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Alegoria tropicalista

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h27 - Publicado em 16 ago 2018, 09h02

Leia trecho inédito do livro “Das Vanguardas à Tropicália”, que Guilherme Granato lança nesta terça-feira (21) na Casa das Rosas

Alegoria tropicalista: crítica ao engajamento esquemático e assimilação de novas influências

Por Guilherme Granato

Como escreveu Celso Favaretto em Tropicália: Alegoria, Alegria, “o tropicalismo considera a alegoria como procedimento”. Contrariando as tendências que atuavam no sentido de projetar a identidade nacional por meio de modelos totalizantes, o movimento buscou escancarar as contradições que incidiam no processo de modernização em curso. As canções tropicalistas edificavam-se como mosaicos em que diferentes elementos da cultura nacional presentificavam-se de forma contraditória e desenraizada, promovendo a corrosão de estilos, gêneros e ideologias dentro de uma atmosfera ao mesmo tempo festiva e caótica, afirmativa e tensa. Ao contrário do padrão das canções da MPB politicamente orientadas, que se inspiravam em uma fórmula para enunciar uma mensagem programática, o tropicalismo extraía seu efeito primordialmente do modo de construção. Os processos construtivos tropicalistas não podem ser decodificados em nenhum padrão, tendo como gesto definidor a assimilação. O apanhado de referências é ilimitado, como sugeriu Favaretto:

[…] bricolagem de fragmentos e resíduos de poesias, músicas e falas públicas consagradas, contraponto metalinguístico do arranjo musical, entonação do cantor. Aí convivem Olavo Bilac e poesia concreta, Roberto Carlos e Beatles, música de consumo e música de vanguarda, procedimentos surrealistas, cubistas, dadaístas e mau gosto.Materiais artísticos nobres, sons e ruídos aleatórios etc.

Em Verdade Tropical, ao relatar em detalhes a feitura da canção Alegria, Alegria, Caetano Veloso afirma que, em vez de uma sonoridade homogênea, buscou-se “utilizar uma outra sonoridade reconhecível da música comercial, fazendo do arranjo um elemento independente que clarificasse a canção, mas também se chocasse com ela”. A sonoridade escolhida pelo compositor foi a de uma banda de rock. Tal escolha escamoteava o fato de que a canção, na verdade, era uma marcha que, por sua vez, havia sido decalcada de outra marcha: A Banda, uma canção de sucesso do já popular compositor Chico Buarque. Sobre tal semelhança, escreveu Veloso:

Na verdade, o fato de ser uma marchinha fazia de “Alegria, Alegria”, no contexto do festival, uma espécie de anti “Banda” que não deixava de ser outra “Banda”. Os três primeiros versos das duas canções são permutáveis sob as respectivas melodias.[…]Isso revela que ambas as canções se dirigiram a expectativas formais bem sedimentadas no gosto do público — ambas são, portanto, igualmente “antiquadas” — e ressalta o parentesco entre o personagem que diz “Estava à toa na vida” (“A Banda”) e o que se vê “caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento” (“Alegria, Alegria”).

https://www.youtube.com/watch?v=H44xLqXNQ2Y

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Ao optar por um arranjo “americanizado” para uma canção decalcada de outra já consagrada pelo público, de autoria de um compositor amplamente aceito no ambiente da música engajada-nacionalista, Veloso trabalhou no sentido de aproximar referências opostas, colocando em xeque os valores estético-políticos do público. Note-se que sua composição descrevia um estado de espírito oposto àquele de A Banda. Enquanto essa remetia ao ambiente cultural de uma pequena cidade interiorana que se via encantada pela passagem de uma banda de rua, a outra descrevia as múltiplas sensações de um habitante em uma grande cidade, bombardeado por estímulos e informações de todo tipo, demarcando uma atitude que pode ser interpretada como apologética ao intercâmbio cultural internacional. No entanto, conforme destacou Veloso, as duas assemelhavam-se no caráter até certo ponto redundante ou “antiquado”, de fácil aceitação, insinuando a previsibilidade do gosto e da praxe intelectual do público (universitário, “de esquerda”), que se julgava, acima de tudo, crítico.

