Entre a vaidade e o desejo
O conto “O pombo-torcaz” revela-se uma chave poética para compreender o pensamento íntimo de André Gide
Por Jáder Santana*
Há tempos tenho vontade de ler O pombo-torcaz, de André Gide. Fiquei sabendo desse conto à época de sua publicação no Brasil pela Estação Liberdade, em meados de 2009, em uma resenha da antiga revista Bravo!. Naqueles dias, não estava tão difundido o costume de comprar pela internet. Aquele tampouco era um livro fácil de se encontrar nas livrarias. Guardei o nome da obra e do autor, li seus romances mais conhecidos e, há alguns dias, por acaso, recebi em minhas mãos O pombo-torcaz.
Mais que a potência narrativa do conto — sete páginas guardadas cuidadosamente por Gide, durante toda sua vida, em um envelope amarelo -, o volume da Estação é valioso pelos textos de referência que traz. Um preâmbulo de Catherine Gide, filha de André Gide e a pessoa que encontrou o conto; um prefácio de Jean-Claude Perrier, escritor francês especialista em Gide; e posfácio de David H. Walker, grande estudioso do autor. O texto de Walker, sobretudo, transborda de trechos de diários e correspondências de Gide — textos que não haviam sido traduzidos ao português e que ajudam a entender a mente ousada do francês.
O conto de Gide é ágil, chega ao fim quando parece em seu ápice. Poderia ser o relato apressado de uma noite de paixão. É delicado, efêmero. O encontro do autor com Ferdinand, apelidado de pombo-torcaz por causa dos arrulhos que fazia durante o sexo, tem algo de paternal. Afinal, trata-se de um homem maduro, de quase 40 anos, e um adolescente de 17. Ao invés de paternal, outros acharão mais adequado identificá-lo como pederasta ou pedófilo. Se publicado em vida por seu autor, O pombo-torcaz seguramente enfrentaria a mesma resistência encontrada por Lolita em seu caminho. E as semelhanças vão além: assim como a menina de Nabokov, Ferdinand disfarça sua inocência com um ímpeto por se mostrar maduro e emancipado.
Em certo momento, enquanto caminhavam pela escuridão rumo ao quarto em que finalmente consumariam seu desejo, Ferdinand diz: “É uma pena que não tenha nenhuma”. Gide pergunta repetidas vezes, “nenhuma o quê?”, até perceber que o jovem se referia a “uma mulher”. Gide escreve: “Sem dúvida, ele me dizia isso por modos, por tradição e porque, ingenuamente, podia crer que eu o tomava por um tapa-buraco”. Há muito a ser apreendido nesse lamento de Ferdinand. Há seu reconhecer-se inferior — pela pouca idade, pela condição social -, mas também há algo de provocativo, como se, com aquela colocação, cobrasse de Gide uma resposta que colocasse em xeque sua própria sexualidade.
Seja lá qual tenha sido sua intenção, é um questionamento que fala de sua inocência. Quando estão despidos e começam a se tocar, Ferdinand revela que nunca havia feito aquilo com outro homem. Gide exerce sua função paternalista. Sua narrativa tem uma mistura fascinante de desejo e cuidado. De tesão e zelo. Muitos anos depois, quando se viu vítima de um panfleto difamatório anônimo, Gide escreveu a um amigo linhas furiosas que contestavam as críticas que havia recebido:
“Perverter a juventude! Como se a iniciação à volúpia, em si, fosse um ato de perversão! É exatamente o contrário! Esquece-se, ou melhor, ignora-se o que acompanha essas carícias, e a atmosfera de confiança, lealdade e nobre emulação em que nascem e se desenvolvem essas espécies de amizade! […] Posso fazer justiça a mim mesmo: sobre esses jovens que vieram a mim, minha influência sempre foi útil e saudável. E não há aí nenhum paradoxo: meu papel sempre foi moralizador.”
Em seguida, na mesma carta, Gide se vangloria por ter conseguido salvar vários rapazes, suas amizades, dos maus hábitos, dos instintos mais vis. Mudou o rumo dos preguiçosos, hipócritas e revoltados. No texto de O pombo-torcaz, fica clara ao leitor a conduta quase indulgente do autor em relação a Ferdinand. Tomando por sinceras suas linhas — e talvez assim seja, já que por tanto tempo permaneceram escondidas — , Gide realmente acreditava que prazer, cuidado e poesia podiam conviver no mesmo corpo e na mesma intenção.
