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“As pessoas são muito estúpidas e engraçadas”

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h37 - Publicado em 4 Maio 2017, 12h41

O cartunista gaúcho Allan Sieber fala à “Bravo!” sobre a sua trajetória nos cartuns e na animação.

Por Rafael Spaca

Você nasceu em Porto Alegre, uma das cidades mais politizadas e escolarizadas do país. Isso tudo influenciou sua maneira de ser como cartunista?

De fato no Sul tem isso de ser politizado, ou pelo menos tinha. Se fala bastante de política e você é obrigado a ter uma posição, não pode ficar em cima do muro. E lá, talvez pela proximidade com Buenos Aires, tem uma certa tradição em humor gráfico. Santiago, Edgar Vasques, Canini, Rodrigo Rosa.

Seu sarcasmo tem um DNA?

Eu sou working class e nunca esqueci disso. Nem deixaram com que eu esquecesse. A vida é bem diferente para os ricos e os pobres, pra dizer uma obviedade. Então uma defesa de quem não tem grana é o humor, lidar com a dureza da vida através do humor, usar o humor como arma e escudo.

Dá para fazer um cartum com perspectiva otimista ou está na veia de todo bom cartunista a crítica?

Acho que não existe cartum otimista, é sempre critico. É uma profissão como a estiva, segundo o Jaguar, “para homens”, requer certa brutalidade. Mas hoje em dia não dá pra falar isso, você pode ser preso. É tudo bem chato.

Quem você lia e tentava se inspirar quando criança?

Eu lia muito quando criança, era minha única diversão quase. Por sorte, na minha época as escolas públicas ainda contavam com uma boa biblioteca. Li muito Monteiro Lobato, Julio Verne. Descobri Millor, não entendia nada, mas gostava justamente por isso e pelo traço agressivo.

Chegou a se interessar em se especializar em alguma faculdade?

Só fiz vestibular uma vez, quando tinha 18 anos, para Belas Artes. Fui virado nas provas e não passei. Não era pra mim.

No inicio é importante copiar os grandes mestres e depois ir desenvolvendo um estilo? Ou é melhor sempre buscar ser original?

Com certeza. Copiei muita gente, de Fernando Gonsales a Millôr. Crumb, Angeli, esses dois me marcaram muito. Adão Iturrusgarai, Fabio Zimbres e os desenhistas que saiam na revista Animal também foram uma forte influência.

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Foi incentivado ou desenganado a ser um artista?

Meu pai, por ser desenhista publicitário, queria que eu aprendesse a desenhar e comprava gibis de heróis. Mas logo sacou que eu nunca aprenderia a desenhar, meu negócio era “bonequinhos narigudos”.

O que você herdou do seu pai, o desenhista Jouralbo Sieber?

Uma visão pragmática da vida. Você tem que ganhar o seu dinheiro e é isso, não adianta fazer drama. A vida é dura e tem que trabalhar duro.

Tudo que está à sua volta corre o risco de se transformar em quadrinhos?

Sou influenciado pelo quadrinho sincericida de Crumb e uso muito isso da própria vida no meu trabalho. Então o risco é bem grande. Já perdi alguns amigos (meio cretinos) por conta disso.

O que você mais necessita quando precisa criar um desenho?

Antigamente era álcool, muito álcool. Mas depois fui ficando velho e desenhar bêbado ficou meio chato. Atualmente eu preciso de música e solidão, isso é essencial. Música clássica, jazz ou som de velho, como Iggy Pop ou os Ramones.

Seu trabalho de cartunista é tão intenso quanto o de animador. O cartum é um trampolim para a animação? É a animação que te interessa verdadeiramente?

Comecei os dois ao mesmo tempo , em 1992, quando passei a ganhar dinheiro num jornal para publicar meus desenhos e trabalhava no estúdio do Otto Guerra, a Otto Desenhos. Nunca fui animador, mas sim diretor de animação. E roteirista.

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É possível fazer animação no Brasil, que ainda engatinha, ou pretende buscar essa realização fora do país?

Eu desisti da animação em 2014. Desisti do audiovisual. Trabalhei muito tempo com televisão e isso me cansou muito. Tive uma produtora, a Toscographics, por 15 anos. Só me dei mal investindo em animação adulta no Brasil.

Muitos dos seus trabalhos viraram animação pelas suas próprias mãos. Se não fosse assim, acha que nunca os veria em forma animada?

Isso diz respeitos aos primeiros curtas, Deus É Pai, Os Idiotas Mesmo, Onde Andará Petrucio Felker?. Depois contava com uma equipe.

A ideia da Toscographics era tornar a maior produtora de conteúdo animado do país?

Já tive essa ideia e me dei muito mal. Mais precisamente 200 mil em dividas com a Receita Federal. Não sei fazer social, e nesse meio isso conta muito.

Animação dá mais dinheiro, mas desenho dá mais prazer?

