A república da pirataria
A crise política brasileira serve como combustível para “A Tensão Superficial do Tempo”, novo livro de Cristovão Tezza
Por Gustavo Zeitel
O professor Cândido dá aulas de química num cursinho moderno e descolado de Curitiba, a capital da Lava Jato. Mora com a mãe, dona Lurdes, que sobrevive com a pensão militar deixada pelo marido. Para amenizar a solidão da mãe, Cândido pirateia diversos filmes da internet. Não se trata, porém, de uma dupla personalidade. Certo dia, o professor copia o clássico Ascensor para o Cadafalso (1958), de Louis Malle, para a madrasta de uma aluna, Antônia, por quem ele se apaixona.
Em A Tensão Superficial do Tempo, lançamento da editora Todavia, o escritor catarinense Cristovão Tezza acerta ao transportar o submundo da internet às páginas do romance. Com o estabelecimento das grandes plataformas de streaming, o mercado audiovisual criou a expectativa de que a pirataria digital iria se arrefecer. Doce ilusão. Durante o isolamento, filmes tornaram-se a salvação para muitas pessoas. Ao mesmo tempo em que os serviços sob demanda registraram um aumento na audiência, a pirataria sofreu um processo de ebulição.
Ao levantar dilemas da tecnologia, Tezza mostra confiança ao promover um passeio por torrents, peers, codecs e bitrates. O vocabulário da pirataria indica, sem dificultar a compreensão do leitor, uma realidade invisível com grande influência no cotidiano. Da mesma forma, Tezza brinca com o amor e sua química, nos momentos em que o personagem principal divaga sobre a paixão por Antônia. “Eu não consegui me livrar do pH da saliva”, pensa Cândido.
O humor esvai-se na medida em que o amor é tratado em sua completude. Após o término com a poeta Hélia, o relacionamento com Antônia se revela malfadado. No romance, a fragilidade masculina é marcada por dois pontos: a hesitação de Cândido ao se sentir atraído por Líria, sua aluna e enteada de Antônia, e o fantasma da ex-mulher. Hélia lança, em diversas ocasiões, um olhar de reprovação para as atitudes gaguejantes do professor. “Você vai passar a vida empilhando HDs?”.
A melancolia de Cândido está em perfeito acordo com o pano de fundo vislumbrado por Tezza. Em A Tensão Superficial do Tempo, o passado oferece subsídios temáticos ao presente, e o futuro não se desgarra do agora. Com procedimentos utilizados em obras passadas, o tempo narrativo aponta para o Brasil governado pela extrema-direita. “Você ficou sabendo o que ele disse hoje? Está certo que antes era uma roubalheira só, mas precisava ser isso aí?”, dona Lurdes indaga. A polarização política é construída no microcosmo do cursinho. A professora Juçara representa uma fiel bolsonarista. “Diante da roubalheira, o que diziam os tais ‘intelectuais’”?, questiona.
O novo romance encerra a chamada trilogia do acaso, também formada por A Tradutora (2016) e A Tirania do Amor (2018). A Tensão Superficial do Tempo perde em engenho e poesia para a obra antecessora, mas aumenta, de maneira interessante, a voltagem política da produção literária do autor.