É interessante perceber essa mistura de sensações em outros trechos de cartas enviadas por Gide. Durante sua viagem pelo norte da África, quando conheceu outro rapaz, Mohammed, que marcaria sua vida, escreveu a Eugène Roart, amigo escritor que também se descobria homossexual: “A beleza das raças aqui nos enche de uma exaltação vagarosamente erótica, mas principalmente lírica; escrevo versos o dia todo. Vê-se nas ruas, nas praças, sudaneses soberbos, totalmente pretos; e imagina-se os países do centro do continente, onde são criados os negrinhos”. Gide relaciona raça, erotismo e lirismo em uma mesma frase. A seguir, fala dos negrinhos de modo quase afetuoso. Prazer, cuidado e poesia.
Esse exercício observatório da voluptuosidade dos corpos negros dá indícios do interesse de Gide pela reflexão acerca da homossexualidade. Apesar de parecer resoluto e confortável em relação à sua orientação, não é difícil encontrar em seus escritos trechos que revelam as bases de um pensamento discriminatório. Gide aceitava sua homossexualidade máscula, discreta, mas parecia achar justificável o estabelecimento de separações, e isolamentos, entre seu tipo de conduta e a de homossexuais afeminados.
Em outra carta a Rouart, tratando sobre um livreto a respeito da homossexualidade que movimentava a frança no início do século, Gide escreveu: “O livro é muito bem feito, mas me parece que não diferencia suficientemente duas classes: os efeminados e os ‘outros’; ele os mistura, de forma incessante e nada é mais diferente, mais contrário — pois um é o oposto do outro -, porque para a psicologia o que não atrai repele, e uma dessas duas classes provoca horror na outra”.
Essa ideia distintiva volta a aparecer em Córidon, reunião de ensaios de Gide sobre a homossexualidade publicada em 1924. Um dos argumentos centrais de Gide é a distinção do caráter homossexual entre “os efeminados e os outros, entre os quais reina uma hostilidade mútua”. Nos romances de Gide, aliás, embora a atração homossexual não apareça restrita por uma atmosfera de culpa e contravenção, percebemos que suas paixões são, sim, resumidas a homens não afeminados e com um pé bem estabelecido na normatividade.
Orgulho e amizade
Muitas das cartas trocadas por Rouart e Gide estão reunidas em um volume publicado pela Gallimard (fundada, entre outros, pelo próprio Gide) na década de 1980. Os trechos reunidos no posfácio de O pombo-torcaz dão o tom dessa amizade. Rouart era mais jovem que Gide e ainda enfrentava a instabilidade de seus próprios pensamentos a respeito de sua homossexualidade. Suas cartas quase sempre revelam a profunda admiração que nutria por Gide e por sua forma de encarar essa questão. Os textos de Gide, por outro lado, deixam claro que seu processo de aceitação estava muitos níveis acima. Não raro, Gide falava com orgulho de sua condição e rechaçava a pena dos que o condenavam.
“[…] a piedade que nos ofereciam, eu não a aceitaria. Eu diria: fiquem com ela; não sou nem um pouco miserável. Sinto-me, ao contrário e sem cessar, mais feliz que os outros homens, e tenho a pretensão, apesar de tudo, de levar uma vida que mais tarde, me inclinando para ver meu reflexo, possa me achar belo. Não quero sentir vergonha. Mas, no momento, meu caro amigo, sinto que precisaremos ter ombros robustos, e convicções, pois, tu sabes, não quero hipocrisia — ela é suicida e mostra que ignoramos nosso valor”.
Ao mesmo tempo em que se esforçava por aparentar, em suas cartas, uma superioridade moral e intelectual, Gide dava sinais de sua estima por Rouart, amigo que o libertou do peso das dissimulações. Escreveu: “Quero que aquele que me compreende possa se sentir orgulhoso de ser um dos meus amigos”. Gide, vaidoso, falava da dádiva de “ser seu amigo” para se referir ao alívio de ter encontrado quem o compreendesse.
Enquanto isso, o jovem Rouart, perdido em sua própria inconstância, tentando sobreviver à sua própria fragilidade, falava de Gide, e para Gide, como a uma entidade alvo de toda sua admiração. “A lembrança de nossas conversas predomina: tantas coisas aprendidas, tristezas e alegrias, mesmo naquilo que em tu tanto te assemelhas a mim; não, não é uma tristeza de saber-te tão parecido comigo (valho mais do que tal pensamento), mas tristeza de saber-te, tu, meu amigo, tão inquieto, tão atormentado, tão irresoluto quanto eu mesmo; e a alegria um pouco egoísta de constatar que, por fim, encontrei alguém com quem minha amizade nada tem a temer e a quem posso dizer tudo; […] nós poderemos e saberemos nos apoiar nessa vida”.
*Jáder Santana é jornalista e curador da Festa Literária do Ceará. Estudou literatura latinoamericana na Universidad de la República (Udelar), no Uruguai.