Escritos de Heliópolis
Editora fundada por morador da comunidade paulistana planeja publicar 50 livros até o fim de 2019
Por Aline Khouri
Quando tinha quatro anos, o ator Paulo César Marciano foi diagnosticado erroneamente como mudo devido a um problema neurológico. PC, como é chamado pelos colegas, só começou a falar aos sete, e também teve que aprender a lidar com a dislexia. Embora lhe tenham faltado palavras na infância, hoje, aos 40, elas se atropelam quando ele conta sobre uma das suas maiores conquistas: a Editora Gráfica Heliópolis, projeto selecionado pelo edital Rumos Itaú Cultural.
Localizada dentro da biblioteca do CEU Heliópolis, ao lado do Instituto Baccarelli, no distrito de Sacomã, na Zona Sul de São Paulo (SP), a editora foi inaugurada no dia 1º de dezembro de 2018 com a ambição de publicar 50 livros de escritores da região em um ano. Para comprar os equipamentos necessários, foram obtidos R$ 99.981,05, e sete livros foram lançados até o fechamento desta reportagem.
Nascido no bairro vizinho de São João Clímaco, PC conhece Heliópolis desde pequeno, e hoje mora na comunidade, que já foi considerada a maior favela de São Paulo — a ONG UNAS Heliópolis calcula que cerca de 200 mil vivem ali. Embora tenha adquirido o estatuto de bairro em 2006, PC ressalta que, na prática, os moradores que adotam uma postura ativista se referem ao local como favela até mesmo para mostrar o preconceito quanto ao acesso a determinados tipos de serviço. “Bairro é pouco usado porque não entra Uber aqui dentro, a gente só consegue serviço de quem é daqui. Por exemplo, não é qualquer pizzaria que entrega aqui, assim como o Ifood e outros aplicativos. Nós que somos mais críticos não aceitamos essa denominação de bairro porque na prática não é. Você vai lá, cria um bairro para dizer que não tem favela em São Paulo, é uma canetada”, diz.
Antes de conseguir sobreviver por meio da arte, PC teve várias profissões — entre elas a de metalúrgico, mecânico e um trabalho na área de gerenciamento de risco. Seu tio era artista e foi torturado pela ditadura após reproduzir a música É Proibido Proibir, de Caetano Veloso. O episódio gerou um trauma na família, e PC enfrentou a resistência do pai quando decidiu que queria ter uma carreira na área.
Após se apaixonar pelos escritos de Júlio Verne na infância, teve contato com outros clássicos e alguns escritores contemporâneos e periféricos como Ferréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva, e Sacolinha (nome artístico de Ademiro Alves de Sousa). Foi uma viagem de caminhão em 2006 que o fez ter a ideia para realizar o sonho de ser escritor. Na época, conheceu um grupo de prostitutas que começaram a contar suas histórias de vida. “Fui criado num sistema muito machista e preconceituoso. Percebi que elas só queriam falar com uma pessoa de outro sexo, sem essa conotação sexual de olhar para elas como produto. Saí dali decidido a escrever sobre prostituição”, relata.
O livro, chamado Melissa (2009), é sobre uma moça do interior do Rio de Janeiro que se muda para a capital, apaixona-se pelo primo e tem uma filha com síndrome de Rett na década de 1980, durante a ditadura militar. Sem espaço no mercado editorial, entretanto, PC decidiu que a melhor alternativa era criar uma forma para publicar a obra com ajuda das leis de incentivo. Ele realizou um mapeamento em Heliópolis para encontrar outros escritores e descobriu 150 pessoas. Foi assim que teve a ideia de criar a editora e gráfica, com o objetivo de valorizar a produção cultural da região, e lançou Melissa.
A editora possui uma equipe de oito pessoas e trabalha como uma cooperativa. A ideia é envolver os autores em todo o processo de produção do livro. Os escritores pagam apenas o preço de custo à gráfica e trabalham com uma margem de lucro de no mínimo 50%. As obras são impressas com um papel produzido a partir do bagaço da cana-de-açúcar, e a tiragem máxima de cada uma é de 50 exemplares por vez para evitar problemas de encalhe. O preço médio dos livros publicados até agora é de R$ 20.
“A ideia é facilitar o trabalho e não fechar as portas, mas, infelizmente, não consigo atender todo mundo. Somos muito procurados por pessoas de outros estados, mas não tenho condição de atender porque não é uma gráfica comum. Peço duas contrapartidas para cada pessoa: uma é a básica, que é participar dos nossos eventos de lançamento, geralmente aqui dentro. Queremos fazer isso virar uma constância aqui. A outra é o que a pessoa quiser dar, nascem coisas maravilhosas como saraus e oficinas de fotografia”, explica PC.
A seguir, as histórias de três autores da Editora Gráfica Heliópolis.
