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“Acho perfeitamente possível fazer humor ferino, crítico e engraçado sem pisar em minorias ou…

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h37 - Publicado em 27 abr 2017, 14h43

Na série de entrevistas com quadrinistas brasileiros é a vez do inquieto chargista Renato Aroeira

Imagens cedidas por Aoreira

Por Rafael Spaca

Quando e em que circunstância o desenho chegou em sua vida?

Desenho desde moleque… Meu pai percebeu que eu gostava de rabiscar e me deu três livrinhos da Ediouro, de bolso: como desenhar animais, como desenhar pessoas (anatomia) e perspectiva. Adorei, e mergulhei neles. Poucos anos depois, comecei a ser pago por isso aos dez anos…

Você fez faculdade de engenharia, passou para física e depois para matemática. Isso significa que o desenho nem sempre esteve entre as suas preferências?

Eu achava mesmo que seria um cientista. Na verdade, mesmo ganhando um dinheirinho com desenho (ilustrava os livros de minha mãe), não parecia uma “profissão” na minha mente.

Você se abastecia de gibis e livros desde criança?

Sim, desde que aprendi a ler, e isso foi cedo.

É preciso ser um leitor voraz pra ser um desenhista ou é só necessário ter sensibilidade para captar o que está acontecendo ao redor?

Não sei dizer se é absolutamente necessário, mas ajuda. Eu acredito que a leitura (especialmente a literatura ficcional, romances, novelas, contos) desenvolve a mais fantástica forma de sensibilidade, a empatia. Também ajuda muito ser obsessivo; a voracidade é obsessiva, e desenhar — vorazmente — todo o tempo livre é essencial.

Quando criança, quais eram as suas principais referências? E hoje, quais são?
 
Carl Barks, um fabuloso desenhista do mundo Disney, e Quino. E a coleção “gênios da pintura”. Só bem mais tarde descobri todos os outros, o underground, os franceses e belgas, os Fumetti, mais pintura, o realismo socialista, o Chico Caruso, o Levine, o Ziraldo e o Jaguar, o Lan. Hoje? Uai, sô… Ainda gosto de muitas coisas diferentes, de tudo um pouco.

O sonho de todo chargista é ter seu trabalho reconhecido e difundido. Hoje os jornais são a melhor plataforma para o sucesso?
 
Os jornais, o que hoje entendemos por jornais, morreram. Eu realmente acho isso. Ainda vão se arrastar por aí muito tempo, mas morreram. Não o jornalismo, este vai ser praticado sob um “novo modelo de negócios” (argh!). Mas essa estrutura pesada, a impressão (caríssima), a lentidão da coisa toda… Simplesmente não vão perdurar. Mas a charge precisa mesmo estar atrelada a um meio que distribua notícias. Quando digo charge, não precisa ser desenhada. Pode ser um “meme”, pode ser um gif. E qualquer mídia social é um lugar adequado pra isso. O jornal retornará dentro dessas mídias, mas bem diferente. Mais pessoal, digamos.

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Você teve a oportunidade de trabalhar para o jornal O Globo e Brasil Econômico. Estes jornais te davam liberdade?
 
Alguma. Depende da época, depende de quem editava. No Brasil Econômico e no Dia, tive realmente muita liberdade. Ainda tenho.

O que pensa quando escuta que os profissionais que trabalham em um determinado veículo (tevê, rádio, jornal, etc.) nada mais fazem do que dar voz aos patrões?
 
Isso não é verdade como regra. Há jornais que prezam (em maior ou menor grau) a independência de seus profissionais, e há jornais que não. A mesma coisa vale para os profissionais. Há quem preze sua independência e liberdade, e há os que querem ser a voz do patrão. Mas acho que há cada vez menos clima pra jornalismo realmente independente dentro das redações, e mais vozes patronais. Na verdade, acho até que algumas direções de jornais têm se aproveitado dos “passaralhos” frequentes pra fazer pequenas “limpezas ideológicas” nos seus quadros. Só desconfio, não tenho dados.

Os personagens da vida pública brasileira e mundial são alvos constantes de seus desenhos precisos. Como escolher, diante de tantos acontecimentos num único dia, o seu alvo?
 
São muitos assuntos, mas normalmente me concentro nos “poderes centrais”. Quero dizer, faço mais Temer do que Crivella ou Pezão, a não ser que algo grande ocorra… De qualquer modo, as escolhas são menos conscientes do que poderiam. Mas a intuição geralmente faz um bom trabalho.

Além de personagens reais, a mídia é constantemente criticada em suas charges. Por que?
 
Se eu critico os poderes, preciso criticar a mídia. Não é o quarto poder? E há muito tempo ela vem exercendo à vera esse poder, e cada vez mais ela decide as pautas do planeta. Não é saudável tamanha força ficar “imune às críticas” ou aos controles sociais, sob o escudo da liberdade de imprensa. Bendita liberdade de imprensa, aliás. Imprensa ruim e venal ainda é melhor do que nenhuma imprensa. Mas isso não isenta esse baita poder de ser exercido, como os outros, sob vigilância atenta.

Muitos desenhistas também são músicos. Por que isso acontece?
Deve ter alguma coisa a ver com o lado do cérebro, pois o contrário também é verdade… Muitos músicos são também pintores ou desenhistas.

