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Bienais de dança devem conquistar o público que não costuma acompanhar os espetáculos, e não se transformar em eventos para favorecer grupos de artistas
Por Henrique Rochelle
O que se espera das curadorias das bienais de dança? Em primeiro lugar, que construam possibilidades de acesso e contato: uma bienal é um momento de atenção, durante o qual muitos olhos se voltam para a dança. Nem todos esses olhos fazem parte do público de costume, fazendo desse tipo de evento um estado de exceção, que mobiliza artistas, plateias, espaços, instituições e cidades, e lhes chamando a atenção para algo que pode passar despercebido: a dança, suas potências e possibilidades.
Como vitrines, as bienais fazem essa arte chegar a mais público do que cada uma das obras sozinha alcançaria, agindo na ampliação de seu alcance — seja porque estabelecem continuidade, porque contam com parcerias e, por isso, um declarado respaldo, seja porque o fator de concentração (de tantas obras em um breve período) potencializa a recepção. Frente à atual situação de temporadas encurtadas e recursos escassos, a estrutura das bienais cria oportunidade ímpar para públicos (tanto os já afeitos como os potenciais) encontrarem a dança.
Essa é a primeira forma de mediação das curadorias: elas conectam públicos e obras de arte, através de operações de seleção, apresentação, e construção de repertórios e entendimentos — dessa forma, pensar curadoria e programação é pensar em poder. As escolhas das curadorias são responsáveis não apenas pelo sucesso de uma edição, ou pela aprovação e interesse das plateias: mais que isso, elas são responsáveis por uma maior aceitação da dança e sua cristalização enquanto desejo do público.
A quantidade de eventos que despontam e depressa desaparecem é testemunha de que há um interesse nesse tipo de projeto, mas uma dificuldade em sua sustentação continuada. Por esse motivo é fundamental que a mediação das curadorias se realize para além do organizar, e atue dentro das possibilidades de recepção das obras. Isso tem se dado sobretudo através das propostas formativas: a curadoria cria interações com o público provocando uma mediação ativa entre plateias e obras. Seja através dos textos dos programas dos espetáculos, seja através do acompanhamento jornalístico (cada vez mais escasso), ou através de ações como debates, mesas, conversas. Nenhuma dessas estratégias, no entanto, se compara à mais basal de todas as possibilidades mediativas da curadoria: a escolha.
Continuidade e repetição
Dos elementos que fazem parte da organização de um evento como as bienais, a seleção é o mais importante. É através dela que as curadorias estabelecem continuidade e dão cara a um projeto (assim podendo cativar seu público). Sobretudo, é a partir da escolha das obras que integram a programação que todas as outras atividades devem ser pensadas. Qualquer inversão desse sentido gera ações que, mesmo bem intencionadas e bem realizadas, serão menos eficientes e menos efetivas.
Por meio da seleção, as curadorias mostram a que vêm, e justificam sua relevância: nelas, aquilo que aqui é chamado de seleção compreende muito mais do que escolher indiscriminadamente obras e artistas. Trata-se de acompanhar a cena da dança, entender sua história e seus caminhos atuais, perceber seus públicos, e — a partir disso — organizar um repertório potencial, simultaneamente coeso e diverso: que faça sentido enquanto agrupamento, mas que não seja de uma única nota.
O que as bienais têm revelado são os riscos dessa complicada dinâmica. Observando suas programações não é difícil encontrar artistas presentes em três ou mesmo quatro de cinco edições, o que causa a falsa impressão de uma década de reduzida produção em dança. A repetição cria um ciclo de limitada diversidade: uma falta de variabilidade genética, que é debilitante. Artistas são programados recorrentemente, por vezes, artistas se tornaram curadores, e programam seus colegas próximos — não por descaso dos outros artistas, mas porque os conhecem melhor e compartilham seus anseios. E assim se reforçam os diálogos de pequenos grupos, em que alguns tentam (e até conseguem) se infiltrar, e à margem dos quais outros tantos permanecerão, por diferenças estéticas.
O resultado é que, ao seguirem essa linha de curadorias, as bienais arriscam se tornarem eventos para os artistas — ou melhor, para determinados grupos de artistas — , e não para os públicos da dança. É inegável a necessidade de políticas para o incentivo dos artistas e desse tipo de diálogo e de interação, mas esses aspectos pertencem ao âmbito da pesquisa, não ao âmbito da recepção, e, portanto, não pertencem ao âmbito da mediação, ao âmbito das curadorias, e às bienais. O interesse que uma bienal de dança pode suscitar vai se diluindo se nesses eventos encontrarmos uma dezena de obras semelhantes, que sigam uma mesma proposta — o que será ainda pior se essa proposta for uma que não se preocupa com o público.
Plateia vazia
De um contemporâneo aristocrático (que Jean Michel Guy nos anos 1990 observou como exemplo imposto de erudição) têm sido feitas gerações de artistas da dança. Suas questões continuam tão intensas e prementes como eram naquele momento, e voltam-se para os próprios artistas, para o seu lugar de ação e de efeito sobre a arte — deixando o público um tanto de lado. O resultado disso observamos nas reclamações constantes de que as plateias da dança estão esvaziadas. E de fato muitas delas estão. Mas é difícil cobrar do público o esforço de se aproximar de propostas que são pesquisas que devem ser vivenciadas em longos períodos de trabalho, e não em resultados artísticos pontuais.
Se o modelo (antigo, acadêmico, tradicional) em que a obra faz a mediação entre artistas e públicos foi substituído por um outro, no qual o programador faz a mediação entre os públicos e as obras, é fundamental repensar o papel das curadorias. Enfim, o que se espera das curadorias das bienais de dança? A resposta é complexa: que construam possibilidades de acesso; que trabalhem a seleção de seus programas pensando no público; e que criem espaços e pontes para que o público encontre aquilo que deseja ver, e para que consiga se aproximar daquilo que não necessariamente desejaria encontrar. A expectativa é enorme, mas, dentro das dinâmicas de valorização dos eventos, é a única saída que favorece a dança, e não apenas (alguns de) seus artistas.
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Henrique Rochelle é crítico de Dança, membro da APCA, Doutor em Artes da Cena pela Unicamp, pós-doutorando pela USP, e editor dos sites Da Quarta Parede e Criticatividade