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A salvação é pelo risco

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h32 - Publicado em 21 jun 2017, 08h08

Para cada sintoma, uma obra de arte à sua espera: Dostoiévski para febre, Mahler para enxaqueca e uma boa série para vícios em geral

Por Eduardo Wotzik*

Para falta de ar, prescrevo Chopin: dois noturnos, durante cinco noites consecutivas. Febre? Caetano, duas a três vezes ao dia; e Crime e Castigo, à noite, um capítulo, antes de dormir. Mas se é gripe o que você tem, dessas que não te largam, a prescrição é cinema. Um bom filme. Pode ser um musical à tarde. Não desperdice-se com drogas, farmácias, drogarias, botecos nem sarjetas, academias ou fila de banco. Use-se. Enxaqueca, dessas que não consegue abrir o olho. Deita no quarto, apaga a luz e ouça uma Sinfonia de Mahler. Recomendo também A Morte de Isolda, se ainda amanhecer com uma pontinha de dor. Obesidade, teatro. Vá ao teatro ver coisa boa. Alimente-se. Para cada sintoma, uma obra de arte à sua espera. Menopausa, olhe um quadro de Monet ou uma obra do Tunga, por 20 minutos. Bolero de Ravel, de oito em oito horas, também alivia o mal-estar.

Para alergias em geral, Beethoven de seis em seis horas, depois Tom Jobim, depois um pouquinho de João Gilberto, Elza Soares cantando a capela em looping. Se não resolver, comece tudo de novo, até sentir-se. Leia Manoel de Barros, um poema por dia se tiver pressão alta. Já para pressão baixa, prescrevo Ferreira Gullar. Uma frase do Millôr depois do café previne todo tipo de doença.

Aviso: cada indivíduo deve procurar aquela obra que lhe faz bem. O que é bom para uma pessoa pode ser prejudicial à saúde de outra; cada qual tem de procurar aquela obra de arte mais eficaz à sua saúde. Advirto que as obras e sua eficácia têm prazo de validade. Passado esse prazo, volte ao seu médico, feiticeiro, sábio, professor, que, culto, saberá conduzi-lo adequadamente. A arte cura, a arte salva.

Empodere a arte em sua vida, e teremos mais galerias, teatros, livrarias, casas de shows e cinemas nas nossas esquinas, e menos, muito menos farmácias, drogarias, bancos e hospitais. O que você gasta com remédios inúteis, invista em arte. Garanto: se inspirar e expirar o belo, pelo menos dez vezes, ao dia, estará afastado de muitos dos males que aí estão. Decore um poema de Fernando Pessoa, e, se seu sintoma persistir, repita-o em voz alta à frente do espelho, sempre depois do banho.

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Importante distinguir arte de genéricos. Genéricos não fazem o mesmo efeito. É preciso garimpar o original. Shakespeare, de preferência em inglês. Traduções (salvo exceções) costumam diminuir o efeito do remédio. Então Shakespeare sempre. Nelson Rodrigues de três em três horas. Preventivos. E assim, em breve, muito em breve, voltaremos à sociedade grega que considerava a arte não só cultura, e educação, mas departamento de saúde, do ministério da saúde.

Câncer? Ache um circo. E corra atrás dele. Ou fuja com ele. Alcoolismo? Dependências de todo o tipo? Uma boa série (Breaking Bad, House of Cards, Família Soprano) já ao acordar. Tome com água. E assim, em breve, muito em breve, o caderno de cultura vai virar primeiro caderno.

A humanidade usou toda sua capacidade de pensar inteligentemente para bolar dois sistemas geniais para suportar a crueza da vida, sua injusta finitude, a dor dos acidentes, o medo da morte, a humilhação da doença, e conseguir manter a vida mais quentinha: o sistema religioso e a arte. Ambos, conectados com o silêncio, o vazio, o não sei, a sede de saber, a curiosidade, e o desejo de servir o outro. Noventa por cento de nossas ziquiziras são produzidas pelo desamor (ensinava Nelson), ou pela alma magoada, e saem, no banho, com um bom choro e esfregão. Se você cantar no banho, garanto, somem em poucas semanas.

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Não confunda arte com entretenimento, nem passatempo. É preciso trabalhar sua sensibilidade para saber separar a coisa da outra. Tem hora que a doença pega grave, e então, procure um médico (ele estará lá de braços abertos à sua espera), ou procure um hospital, que, vazio, te tratará como um rei (que é como você merece). Plano de Saúde? Faça já a assinatura do Teatro Municipal de sua cidade, da temporada de Ópera, do Ballet do ano, dos seus concertos preferidos, das próximas e todas as peças das Fernandas Montenegro e Torres. E viva. Viva a vida!!! (Como quis Eurípedes). Vida longa e variada! (Como quis Ésquilo). E para prisão de ventre, não há indulto, anistia, ou habeas corpus que solte. Só melhora, quando estancar o roubo, e todos os vermes corruptos estiverem na cadeia. Mas isso é de outro departamento. Ou não.

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*Eduardo Wotzik é diretor teatral, em cartaz com a peça Estudo para Missa para Clarice (até 25/6, no CCBB-Brasília)

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