Rubê
Morador de Heliópolis desde 2015, o paraibano Rubenildo Limeira, 36, publicou a antologia poética Imagine Como É. Seu nome artístico é Rubê e ele é apresentador da Rádio Heliópolis e coordenador pedagógico da UNAS. Com licenciatura em Filosofia, trabalha também como ator e humorista. Ele conta que começou a escrever poemas durante o Ensino Fundamental. “Desde que era pequeno, sempre gostei das artes. Uma professora pediu para elaborar um texto sobre qualquer tema. Fiz um texto chamado A Humanidade Atual. Escrevi em 1998, mas, quando o leio hoje, ele permanece atual em relação à realidade social em que vivemos: a questão da violência, das lutas, algumas realidades e ilusões da humanidade”, diz.
Rubê planeja publicar crônicas, e já tem uma ideia de enredo para uma obra de ficção. Ele ajudou PC a escrever o projeto para a seleção do Rumos e ver a sua concretização. “A gente sempre busca quebrar estereótipos tanto com relação à visão externa do que existe em relação à maioria da população de Heliópolis, que é a luta, a criatividade, as artes, como também mostrar aos moradores que eles podem publicar livros, participar de feiras literárias, desenvolver ações e atividades culturais de forma a alcançar o público interno e externo e mostrar as pessoas que é possível. De vez em quando acontece algo grande nessa área como o surgimento da Editora Gráfica Heliópolis. Como ninguém tinha pensado nisso antes? É uma ideia simples e ao mesmo tempo grandiosa: uma editora e gráfica dentro de um CEU, dentro de uma comunidade e que publica escritores da região”, completa.
Paulo Rams
Durante o trajeto de ônibus de aproximadamente 1h15 até a faculdade de História da Uninove, Paulo Rams, 35, escrevia e lia muito. Nascido no bairro de Parque Bristol, que também fica em Sacomã, frequentou muitos saraus, especialmente o realizado pela Cooperifa, um movimento cultural que ocorre há 18 anos na periferia de São Paulo. “Eu ia pra lá de bicicleta declamar meus poemas. Com a frequência em saraus, tive uma quantidade de poesias e crônicas para a publicação”, relata o autor de Meu Canto em 83 Poemas, cujos eixos temáticos variam entre política e angústias pessoais.
Entre 2013 e 2016, ele atuou como coordenador de projetos culturais no CEU Meninos, próximo ao CEU Heliópolis. Atualmente, é professor e produtor cultural no Coletivo Perifatividade, que promove atividades relacionadas à música e ao incentivo da leitura e da produção literária na região do Ipiranga.
Paulo mostra-se particularmente preocupado com o momento político atual no Brasil e ressalta as dificuldades enfrentadas durante o lançamento de um livro, acompanhado de um documentário, produzido pelo coletivo chamado A Poética dos Direitos Humanos em uma escola do Ipiranga. “No documentário, falamos da questão LGBTQI, da questão racial, do combate ao machismo, e há alguns textos muito explícitos de meninas que escreveram contra o feminicídio. Nessa escola se constituiu um grêmio um grêmio estudantil de jovens e adolescentes muito reacionários de 17, 18 anos. Alguns meninos atacaram uma professora e tiveram que chamar a polícia”, diz.
Para ele, um dos grandes problemas do sistema educacional é o descaso quanto à discussão dos direitos humanos. “Olha a situação em que estamos: adolescentes pedindo ditadura, intervenção militar. Nós perdemos muita coisa, os professores estão sendo perseguidos. O sistema de ensino atual não trabalha os temas dos direitos humanos. Às vezes, trabalha na transversalidade. Pela ausência da discussão disso, eles têm uma visão distorcida da realidade”.
Fagner Araújo
O professor de Literatura e Língua Portuguesa Fagner Araújo, de 33 anos, é autor dos poemas reunidos na obra Não Diga Que Digo Verdades, que usa acontecimentos do cotidiano para trazer à tona discussões mais aprofundadas. Leitor de histórias de fantasia desde os sete anos, ele escreve desde a adolescência e tem um carinho especial pelos contos.
O poeta pesquisa filmes e séries de televisão para ajudar a tornar a literatura brasileira mais palatável para os adolescentes da Escola Técnica Estadual (Etec) de Heliópolis. Segundo ele, o método é mais atrativo para discutir os textos de Machado de Assis e Guimarães Rosa. “Falar de algum texto do Machado de Assis é desafiador, mas tento fazer um paralelo com alguma história que eles conheçam. Já fiz isso [mostrar séries e filmes] com Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa. Fizeram o filme do conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga e é sensacional. O filme começa com um tiroteio e eles já ficam vidrados”, afirma.
Inspirado pelo reconhecimento da literatura de cordel como Patrimônio Cultural do Brasil, Fagner decidiu trabalhar o gênero em sala de aula. O resultado foi a publicação do livro Também Tem cordel no Helipa, que reúne os textos produzidos pelos estudantes, também pela Editora Gráfica Heliópolis. Um dos sonhos de PC Marciano é publicar trabalhos de autoria dos alunos de pelo menos 12 escolas da comunidade.