Animação dá dinheiro se você trabalha com publicidade ou faz animação infantil. Se não, é uma droga. Precisa de equipe, espaço, dinheiro. Muita gente. E animador geralmente é uma raça patética, pessoas com as quais não dá pra beber uma cerveja. Ralé mesmo.

Sente mais orgulho com seus trabalhos no papel ou em animação?

Gosto de Os Idiotas Mesmo. Tenho orgulho desse filme. E gosto de um livro que lancei em 2009, É Tudo Mais ou Menos Verdade, com quadrinhos-reportagem e coisas autobiográficas.

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Para ser um bom cartunista é preciso ser um bom observador da sociedade? É esse o segredo?

Tem que estar atento. Não dá pra ficar com a cara enfiada no celular. Você tem que ver e ouvir o que se passa ao redor. As pessoas são muito estúpidas e engraçadas, o material é muito farto.

Mais vale uma boa ideia do que um belo desenho?

Uma boa idéia, sem dúvida. O desenho é quase um detalhe.

Como define seu estilo?

Rápido. Eu diria “eficiente”, mas seria pretensioso . O importante é ser rápido, não ficar lambendo um desenho por muito tempo. Nada mais feio que um desenho falsamente rebuscado. Uma enganação.

O que é mais importante para um cartunista: o talento ou a persistência?

Ambos. Talento é discutível, vem pela prática. Desenhar, desenhar, tentar coisas etc.

A política nacional é um reflexo da sociedade? Somos tão medíocres quanto os nossos políticos?

É uma coisa que alimenta a outra. Os péssimos políticos não investem em educação, somos um povo burro e pouco instruído e gente assim costuma votar nas piores pessoas.

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Sarney, Collor, FHC, Lula, Dilma, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, etc. te inspiram?

Jamais. Odeio fazer caricaturas, desenhar políticos. Essa gente não vale meu desenho.

Você mexe com dois assuntos bem espinhosos como religião e a sexualidade. É preciso ter coragem para mexer neste vespeiro?

Religião, sexualidade e racismo são temas encrenca geralmente. As pessoas confundem: você faz uma piada sobre racistas e acham que você é racista. Aquela coisa de atirar no mensageiro. Já me incomodei um pouco com isso, mas nada significativo.

O brasileiro, em se tratando de sexo, é o povo mais hipócrita que conhece?

É bem hipócrita, mas os americanos sem dúvida são piores, são doentes.

Já com a religião convivemos bem com as diferenças. Acredita que isso pode mudar algum dia e ter conflitos religiosos no país?

Dificilmente. Em parte porque o brasileiro não leva religião a sério, é tudo muito permissivo, sincrético, etc. O que é bom, sem dúvida.

Os desenhos publicados no semanário francês Charlie Hebdo excedem o limite ou não há limite?

Não há limite. Uma piada é só uma piada e tem que ser assim.

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Um desenho pode provocar mesmo uma onda de revolta? Ele tem esse poder?

Infelizmente vimos que tem esse poder. Mas, para fanáticos, até um aceno de mão errado pode causar mortes. O problema são os fanáticos, não é o humor contundente. O problema é Deus e a idéia que se faz de Deus, essa é a desgraça maior.

Você era adventista, muito ligado à religião. Foram os quadrinhos que te “libertaram”? Era para você ter se tornado um pastor?

Eu era fanático dos 8 aos 13 anos. Adventista fundamentalista. Um pequeno fiscal da moral alheia. Péssimo. O que me salvou da religião foram as más companhias do bairro, as drogas e a bebida. Sempre fui introspectivo, uma vítima fácil para essa coisa de religião, mas quando comecei a ter amigos na adolescência e fazer as merdas que adolescentes fazem, me afastei dessa carga de culpa. Um dia, pelos 18 anos, me deu um clique, uma epifania: Deus não existe, é tudo uma lenda. Claro que eu estava chapado quando isso aconteceu, por isso devo minha vida às drogas, às más companhias e ao punk rock.

A revista em quadrinhos Glória, Glória, Aleluia vem desta vivência como evangélico?

Sim, era uma resposta a esse passado, com o qual ainda acerto contas, por ter sido muito traumático e restritivo. Sou ateu graças a Deus, como diria Jaguar. Tento passar isso para meu filho: Deus não existe, mas você ainda assim tem que comer todo o brócolis do prato.

De onde surgiu a ideia de criar a série Vida de Estagiário? E o seu sentimento em vê-la ganhando outros desdobramentos, como uma série para a televisão? Esperava por isso?

Vida de Estagiário nasceu de minha época como office boy, entre os 15 e 18 anos. Eu gostei da série, ganhei algum dinheiro com ela, coisa rara para algo que veio dos quadrinhos.

Quando cria uma série ou um personagem você já consegue vislumbrar se fará sucesso ou deixa ao acaso?

Impossível isso. E eu sempre faço as piores apostas, sou muito ruim nessas coisas, não tenho visão empresarial, essas coisas. Aquela coisa de “só quero saber do que pode dar certo” acho bem tacanha também. Parece um mantra da Rede Globo.

