Arqueologia afetiva
Por Facundo Guerra
Muitas coisas que com o passar dos anos se mostram grandiosas (ou pelo menos grandiosas da perspectiva de um humano) têm origem mesquinha.
No meu caso, o fato de não me encaixar na identidade de brasileiro foi o motivador para o meu trabalho de redimensionar lugares que julgo importantes para São Paulo. Cheguei ao Brasil miúdo, com cinco anos, e fiquei completamente perdido com a mudança, a ponto de emudecer por anos e precisar destravar a língua com o auxílio de uma fonoaudióloga.
E anos passando e eu não conseguia me encaixar na identidade arquetípica do brasileiro: o ziriguidum, Pelé, o carro, vôlei, pelada e Senna, o sambinha na esquina, a breja e o parangolé todo. Tentei, cheguei a ir vestido de amarelo e verde na escola para ser aceito pelos meus cruéis amiguinhos, para tão somente acabar sendo usado de apagador humano de uma lousa repleta de garranchos da aula de inglês. Não era essa a minha identidade, e fiquei à deriva, sem desenvolver um sentimento de vínculo, por anos.
Quando cheguei da Argentina, fui direto pra Santa Cecília, bairro do centro expandido de São Paulo, e aqui fiquei toda a minha vida. O centro sempre foi meu território, onde cresci e onde minhas memórias de afeto se encontravam e aos poucos passei a me identificar com esse lugar e a partir dele minha identidade de pertencimento começou a se formar. Sequer me julgava paulistano, mas paulistano do Centro. Recordo-me da Santa Cecília dos anos 1980 e minha Caloi de dez marchas rasgando a Angélica às quartas-feiras — era o dia da acessível meia entrada do Belas Artes, o que deixava o ingresso ainda mais possível para um moleque de classe média como eu — o hábito de amarrar a bicicleta na amurada do Riviera com suas colunas de fumaça de cigarro, cheiro de conspiração e desejo que, para mim, a porta do lugar emanava.
Era assim que eu o via, como uma espécie de lugar interditado para meninos, onde a verdade morava e era para poucos, onde a vida adulta existia com toda sua carga de imponderável. Acorrentava meu transporte ali, na porta do inferno, e atravessava a Consolação para entrar no Belas Artes e me sentir um pouco adulto. E foi assim, com o Belas Artes e o Riviera que fui me transformando em adulto e paulistano. Mas afinal das contas, o que era ser paulistano em uma terra onde ninguém era paulistano? Que espécie de identidade emergia a partir da gente de São Paulo?
Eis uma questão subjetiva, porque São Paulo, com seu tamanho colossal, não permitia a emergência de uma identidade de cidade, mas de bairro, e isso faz total sentido: São Paulo, a cidade, não passa de uma abstração. Ela em si é um continente, uma colcha de retalhos criada a partir da fusão de diversos bairros que se sobrepõem e que colidem em suas fronteiras. Se para a emergência do nacionalismo é necessária uma bandeira, um hino e um inimigo, temos isso nos bairros paulistanos: cada qual com um time de futebol, um centro próprio e um inimigo, normalmente o bairro vizinho. Daí vem as hostilidades entre Mooca e Tatuapé, Higienópolis e Perdizes, Barra Funda e Santa Cecília, Santa Cecília e Higienópolis, Zona Sul e Zona Oeste, Zona Norte e Leste. Se São Paulo é muito descomunal pra ser entendida como uma cidade, cada bairro em si faz o papel de uma, com seu centro e sua identidade.
São Paulo se apreende a partir do bairro, é daí que a identidade dessa cidade-continente emergiu na lógica da compartimentação produtiva: o carro, o shopping center, o condomínio (no caso das elites), o trabalho, a escola, o consultório do analista para tratar das neuroses que surgiam a partir desta vida segregada, o dinheiro, todos fiapos de identidade que nos ligavam à ideia de ser paulistano.
Esta lógica começou a entrar em curto-circuito há alguns anos, mais ou menos quando o capitalismo em si começou a mostrar sinais de fadiga. Não à toa que para o capitalismo funcionar bem ele precisa de corpos dóceis e divididos. A retomada das ruas de que somos testemunha em São Paulo de alguns anos pra cá demonstra exatamente que o modelo de cômodos disciplinares que era típica de uma cidade que se via pelo viés do dinheiro começou a dar sinais de falha estrutural. Daí cinema, gastronomia, arte, festas na rua, espaços áridos como o Minhocão e a Paulista sendo retomados pela população: tudo isso são efeitos, além do plano do discurso, de fissuras no interior do capitalismo turbo tal como o conhecemos.
Pois, se a identidade do paulistano sempre foi pautada pelo dinheiro e a produção e as novas gerações não se ligavam mais à esta identidade, o que colocar no lugar? Algo difuso ainda, sem muito nome ou características porque nos falta o distanciamento histórico para compreender esta retomada em curso das ruas, mas na minha opinião o Centro, e sua representação simbólica, tomou este lugar.
