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As memórias compostas de Wander B

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h13 - Publicado em 22 jul 2021, 10h54

Relatos de uma parceria em que expande o teatro para além de suas fronteiras tradicionais

Por Elenice Zerneri

Era 21 de setembro de 2018 quando entrei pela primeira vez em uma sala de ensaio com o multiartista Wander B., na SP Escola de Teatro. Entrávamos como dupla de dramaturgia, em uma escola que simula os grupos de teatro colaborativo — no começo do semestre, cerca de 20 alunos de diversas áreas (Atuação, Cenografia e Figurino, Direção, Dramaturgia, Humor, Iluminação, Sonoplastia e Técnicas de Palco) entram em uma sala e, no final, se tudo correr bem, sai uma peça curta. Como Wander sempre disse, é teatro de grupo sem ser grupo de teatro, o que torna o desafio muito maior. Pois bem.

Embora Wander já tivesse vivido a experiência nos três semestres anteriores e conquistado adeptos de seu trabalho em todas as áreas, eu acabava de chegar (e, na SP Escola, cada semestre é um novo começo). Neste primeiro dia, tínhamos duas missões: encontrar uma voz comum entre nós dois e nos apresentarmos para o restante do grupo. Descemos até a biblioteca, compartilhando experiências e buscando alguma boa companhia. Escolhemos ninguém menos do que a grande Denise Stoklos. E o que Denise Stoklos uniu nem pandemia separou.

A ARTESANIA DE UM ARTISTA

Minha parceria com Wander B. logo transbordou da escola. Durante as nossas experimentações artísticas (peças, curtas metragens e, recentemente, a produção de cem textos inéditos performados em vídeo e transformados em livro), tive o privilégio de entender como funciona um artista por dentro.

Desde aquele primeiro dia, não há um encontro — ou papo despretensioso ou mensagem de áudio, das muitas e longas que costuma enviar — em que não se aprenda com ele algo sobre a vida, sobre política, futebol, amor ou arte. Wander B. diz a que veio em cada gesto. No encontro com ele, me lembrei de todos os meus porquês no teatro.

Sem sair de seu apartamento no Bixiga, Wander B. se teletransporta (e nos leva junto) — numa mesma linha de pensamento ou áudio de WhatsApp — para o lago de sua Barra Bonita, o set de filmagem de um Bergman, o Brasil de Brizola, uma letra de Tom Zé, a copa de 50 e um show do Iggy Pop. É um exímio contador de histórias e esta é a primeira coisa que faz sua arte grande.

Eis que, durante o primeiro ano de pandemia, assisto Wander B. se aproximar da mestra Denise Stoklos, através de um curso sobre escritas de quarentena. Ele compartilha comigo alguns exercícios, animado feito gente que se lembra todo dia de estar vivo. A segunda coisa que torna sua arte grande é isso — a capacidade de olhar com lente artística para todas as coisas do mundo.

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É provocado por Denise que Wander escreve, em suas tantas madrugadas insone, a solo performance O inferno é um espelho da borda laranja, que estreou no formato online em 7 de novembro de 2020. Acompanhei de perto a tecitura e a urgência de suas palavras; a busca obsessiva pela melhor entonação, o melhor gesto, a melhor luz.

Desde então, Wander B. faz de cada nova apresentação uma nova apresentação. A repetição viva, consciente do que já é e do que ainda pode ser é o terceiro sinal da sua grandeza. Ele, que meses antes olhava torto para as fuças do teatro online, agora estava absolutamente entregue. Analogicamente entregue. Seu teatro online é ao vivo, a cores e sujeito àquilo que o teatro apresenta de melhor: o risco. E o risco é grande, uma vez que Wander opera sozinho a bilheteria, escreve, atua, dirige e ilumina cabeça e mãos utilizando quadril, joelhos e uma lanterna de celular — bom lembrar que, em caso de falta de luz, como já aconteceu no histórico de apresentações, ele usa a própria. Em janeiro deste ano, por conta de uma queda de energia no bairro, Wander terminou a peça à luz de velas e fez limonada com um limão só.

Na dramaturgia (do texto, da luz, dos gestos), vejo um mosaico de todas as suas referências. Quarta coisa típica dos grandes: honrar quem veio antes. E Wander B. honra Antônio Abujamra com a mesma intensidade que honra Dercy Gonçalves. Em seu inferno, como no de Dante, somos guiados por seus múltiplos Virgílios e assistimos (também insones) à sua travessia pelo rio infernal do barqueiro Creonte.

Mas diferente do inferno de Dante — em que somos convidados a deixar do lado de fora toda a esperança — , nós que entramos no inferno acessível de Wander B. saímos encorajados, em especial na última apresentação, realizada no dia 14 de julho de 2021.

Chegado o horário de início do espetáculo, a primeira pessoa do público a entrar na sala (em formato de quadradinho do Zoom) foi ninguém menor do que Denise Stoklos. Depois de nove meses em cartaz, dia 14 de julho (dia dos bem nascidos Bergman e a própria Denise), vi nascer aquilo que foi, com tanto amor, gestado.

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A quinta coisa dos grandes é não esperar a boa memória acontecer, mas criá-la. E Wander B. vem fabricando memórias ímpares — não só em sua página no Facebook, onde inventa uma memória para cada dia que não há nada a lembrar.

Na vida (que, bom lembrar, imita e é imitada pela arte), a composição das memórias de Wander B., penduradas na parede, a marteladas, numa madrugada insone, tem agora a fotografia de Denise Stoklos e as palavras, vindas dela: Parabéns, Wander B.!!!

Quando perguntei a Wander qual era a sensação de ver sua maior referência teatral na plateia, ele me respondeu como os grandes: “Lelê, se eu sou um jogador de futebol e o Pelé vai me ver, eu reverencio, agradeço e vou pro jogo”.

Falo agora para o amigo: perdi as contas do que te faz grande. Você fez o gol mais bonito da história e ultrapassou o “La Mano de Dios”.

Obrigada por ser você, por ser grande, e por me permitir caminhar do seu lado.

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Serviço:

“Wander B. — O inferno é um espelho da borda laranja”
18/8 às 20h
Ingressos colaborativos: De R$ 10 a R$ 100 (https://www.sympla.com.br/wander-b—o-inferno-e-um-espelho-da-borda-laranja-1808__1286307)

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