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Entre Hamlet e o padeiro

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h12 - Publicado em 1 out 2021, 08h40

Inspirado em autobiografia de Augusto Boal, “Hamlet 16X8″ reacende a faísca do teatro após longo e tenebroso inverno

Rogério Bandeira

Por Gabriela Mellão

Como se traduz o poder do teatro? Há algo de inexplicável na potência dessa arte que Augusto Boal tanto se dedicou a explicar, e que pode ser alcançado em Hamlet 16 X 8. A montagem foi feita a quatro mãos pelo ator Rogério Bandeira e o diretor Marco Antônio Rodrigues, que ficou em cartaz até o último fim de semana em São Paulo — e agora, em outubro, terá sessões virtuais. Foi o que me motivou a retomar a crítica, depois de quase dois anos.

Bandeira e Rodrigues espremem a essência do teatro buscando tocar a difícil beleza da simplicidade numa encenação sustentada pela precisão das partituras cênicas e, sobretudo, pela presença de um ator cujas ações internas e externas brotam das entranhas. Acabam por ressaltar que, para a magia do teatro acontecer, não é necessário mais do que um diálogo efetivo entre um ator e um espectador — melhor dizendo, segundo o conceito cravado por Boal, de um um espect-ator.

A peça é inspirada em Hamlet e o Filho do Padeiro: Memórias Imaginadas, obra autobiográfica de Boal. Na obra, o dramaturgo, encenador e ensaísta (1931–2009) –um dos nomes mais importantes do teatro contemporâneo internacional — relata a interação existente entre sua trajetória pessoal, as circunstâncias históricas em que viveu e sua teoria teatral.

Por pouco Boal não foi padeiro, seguindo a carreira do pai. Acabou fazendo outro tipo de pão, alimentando oprimidos de voz em vez de trigo. “Escrevendo, faço meu pão”, dizia ele, que via seu ofício como arma, uma arma eficiente, capaz, entre outras coisas, de aglutinar a partir dos anos 50 um expressivo contingente de artistas comprometidos com a criação de uma arte nacional, a um só tempo política e social.

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Dono de uma inquietação rara, numa busca incansável pelo enfrentamento de seus fantasmas, foi um tanto Hamlet também.

Bandeira perpassa a faceta padeiro e Hamlet de Boal tecendo a própria trajetória em meio a estas projeções — que também são suas, expressas em um relato coloquial marcado pela devoção ao teatro. E o anseio sincero de, tal qual sua inspiração, encontrar a verdade mais autêntica possível e transformá-la em uma arte capaz de extrapolar o tablado, ganhar ruas, transformar valores, virar movimento.

A entrega e o domínio de um ator em pleno poder de seu ofício seguem os passos de Bandeira enquanto ele revisita passados, sonhos e até mesmo exílio — de si e Boal. Percorre memórias familiares e teatrais próprias, ao mesmo tempo em que discorre sobre a passagem do encenador no Teatro de Arena, suas andanças pelo Nordeste em busca de um Brasil cada vez mais brasileiro, ou a reclusão política vivida no exterior.

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Este é o primeiro monólogo de Bandeira, que construiu sua carreira em coletivos, no Centro de Pesquisa Teatral de Antunes Filhos, e nas Cias. do Folias e do Latão. O ator não se gaba disso, pelo contrário. “Sou homem de grupo, peixe de cardume”, diz, parafraseando Boal. Indaga-se sobre a força mobilizadora dos solos, que proliferaram durante a pandemia e, agora, estão sujeitos a sobreviver na prisão das telas de 16X8 dos celulares.

Mergulhado na infinitude de si mesmo, diante do precipício de sua alma, como ele mesmo diz em cena, a única resposta possível ao ser ou não ser de seus questionamentos é a afirmativa. Sim, exercer a arte criativa, ainda que num mundo cada dia mais aculturado, mesmo que em monólogo, independentemente de ser presencial ou virtual. Ser espect-ator no teatro e na vida, eis a solução.

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Hamlet: 16 x 8, direção Marco Antônio Rodrigues. Com Rogério Bandeira. Transmissão pelo #CulturaEmCasa (https://culturaemcasa.com.br), segundas, 4 e 11/10; terça, 19/10: e quinta, 28/10, sempre às 20h. Grátis

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