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Como operar entre a catástrofe e o provisório

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h46 - Publicado em 3 out 2016, 06h49
Fotos: Nelson Brissac Peixoto

Por Nelson Brissac Peixoto

A periferia é um território que se mantém longe do equilíbrio. Estabilizada no ponto limite do estancamento e da fluidez, da drenagem e da contenção, do arrimo e do deslizamento, da mobilidade e da inércia. É uma área crítica, à beira do colapso, em que pequenas oscilações (como um temporal ou um acidente de trânsito) podem causar grandes catástrofes (alagamentos, desmoronamentos, tumultos). 
Ali a cidade se estende sobre terreno instável. Materiais vão se juntando, depositando, nas margens dos rios e nos aterros sanitários, constituindo áreas não consolidadas, suscetíveis a deslizamentos e enchentes. Onde tudo se amontoa, em pilhas de rejeitos. Uma acumulação desordenada, fora de equilíbrio. Uma cidade precária, construída muitas vezes com elementos descartados, assentada em solo movente. A periferia engendra uma cultura do provisório: tudo pode, a qualquer momento, desaparecer, arrastado pela água, por desmoronamentos de terra. 
Essa desestabilização deixa os indivíduos sem chão, num estado intermitente de precipitação. Instaura-se uma crise do sentido de equilíbrio: quando em queda livre, tem-se a sensação de flutuar. A periferia vive em estado de catástrofe, sofrendo desastres periódicos (enchentes, deslizamentos, disfunções nos transportes e no fornecimento de energia e conexão telefônica). Situações limite: inundações e seca simultâneas, opostos ocorrendo ao mesmo tempo. Na periferia, a urbanização se faz em condições extremas. 
As cidades enfrentam um novo desafio: as mudanças climáticas. Os efeitos previstos são o aumento do nível do mar, com tempestades nas costas inundando temporariamente extensas áreas de terra, e alterações no regime de chuvas que impactam o comportamento dos rios, intensificadas pela ocupação das margens e pela pavimentação do solo, dificultando a drenagem. As respostas têm sido convencionais: se ocorrem inundações, construir mais canais de drenagem e barragens. Mas esses métodos em geral deslocam o problema para áreas vizinhas. As infraestruturas rígidas, inflexíveis, dependem de um clima estável, com variações limitadas, o que não ocorre mais.

As configurações urbano-ambientais se estabilizam num estado crítico, na fronteira entre a ordem e o caos, em que a mais leve perturbação pode causar uma reação em cadeia. O dispositivo opera sempre no limite do colapso, precariamente estável, mas responde às oscilações retornando ao seu estado crítico inicial. Desastres periódicos é que asseguram, paradoxalmente, a estabilidade crítica do sistema. Compreender a cidade em termos ecológicos pode ajudar a desenvolver estratégias para lidar com mudanças climáticas. Consiste em abordar as cidades como sistemas dinâmicos, incorporando as mudanças no meio ambiente. 
O espaço da metrópole contemporânea reconfigurou o paradigma da ecologia. Essas paisagens urbanas emergentes podem viabilizar a criação arquitetônica no contexto de sistemas culturais-naturais complexos e dinâmicos. Se nossas práticas incorporarem as dinâmicas socioculturais e político-econômicas da paisagem, novas tipologias infraestruturais emergirão. Por exemplo na recuperação de áreas fluviais pós-industriais, com o objetivo de refazer a infraestrutura da planície fluvial e criar uma nova fronteira urbana. Cria-se um conjunto de ecologias culturais e naturais integradas, organizadas principalmente pelo rio e sua própria hidrologia que se auto-organiza. 
Aqui trata-se de construir no limite da catástrofe. A instabilidade é constitutiva da condição periférica. Obras de infraestrutura e sistemas construtivos devem cada vez mais incorporar modos de resiliência, a capacidade de se recompor quando de perturbações. Conviver com condições de instabilidade. Desenvolver materiais que respondam às variações na umidade relativa do ambiente. Modos construtivos adaptados à terrenos instáveis, encostas, várzeas. Construir em situações críticas.

Kant diz que o sentimento do belo atesta o prazer suscitado pela capacidade de apresentar um objeto, tal como o definimos. Já o sublime é um sentimento penoso, que tem lugar quando a imaginação fracassa em representar um objeto, de acordo com o conceito. É quando um objeto grande — o deserto, uma montanha, uma pirâmide — ou muito potente — uma tormenta, a erupção de um vulcão, uma avalanche — suscita a idéia de um absoluto que não pode ser pensado e não tem apresentação sensível possível. A impotência da imaginação é que, então, a leva a tentar apresentar o inapresentável. A fazer ver que há alguma coisa que não podemos conceber e que não podemos ver. 
Mas o sublime não consiste propriamente nesses grandes objetos, mas na grandeza absoluta, aquilo que se apresenta como absolutamente ilimitado. A forma, o contorno, é o limite: a questão do belo. O sublime coloca a questão do ilimitado, aquilo que se dá na beira do limiar. Aquilo que se faz sentir no momento em que o limite é atingido, no elã suspenso, na tensão rompida. 
A pintura retrata avalanches e tempestades, um desequilíbrio próprio de coisas que desmoronam. A composição se desagrega, nenhuma forma conserva sua integridade. O ato de pintar, diz Deleuze, passa por uma catástrofe para engendrar a cor. Há primeiro um momento de caos, de indiferenciação, de onde vão sair os planos, a geometria, a geologia. O segundo momento é dominado pelo cinza, pelas cores que se misturam, um pântano do qual as cores não ascendem. Por fim, o momento da emergência da cor, o cinza que traz o verde e o vermelho, a matriz das dimensões e das cores. Uma modulação das cores, uma restrição da palheta intensa, para fazer surgir a cor. É o que permite superar o problema do terroso, do lodoso, das cores rebaixadas. O acinzentado da areia, do cascalho e do concreto é reconstituído por pequenos toques de tons puros. A cidade é esse caos, esse indiferenciado, do qual entretanto surge a cor.

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Durante uma inundação, a cidade é transformada. A elevação de uma massa líquida, meramente horizontal, por um eixo vertical provoca radicais reconfigurações planares. O movimento da água através de uma escala vertical permite perceber as sutis modulações da topografia e a conseqüente extensão horizontal da enchente. Durante um alagamento, a seção vertical faz emergir novas formações e visões da cidade. Estudar as transformações planares que ocorrem durante a subida das águas é uma oportunidade para reinventar e redesenhar a cidade do século XXI. 
As cidades são sustentadas pela infraestrutura, mas a enorme dimensão desses elementos torna difícil sua compreensão como um sistema articulado. Os momentos de crise (inundações, apagões e falta d`água), em que o dispositivo colapsa, servem para fazer refletir sobre o funcionamento da infraestrutura. O desastre pode ser a ocasião para pensar o futuro da cidade.

Este texto faz parte do episódio “São Paulo Autofágica” da revista Bravo!. Clique aqui para acessar o episódio.

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