Em lixo esplêndido
“Selvageria”, espetáculo mais contundente da obra recente de Felipe Hirsch, é o retrato de um país imundo desde os primórdios
Por Gabriela Mellão
Uma montanha de sacos de lixo é monumento histórico do Brasil em Selvageria, espetáculo de Felipe Hirsch em cartaz em São Paulo. Amontoados por toda a cena, eles compõem um retrato da nação que beira a literalidade: evocam tanto a vastidão de suas matas como a sujeira impregnada em seu histórico político. A peça integra-se ao díptico formado por A Tragédia Latino-Americana e A Comédia Latino-Americana. De maneira similar a essa montagens, em que se valeu de texto literário de escritores latino-americanos para fazer uma leitura sobre o Brasil, Hirsch transpõe agora para o palco obras anti-dramáticas, buscando compreender a atualidade do país a partir das suas raízes.
E elas nasceram podres, conforme evidenciam os textos selecionados: são escritos históricos datados do primeiro ano do século 16 ao final do 20, extraídos da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e da Bibliografia Brasileira do Período Colonial, de Rubens Borba de Moraes. Trata-se de uma obra significativa não apenas pela sua raridade, mas também pelo surpreendente tom tragicômico que apresenta. Os textos são de fato risíveis, tamanhas absurdidades que contêm — comprovação de que abuso e hipocrisia são valores fundantes da nação, arraigados no DNA dos exploradores desde época do descobrimento, perpetuados para os líderes do país desde então.
A primeira empreitada de caráter documental de Hirsch coroa a política vexaminosa do Brasil com lixo esplêndido, a partir do primeiro documento existente sobre o Brasil. Na sua famosa carta, Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota liderada por Pedro Álvares Cabral, fundamenta a dissimulação como marca das relações entre exploradores e explorados: “Salvar esta gente (os índios) deve ser a principal semente que Vossa Alteza deve lançar”, escreve.
Os exemplos seguem e são inúmeros. No início do século 17, o padre Claude D’abbeville instaura a desonestidade como recurso cívico ao expor um sistema civilizatório mentiroso para suas expedições, inaugurando a prática de uma campanha política amoral através de um texto sobre a missão colonizadora dos capuchinhos franceses ao Maranhão. Em 1881, o decreto Lei Saraiva estabelece a imutabilidade do sistema excluindo de direito de voto brasileiros com baixa renda, além de analfabetos e mulheres.
É sobretudo pela preciosidade destes documentos que Selvageria se sobressai como o espetáculo mais contundente da trilogia de Hirsch. De forma geral, o encenador segue o mesmo modus operandi dos demais espetáculos. Não faz trabalho dramatúrgico: os textos selecionados revelam os pensamentos de seus autores na íntegra. Se por um lado, o compromisso com a fidelidade do material permite que o espectador receba os documentos históricos sem eventuais distorções de edição, por outro, a prolixidade enfraquece sua pungência.
Lutar com a hipérbole
Nessa selva das palavras, Hirsch lança um time raro de atores — Danilo Grangheia, Georgette Fadel e Caco Ciocler, entre outros. Eles lutam bravamente usando todo o poder de eloquência que possuem, mas algumas vezes não conseguem se salvar, engessados pela linguagem narrativa hiperbólica do texto e do cenário tão belo quanto disfuncional de Daniela Thomas, que desta vez trabalha em parceria com Felipe Tassara.
O lixo é excessivo também para eles, revelando-se obstáculo real, além de simbólico. O elenco sofre para enfrentar a barreira da montanha de escória que faz alusão ao Brasil e toma conta do palco, abrindo espaço apenas para a Ultralíricos Arkestra, que toca ao vivo no fosso do teatro.
Em Selvageria, o lixo não dá trégua. Desaba inclusive do teto. O morro avistado inicialmente revela-se, ao longo da montagem, um pêndulo. Gotas imundas insistem em cair. O fim dessa sujeira não parece estar próximo.
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Selvageria, de Felipe Hirsch. Sesc Vila Mariana (Rua Pelotas, 141, tel. 11 5080–3000. Quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h. R$ 12 a R$ 40. Até 17/12