Arquitetura, psicanálise e política
Em debate, arquiteto defende que as relações entre espaço construído, construção da subjetividade e acordos estabelecidos coletivamente são atravessadas pela política
Por Flavio A. D. Bragaia*
A relação entre arquitetura, psicanálise e política é um tema delicado. É sobre ele que o texto “Psicanálise das fachadas”, de Mauricio Puls, publicado no número 20 (mar.2019) da revista Quatro Cinco Um, empreende uma investigação. A partir da leitura de Desvios, de Gustavo Piqueira, e Conhecidos de Vista, de Letícia Lampert, o autor propõe, de maneira muito pertinente, que o espaço construído seja observado em suas relações que dizem respeito à construção de subjetividades e de relações políticas.
Essa mirada parece levar em consideração o apontamento freudiano de que, enquanto necessariamente interdependentes, os seres humanos, para viverem coletivamente, precisam fazer acordos — tanto uns com os outros quanto entre as diferentes instâncias do aparelho psíquico de cada um — ; acordos que, por sua vez, necessariamente implicam abrir mão de certas coisas para alcançar outras. E, dentre eles, a linguagem é um dos mais importantes. Isso porque, segundo as hipóteses formuladas por Freud — que atravessam toda a sua produção, mas são exploradas de maneira mais explícita em Totem e Tabu — , a linguagem é igualmente fundadora da vida coletiva e do aparelho psíquico, entendido como a vida anímica primitiva seccionada, pela própria linguagem, em consciente, pré-consciente e inconsciente. Se política é aquilo que diz respeito aos acordos que estabelecemos coletivamente a fim de vivermos em uma sociedade minimamente harmoniosa — recebendo a forma de acordos tácitos, regras de convívio e/ou etiqueta, contratos, leis, instituições etc. — , a construção de estruturas políticas e a formação da subjetividade são processos distintos, porém concomitantes, e que dialogam na pólis.
Na busca por mais esclarecimentos acerca das relações entre cidade, subjetividade e política, apostemos no caminho da história e olhemos especificamente para o processo de redemocratização no Brasil, marcado, no campo da arquitetura, por uma revisão teórica e projetual.
Na segunda metade da década de 1980, no sentido da defesa de uma democracia neoliberal, colocava-se o estadismo comunista das vanguardas e o estadismo autoritário do regime militar numa mesma categoria, produzindo, assim, uma associação artificial entre essas duas coisas a fim de colocar em xeque o discurso e todo o legado das vanguardas da primeira metade do século XX — marcados pelo funcionalismo, pela abstração e pela universalidade — , genericamente chamadas de “modernas” ou “modernistas”; e colocar no centro da prática projetual uma arquitetura preocupada com a linguagem, supostamente ligada à história, às especificidades regionais e, sobretudo, à diversidade de materiais e técnicas que o mercado poderia oferecer, genericamente chamada de “pós-moderna”. Ir na direção de uma organização econômica neoliberal seria o mesmo, então, que se afastar do autoritarismo do regime anterior, ainda que diversos arquitetos e jornalistas afirmassem, em textos da época, que a nova Constituição representava, em muitos aspectos, a continuidade da ditadura militar — muito embora esse termo fosse evitado à época.
Nessa linha argumentativa, afirmava-se — na verdade, afirma-se até hoje — que a arquitetura de aspiração ao universal era algo imposto, esmagador da diversidade e da individualidade, fazendo-a ser confundida com uma arquitetura desumana, sem graça e sem dignidade. Todo esse processo possivelmente colaborou com a construção de uma “imagem de riqueza” oposta ao que se entendia por “arquitetura modernista”, da qual sobrou, hoje, uma certa forma de lidar com materiais de acabamento a partir da qual Mauricio Puls conclui que a classe baixa reproduz padrões estéticos que vê como símbolo de status inclusive em suas casas. Porém, seu texto parece não levar em conta que os símbolos que os pobres procuram imitar também são, eles próprios, produtos consumidos pelas classes média e alta que, por sua vez, também aderiram aos revestimentos enganosos — o porcelanato que imita mármore (para não falar da coluna neoclássica esculpida em gesso) não está muito distante da cerâmica que imita o piso de Copacabana.