Porque São Paulo tem uma característica que lhe é única: a falta de referenciais de navegação. Talvez somente nas megalópoles da Ásia você tenha a desorientação que São Paulo lhe proporciona, com sua falta de lógica urbanística e sua carência de mobilidade. Se o carioca dispõe de referências naturais e o mar para lhe servir de bússola, em São Paulo estar perdido é uma condição natural. Tente remeter a uma época onde sair de casa sem um guia de ruas impresso no porta-luvas do seu carro era quase implorar pelo Minotauro.
Em um mundo onde se sabe permanentemente onde se está, São Paulo é cheia de dobras, de locais escondidos, de descobertas. Não é uma cidade para turistas, e talvez isto explique a sua ausência nas ruas. É uma cidade para viajantes, para pessoas dispostas a se perder e se encontrar. Nas dobras paulistanas, especialmente as dobras do Centro da cidade, seu eixo de navegação é psíquico. Não temos paisagens naturais ou mesmo cartões postais, mas paisagens humanas. Eis o que faz São Paulo interessante, sua gente e sua produção intelectual.
Sabia intuitivamente que São Paulo era feita de gente, e gente se encontra em aparelhos culturais: bares, cinemas, museus, praças e rua.
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Então, quando me perguntava o que me transformava em paulistano, não me encontrava na lógica da produção compartimentada. Sabia intuitivamente que São Paulo era feita de gente, e gente se encontra em aparelhos culturais: bares, cinemas, museus, praças e rua. A rua, os espaços públicos, são estes os lugares de contato com o outro, com uma existência completamente distinta da sua, e portanto, lugares de transformação através do conflito. Hoje muitos preferem a precariedade das ruas, com toda a sua potência, do que a experiência pautada e repisada dos espaços feitos para o consumo.
Quando um cinema de rua baixa suas suas portas pela última vez para dar lugar a um supermercado ou uma igreja pentecostal isso representa uma ferida narcisística para o paulistano: é como ver o mar comer pra sempre um pedaço de areia e praia. Uma possibilidade de transformação que se perde, um lugar de resistência à lógica do público-alvo que se vai. No limite, sentimos um golpe na nossa identidade como paulistanos.
Passei a buscar lugares que representavam muito para mim , um a um, investigar o que tinha sido feito deles e tentar redimensionar seu uso para o presente. Por isso quando encontrei o Cine Joia, sala de cinema no bairro da Liberdade que serviu para exibir filmes de diretores japoneses nas décadas de 1950 e 1960 para a comunidade daquele bairro e que havia se transformada em uma igreja pentecostal chamada “Ministério do Avivamento Contínuo” sabia que não adiantava trazer de volta o cinema. A nostalgia pode ser venenosa e representar uma armadilha. Uma sala de cinema de 1500 lugares não faz mais sentido no mundo de hoje, tinha que se respeitar sua história, mas ressignificá-la.
Ficou claro que não bastava encontrar estes lugares e recuperá-los do ponto de vista arquitetônico: toda a restauração é mentirosa e completamente inútil se não previr um projeto de uso para o espaço. Tampouco faz sentido recuperar o espaço em seu uso original, porque muitas vezes este uso já não dialoga mais com o espírito do tempo. Fica o desafio de encontrar o espaço, respeitar seu passado e projetá-lo no futuro e no presente, algo como um futuro do pretérito: se bem sucedido, o espaço ganha uma segunda chance e influenciará novas gerações de paulistanos. No pior dos casos, ele ganhou atenção pela última vez e as pessoas terão a chance de se despedir dele. Em qualquer um dos casos, aproveitar-se de uma história já existente, do ponto de vista do empreendedor, é uma maneira de recortar as inúmeras oportunidades que um projeto permite, além de ligá-lo com a memória afetiva de seus potenciais fruidores.
Quando abri o Vegas, na Augusta de 2005, minha ideia não era gentrificar ou revitalizar nada, mesmo porque acredito que o termo revitalização tem algo de cruel, como se pessoas com menos privilégios fossem menos vivas também do que nós, da elite. Era mais uma investigação do que me fazia paulistano: me lembrava dos rolês de adolescente, subindo e descendo a Augusta dos anos 1990, sem dinheiro para entrar nos clubes e nas boites e me divertindo conversando com as putas e as travestis que trabalhavam na rua, às vezes mendigando um pouco de carinho no final da noite de labuta delas. Aquele era meu território, aquelas ruas existiam também dentro de mim. Era natural que depois de ter perdido meu empreguinho eu pra lá voltasse. Logo depois desci pra Sé, pra depois subir novamente pra Paulista, sempre me perguntando o que me fazia paulistano.
Só mais tarde os lugares viraram negócios. É um exercício caro de busca de identidade, minha e de tantos outros que pensavam como eu e que se encontravam perdidos em uma identidade obsoleta de paulistano que era definida pelo trabalho, pelo dinheiro e pelo muro e que, urgentemente, precisava ser redimensionada.
Não somos a São Paulo do Borba Gato ou do Maluf: somos os antropofágicos, a São Paulo do Modernismo e dos Buarque de Holanda. A São Paulo da Roda Viva e do cruzamento da Paulista com a Consolação, da Ipiranga e da São João.
Este texto faz parte do episódio “São Paulo Autofágica” da revista Bravo!.Clique aqui para acessar o episódio.