de uma penteadeira, cavalos em disparada, discos de vinil em círculos estendem o pano de fundo para a fluência dos sons que se emendam, também fragmentados, dando corpo a uma vertigem de estímulos.

Grafitti Composition (1996–2002) se propõe a ser um retrato musical da cidade de Berlim. Aqui, as bordas de contenção do aleatório se expandem pelo espaço urbano berlinense, ao longo do qual Marclay espalhou partituras em branco que foram preenchidas pelos passantes de formas diversas — com palavras, desenhos ou notas musicais, por exemplo, em um exercício de liberdade a partir de uma pauta vazia, codificada seguidas vezes pelo olhar do artista e pela leitura dos músicos e decodificada na interpretação dos espectadores.

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A ficção estilizada das HQs dá o tom de To be Continued (2016). Marclay produziu uma partitura de 48 páginas apenas com colagens de trechos de “comic books”. Cada página deveria ser “lida” durante 30 segundos por cada um dos instrumentistas, à sua maneira, o que abre um universo representativo que engloba backgrounds e conceitos muito particulares dos executantes e dos ouvintes. As imagens, no caso, são formadas mentalmente, individualmente, a partir dos sons, uma vez que não há projeção de vídeo.

A quarta peça, Screen Play, que inspirou a obra The Clock, sobrepõe intervenções. A primeira das camadas surge do filtro da câmera, instrumento que produziu os filmes cujos trechos são recortados para compor o vídeo em projeção. Sobre as imagens, dissociadas dos áudios originais das películas, linhas, pontos e outros grafismos coloridos são inseridos por animação. A música do ensemBle, por fim, concilia essas bases visuais esticando-lhes para um terceiro vértice, o sonoro.

A performance do ensemBle baBel — guitarra, saxofone, clarone, bateria e contrabaixo — se afigurou como uma Wall of Vision and Sound. Nessa parede multissensorial, elementos que perdem em ressonância enquanto fragmentos ganham em riqueza de significado quando imersos no todo de uma nova configuração espaçotemporal.

Em síntese, é a isso que se propõe a arte perante o bombardeio de escapes ilusórios sobre o cotidiano, sugerindo algum equilíbrio por uma representação compreensível do caos — ou incorporando-o ao método de cognição.

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