A observação de uma suposta descaracterização de casas que antes, supostamente, assumiam sua pobreza e, hoje, procuram ostentar status, pode levar a algo que pretende ser uma crítica às barreiras que impedem a expressão cultural dos pobres, mas que acaba por deslegitimar uma expressão possível e associar pobreza e feiura. Um dos principais fatores que dificultam qualquer análise sobre as relações entre espaço construído, psicanálise e política é justamente a facilidade com a qual são reproduzidas postulações que soam truísmos, mas escondem sua origem e sua agenda. Essas postulações têm implicações políticas e, em diversos momentos, esvaziam ou simplesmente ignoram esforços no sentido de desnaturalizar a beleza, as classes, os corpos, os gêneros, os afetos e a maneira como constituímos nossas famílias e construímos nossas casas.
Nos últimos anos da década de 1980, o debate internacional e, posteriormente, os novos projetos de arquitetura brasileiros indicavam que as correntes pós-modernas estavam superadas — é possível dizer que, no Brasil, elas caíram antes mesmo de se realizarem. Se a retomada das correntes modernas era inevitável, também o era levar em consideração novas contribuições que vinham do campo da filosofia, do estudo da linguagem etc. Assim, o que começou como uma simples oposição entre correntes historicistas e regionalistas versus correntes de aspiração ao universal transformou-se em uma relação dialética entre essas duas maneiras de abordar a prática projetual.
A retomada do repertório de aspiração ao universal, contudo, só seria aceita por críticos e jornalistas amplamente conhecidos depois do esvaziamento político do desenho, isto é, do afastamento do repertório projetual moderno de suas posições políticas — que, ao menos no Brasil, eram marcadamente de esquerda. Diversos autores ora procuravam encaixar arquitetos indubitavelmente modernos em um cenário historicista e regionalista, ora afirmavam que, enquanto arquitetos como Sérgio Ferro e Vilanova Artigas associavam a prática de projeto, o ensino e a militância política, outros arquitetos reconhecidamente modernos se afastaram das posições políticas de seus mestres — ainda que o desenho seja prova cabal do contrário.
Primeiro, porque toda construção é o resultado da convergência de uma série de cadeias produtivas que mobilizam riqueza e força de trabalho; o desenho de arquitetura, que pretende exercer controle sobre a construção, assume a função de articular essas cadeias produtivas. Também porque a arquitetura trata do espaço construído não apenas enquanto objeto resultado da atividade da construção civil, mas também como algo que contém, ao mesmo tempo, um projeto de futuro e a materialização dos acordos vigentes e das relações de poder que atravessam e são atravessadas por esses acordos — nesse âmbito, por exemplo, vale lembrar que ainda hoje são lançados apartamentos com quartos para as empregadas projetados deliberadamente com poucas luz e ventilação naturais — , do que achamos bonito, da maneira como organizamos as funções da casa e da cidade etc.
Assim sendo, me parece impreciso dizer que “não há conexão direta entre arquitetura e política: diferentemente da literatura, da pintura e do teatro, a linguagem dos edifícios é abstrata demais para comportar referências claras à história”. Talvez a conexão não seja evidente, pois não estamos acostumados a olhar para ela como estamos acostumados a olhar para uma figura de toga e pensar na antiguidade clássica — algo que nos foi ensinado desde crianças — , mas não podemos nos esquecer de que aquilo que entendemos como história é uma construção social, e que nem toda referência clara ao passado aparece como uma citação figurativa.
Ao propor uma investigação sobre as relações entre o espaço construído, a construção da subjetividade e os acordos que estabelecemos coletivamente, isto é, entre arquitetura, psicanálise e política, Mauricio Puls levanta uma série de questões relevantes, porém, acaba por reproduzir como verdade justamente aquilo que sua investigação, em grande medida graças às contribuições advindas do campo da psicanálise, poderia muito eficientemente questionar: a ideia de que não há relação direta entre arquitetura e política. Se a pólis é, por excelência, o campo da política e o campo da arquitetura, então a relação entre arquitetura e política é bastante direta. Todo desenho é político.
*Flavio A. D. Bragaia é arquiteto e urbanista. Em 2019 defendeu seu mestrado na FEC-UNICAMP em Arquitetura, Tecnologia e Cidade, intitulado Arquitetura brasileira da redemocratização: projetos e artigos publicados nas revistas Projeto e Arquitetura e Urbanismo entre 1985 e 1990. Graduado pela FAU-USP, concluiu MBA em Gestão de Escritórios de Arquitetura pela FGV e atua como analista de desenvolvimento na São Paulo Urbanismo.