Seus trabalhos podem ser vistos em jornais, revistas, internet e televisão. Alguns deles viraram livros. A ideia de lançar livro, uma plataforma restrita já que poucos gostam de ler no Brasil, é para massagear o ego? Digo isso porque as vendas não são lá essas coisas, o autor recebe pouco. É mais pela satisfação canônica que o livro oferece?

O livro jamais vai acabar, ao contrário do que dizem. É a coisa mais moderna do mundo, cabe no bolso e proporciona dias de diversão, semanas. Livro não precisa de eletricidade, pra começar. Acho que o Millôr já falou algo nesse sentido.

Você é bem crítico em relação à a imprensa. O que te incomoda?

Nem sou tão critico assim, mas não existe isso de imprensa livre na medida que a imprensa precisa de anunciantes. É um beco sem saída e não me pergunte qual a solução.

O que explica uma revista de quadrinhos de humor como a F, que você editou, não ter durado nem cinco edições?

A incompetência dos editores — eu e meus amigos, no caso — aliada a um cenário muito diferente das bancas de jornal hoje em dia: não são mais só revistas, tem refrigerante, CD, DVD, o inferno. É muita coisa. Impossível um sujeito achar uma revista como a F no meio de tudo isso. Ela está atrás da sessão do pornô gay, pra dizer o mínimo. Mas foi divertido fazer.

Por que Robert Crumb é sempre citado por vocês cartunistas?

Ele é um mito pela constância e posicionamento. Sempre o mesmo. Fiel ao que pensa, aos seus ideais. Impermeável a modas. Muito cínico e corajoso. Uma história em que ele vai do outro lado da cidade, numa noite chuvosa, tentar comer uma mulher chata, culpado, essa história mudou minha vida. Está no álbum Minhas Mulheres lançado pela L&PM no final dos 80s.

Haverá um dia, talvez daqui a cinquenta anos, que irão citar Allan Sieber? Se sim, o que será dito?

Não sei. Esse negócio de posteridade é um negócio imprevisível. Há quem aposte na posteridade, como Ziraldo, essas pessoas, mas não é o meu caso. Só tento fazer um trabalho honesto e me divertir dentro do possível. Imagine, já comi pessoas por conta dos quadrinhos! Isso é o que eu chamo de “chegar longe”.

Você disse que sempre teve liberdade editorial, com exceção da revista Trip. O que aconteceu lá?

Não lembro. Nessa época, 2005, 2006, eu estava num alcoolismo atroz. Mas a Trip é aquela coisa, “vamos salvar o mundo” e dê-lhe propaganda de carro, “poder para as mulheres” e dê-lhe fotos de garotas bonitinhas sem sutiã. É bem escroto.

Atualmente você mora no Rio de Janeiro, a Toscographics está instalada na cidade, seu estúdio também. A ideia de morar aí é sair da margem e se tornar uma celebridade, com paparazzi à sua espreita?

Vim para cá em 1999 para montar a Toscographics, na época era uma boa idéia ter um estúdio de animação no Rio, tinha muitos trabalhos para a Globo etc. Isso funcionou por uns anos, não mais. Mas fui gostando da cidade, de certo caos inerente ao cidadão carioca. Depois me casei com uma carioca e tive um filho aqui. É melhor que São Paulo para criar uma criança, quase uma cidade pequena. O Rio é muito, muito provinciano, e isso me atrai e repele ao mesmo tempo.

Você disse que “a vida seria um saco sem humor e suas variantes”. Vai conseguir sobreviver nestes tempos de patrulha?

A patrulha sempre vai existir. Você não pode cair na asneira de dar satisfação a ela. Isso é fatal. Vivemos tempos tão hediondos que as pessoas estão se preocupando seriamente com o fato de batizar um menino de Antonio. “Oh, mas e se ele quiser ser Antonia?” Ela vai ser Antonia, porra.

O papel do cartunista ou chargista é incomodar, mais do que fazer rir, chorar e pensar?

Cartunista tem que bater. E fazer rir. Os dois. Não pode ser chato ou inócuo, esse seria o pior pecado.

Quem são seus inimigos?

Qualquer um que trabalhe metade do que eu trabalho e ganhe 3 vezes mais do que eu. Esses caras sempre vão ser meus inimigos e eu sempre estarei preparado a bater a carteira deles e bater neles, se preciso for.

Que recado daria a eles?

Olho na carteira.

Você está mais calmo ou um enfant terrible jamais amansa?

Ninguém é enfant a vida toda. Isso só vai até os vinte e poucos. Hoje me dedico a criar meu filho Max e passo religiosamente quatro horas por dia dedicado só a ele, eu e ele, todo dia. Passeamos muito procurando cogumelos e andando de metrô, duas de suas obsessões. E tenho pintado e desenhado muito. Sempre sozinho. Isso é muito bom. Fiz uma exposição de pinturas ano passado em dezembro e gostei bastante. É isso que quero, pintar e desenhar sem ninguém encher o meu saco.

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