Sobre a mesma canção, escreveu o compositor baiano: “de certa forma, o que queríamos fazer equivalia a ‘samplear’ retalhos musicais, e tomávamos os arranjos como ready-mades”. Na alusão explícita à (anti)técnica artística inaugurada por Marcel Duchamp, pode-se reconhecer o procedimento típico do alegorista descrito por Peter Bürger, que desloca as referências do seu ambiente original, realocando-as de forma a desestabilizar o seu sentido original. Nesse caso, a colagem de gêneros e a ambiguidade intertextual estabelecida pelo compositor desestabilizam o próprio “sistema” da música popular enquanto engrenagem de ação política. Nesse contexto, o verso “e uma canção me consola” parece querer explicitar “a função catártica, festiva e apaziguadora que adquiria a música de protesto no clima de hipóstase populista da cultura”.

Como percebeu Carlos Basualdo, o verso “por que não?” traz um dispositivo semântico complexo:

A frase contém uma pergunta que não se expressa como tal, uma afirmação suspensa pelo tom interrogativo, e uma negação contradita pelo caráter afirmativo e inquisitorda proposição. Interessa, sobretudo, o fato de que não se trata de pôr em cena uma pura negatividade, nem uma afirmação dogmática.

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O “Por que não?” repetido na canção “limita o limite” imposto pelas balizas ideológicas que patrulhavam o cenário musical e ironicamente pergunta:

Por que não pensar a identidade nacional brasileira como um processo aberto, em desenvolvimento permanente?Não como uma busca interminável das origens — como queria o modelo herdado da Europa -, mas sim como uma aposta, permanentemente renovada, na incorporação e elaboração seletiva dos estímulos culturais, seja qual for sua procedência. Por que restringir, aprioristicamente, o rol de experimentos possíveis a serem realizados a partir de uma forma artística determinada?

Em outro trecho de seu relato sobre o processo criativo por traz da canção, Veloso faz uma observação sobre o caráter de sua composição,o que sugere uma alteridade em relação à postura crítica doutrinária dentro da MPB: “havia a distância necessária para a crítica — pra mim uma condição de liberdade –, mas havia a alegria imediata da fruição das coisas”.

Como relata o compositor, o bordão que dá nome à canção foi retirado de uma fala recorrente de Chacrinha, apresentador de um programa de auditório muito popular “que as empregadas domésticas não perdiam”. Outro verso emblemático da canção — “nada no bolso ou nas mãos” — foi extraído da última página do livro As Palavras, do filósofo Frances Jean-Paul Sartre. A aproximação de um fragmento daquele que Veloso classificou como o “mais profundo dos livros”, com um bordão de uma figura televisiva popularesca, exemplifica o procedimento alegórico operado pelos tropicalistas. As referências são reacomodadas sem a preocupação com adequar a forma de expressão ao conteúdo prévio –logo opera-se aí um deslocamento do sentido de tais referências, que passam a funcionar enquanto meras ruínas de seu significado original. Essa teia polifônica de significantes vazios estabelece uma abertura semântica por meio da experiência sensível. A dimensão descontínua entre signo e sentido, própria da construção alegórica, encontra uma maneira singular de se manifestar dentro da forma canção. A propriedade dessa forma musical de remeter a vários códigos sem perder a unidade foi aproveitada no intuito de embaralhar as instâncias da cultura. Nas possíveis tensões estabelecidas entre melodia e letra, instrumentação e interpretação, harmonia e arranjo, constrói-se um mosaico que instaura uma distância entre os elementos que o compõe ao mesmo tempo em que os aproxima.

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Lançamento: Das Vanguardas à Tropicália, de Guilherme Granato.
21 de Agosto, às 18h.
Museu Casa das Rosas, Av. Paulista, 37, São Paulo, SP.

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