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Fale sobre a sua segunda profissão, a de saxofonista.
Tenho um gosto nostálgico em relação ao sax, gosto dos tenores de personalidade, antigos, como Coleman Hawkins, Ben Webster, Sonny Rollins, Dexter Gordon… Adoro Pixinguinha, e há alguns anos já toco com um trio de choros. O choro é fascinante, vicia. Mas também sou baladeiro, gosto de jazz e bossa, gosto de boleros. O sax é um instrumento expressivo e prefiro usá-lo assim. Adoro tocar, como adoro desenhar; mas vivo disso, é trabalho… Portanto, há dias em que detesto ambos os trampos. Mas não são muitos.

Suas charges ilustram a primeira página do jornal carioca O Dia. É muita responsabilidade?
 
Já não é assim há alguns anos. Estou na página de opinião. Mas foi assim no Globo (eu fazia duas por semana, e o Chico, o titular, fazia cinco) e também no Dia. E sim, a responsabilidade é maior.

Como foi dividir o espaço com o Jaguar?
 
Foi uma honra. O cara é legendário e é mais engraçado que todos nós. Mas, infelizmente, ele não está mais no Dia

O silêncio é fundamental para executar seu trabalho ou faz ouvindo músicaOuço a Roquette Pinto, algumas vezes, ou alguma música que eu esteja estudando… Mas muitas vezes fico só com o ronronar dos meus gatos.

Você diz que seu estilo é o ataque. Isso não te causa dor de cabeça?
 
De vez em quando, claro. Se eu bato, é natural que apanhe.

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Já sofreu processo?

Já, uns dois ou três…

Se arrependeu de alguma charge?

Ah, sem dúvida. Mas não me lembro de quais as charges, exatamente…

Muitos dos seus desenhos virualizam na internet. Qual deles mais se orgulhou em fazer?
 
Difícil dizer um. Mas sim, há alguns…

Você, quando desenha, vislumbra a possibilidade de repercussão instantânea na internet?
 
Sei que a internet pode ser assim. De vez em quando até acontece com uma charge minha. Mas normalmente estou dentro de uma pequena faixa, ou bolha, que repercute meus desenhos com regularidade. Tenho uma “tiragem” modesta, mas é um público leitor ativo e participante, e essa é a grande vantagem da rede.

O politicamente correto te angustia? Qual é o limite para o ataque e o humor?
 
O politicamente correto me angustia muito, mas o politicamente incorreto me angustia mais ainda. É um terrível dilema, mas a cada dia me sinto menos confortável com certas abordagens do humor. Acho perfeitamente possível fazer humor ferino, crítico e engraçado, bom de verdade, sem pisar em minorias ou sacanear oprimidos…

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Política, religião e futebol se discutem?  Sim. Política e religião são estruturas de poder, e poder tem que ser discutido e criticado. Futebol é uma forma de arte coletiva, e deveria ser discutido nesse viés, como arte. Nelson Rodrigues e João Saldanha, por exemplo, faziam isso. Mas a galera prefere a zoação. Não deixa de ser uma forma de discussão…

Essa temperatura política, de escândalos de corrupção a acirramento entre ideologias (esquerda x direita), isso é um prato cheio pra você ou nesse campo é preciso mais prudência para explorar?
 
Ah, é um prato cheio, sim. Prato esse que também é cheio de riscos. Há mais lugares de fala, há mais questões sensíveis e há mais tendência à reação violenta do que nunca. Digamos que os oprimidos estão de saco cheio. Claro, então estas reações são justas e tudo o mais, mas quem consegue relaxar morando em um campo minado? Mas não posso simplesmente evitar a polêmica. Acho que a única opção possível para um artista é respirar fundo, confiar nos seus instintos e mergulhar no mundo das escolhas. Escolhas éticas. Mas antes de tudo e principalmente, ele precisa falar do tempo dele. Olhar em volta e descrever. Sou também, além de artista, um crítico. Sou duas vezes obrigado a me levantar e apontar o que eu vejo e me incomoda…

Várias de suas charges causaram polêmica e muitas foram premiadas. O que é melhor para um chargista: polêmica ou prêmio?
 
Algumas poucas foram premiadas. Bem… Um prêmio traz reconhecimento e, eventualmente, até aquilo que o Tom Jobim chamava, despretensiosamente, de “um dinheirinho”. Não somos mercenários, mas o trabalho artístico geralmente é mal pago, e cash vem sempre a calhar. Por outro lado, a polêmica muitas vezes termina em processo, agressão, ofensas e argumentum ad hominem no pé da orelha… Escolha difícil, hein? Não estou sendo irônico; é difícil mesmo. Muitas vezes, essa mórbida atração pela verdade (é o que, geralmente, causa a polêmica) é irresistível, mais do que o reles e vil metal. Em outras vezes, não.

O que você recomenda pra quem está começando? Iniciar seu trabalho em jornais pequenos, locais, criando um público cativo, como foi o seu caso, ou hoje com a internet isso não é preciso?

Há poucos jornais de qualquer tamanho, e cada vez menos. Internet é o veículo, claro. Qualquer um pode publicar (tornar público) o que quiser, a qualquer momento. Aproveitem. Montem um blog, disparem os desenhos no Instagram, ou Facebook, ponha no Twitter… Mantenha uma periodicidade e regularidade, aprenda. Interajam com o público, abram os olhos e os ouvidos para as críticas. Só tenho trivialidades e lugares comuns, mas funcionam tão bem que seria um pecado não dizê-los…

Qual a charge que gostaria de fazer e ainda não fez?

É uma resposta nada original, mas a única possível… a próxima.

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