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Adeus português

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h12 - Publicado em 26 out 2021, 08h09

Na coluna Poelatria, os versos do português Alexandre O’Neill e as traduções da poesia provençal por Augusto de Campos

Por Carlos Castelo

Pelo poema que segue abaixo, o português Alexandre O’Neill (1924–1986) ficou conhecido, a partir de 1958, como “o poeta do adeus português”. A lírica de O’Neill, que sempre manteve traços do seu passado como fundador do surrealismo lusitano, fala aqui de um amor perdido e da situação política obscura de Portugal. E as expõe como poesia de alta patente.

UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia a dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

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Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

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Pouco conhecido por essas plagas, mas conhecedor da poesia brasileira como poucos, O’Neill é mais um daqueles (inúmeros, infelizmente) bardos que já deveriam ter sua obra completa lançada em nosso país. As honrosas exceções são Tempo de Fantasmas e No Reino da Dinamarca.

Ficam os parabéns para a Editora Moinhos, por trazer ao leitor brasileiro o biscoito fino da produção de Alexandre O’Neill. E a dica a outros editores de que não podemos dar um adeus aos portugueses, mas um sejam bem-vindos.

+ POESIA

A poesia provençal sempre foi uma paixão de Augusto de Campos, apesar da sua tradução apresentar dificuldades extraordinárias. Augusto revelou que só depois de muitos anos conseguiu duas das primeiras edições críticas da obra dos poetas Arnaut Daniel e Raimbaut d’ Aurenga. Só porque um amigo lhe enviou cópias xerográficas de uma biblioteca dos Estados Unidos. Tais edições são fundamentais para as versões, já que os textos dos séculos XII e XIII são manuscritos em italiano, languedociano, catalão ou francês dos séculos XIII e XIV — e podem apresentar muitas variantes e incorreções.

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Todo esse preciosismo agora pode ser lido em Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. Edição da Laranja Original. Vale cada verso.

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