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Periferia do mercado
Embora o surgimento de pequenas editoras seja constante nos últimos anos, as casas editoriais tradicionais ainda são bastante refratárias à literatura produzida nas periferias. É o que mostra uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UNB), coordenada por Regina Dalcastagnè, crítica literária e professora de Literatura Brasileira da instituição. O estudo analisou 692 romances brasileiros publicados por três grandes editoras do país: a Companhia das Letras, a Record e a Rocco. A pesquisa foi dividida em três períodos: de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014.
Constatou-se que os autores mais publicados são homens brancos, de classe média, com ensino superior, moradores do eixo Rio-São Paulo. Há uma flagrante negligência com a literatura produzida por negros e mulheres. “No Rio de Janeiro e em São Paulo estão as editoras, e até mesmo escritores que precisam produzir fora desses centros precisam ir até essa região para ter circulação. Com isso, esses grupos se fortalecem, determinados fatores econômicos dessas regiões acabam criando um modelo para o que é o literário. A questão de gênero e de raça está vinculada ao preconceito e às dificuldades na sociedade brasileira, as mulheres e os autores negros vem se preocupando com isso e tentando furar esse bloqueio”, diz Regina.
Referindo-se aos personagens dos romances analisados, a professora conclui que a ausência de mulheres, negros e de outros extratos também é naturalizada, ou eles são apresentados de maneira estereotipada. Segundo ela, este processo influencia também a crítica literária acadêmica que discute os autores privilegiados pelas maiores editoras e marginalizam outros tipos de literatura.
Nesse sentido, a literatura periférica é também uma forma de resistência. “A periferia está criando outros grupos de leitores, o que é fascinante, mas a classe média acaba consumindo sempre os mesmos autores. A pluralidade enriquece, traz outros olhares. Parece que a revitalização da leitura vai ter que passar por aí, não adianta a imposição de determinada perspectiva. A escritora Conceição Evaristo fala sempre sobre como foi importante para a mãe dela — que mal sabia ler — conhecer Carolina Maria de Jesus. Ficou muito impressionada e pensou: ‘Ela escreve como eu, ela tem minha experiência, eu poderia relatar essa experiência’. Ver um texto falando da sua própria existência é uma forma de se sentir valorizado em um mundo dominado pela palavra escrita”, diz.
Academia e afeto
A pesquisadora argentina Lucía Tennina veio para o Brasil com o objetivo de estudar os saraus das periferias de São Paulo e Brasília. Ela é autora da obra Cuidado com os Poetas! Literatura e Periferia na Cidade de São Paulo, publicada pela editora Zouk. Para Tennina, os resultados da pesquisa realizada pela UNB não são surpreendentes: “A sociedade brasileira é racista. Eu vejo na academia também, com exceção de alguns espaços, a academia é principalmente branca e isso já diz muito. Quero organizar uma antologia de literatura negra e me perguntaram por que eu estava separando as pessoas. Tive que explicar que isso ainda é necessário”.
Sua decisão de pesquisar os saraus foi uma consequência do incômodo em perceber os preconceitos e a repetição de temas reproduzidos dentro da academia. O trabalho de campo de Tennina, que também é mestre em Antropologia Social, a fez descobrir uma produção cultural afetiva. “Uma coisa que caracteriza a produção das periferias pra mim é o afeto, os saraus ressignificaram o mapa de são Paulo porque criaram um mapa afetivo da periferia. Ainda existe uma concepção de que isso não é literatura, e isso faz repensar a ideia do que é literatura. Essas produções acabam funcionando como uma prática que ressignifica a vida das pessoas e elas se sentem inseridas dentro da comunidade. O Sérgio Vaz fala em como a cultura possibilita que este poeta se torne um cidadão. Esses espaços acabam sendo de salvação”, pondera.
Criador da Cooperifa, o poeta Sergio Vaz já publicou oito livros e ainda sente na pele a dificuldade de vendê-los em livrarias. “Cresci lendo grandes clássicos, como Dante e Victor Hugo até descobrir Carolina Maria de Jesus e João Antônio. Quando comecei a pensar na literatura, falei que ia escrever sobre nós, negros e pobres, que são marginalizados e que sonham. Para mim, o livro da Carolina foi essencial ao ver o negro como protagonista”, diz. Com os obstáculos do mercado, Sergio decidiu criar também um projeto, chamado Poesia Contra a Violência, por meio do qual apresenta a poesia para estudantes de escolas públicas de São Paulo. Em 2017, visitou 52 escolas e, em 2018, 32 escolas.
“Acho que durante muito tempo, a literatura foi o pão do privilégio e não fizeram questão se o povo gostava de literatura, de escrever. Quando surge a Cooperifa, surge essa onda de saraus, a periferia começa a ler, há campanhas para isso. O mercado nunca olhou para a periferia, para o negro e para o pobre. Acho que o modelo adotado pelas livrarias se esgotou, faltou valorizar a literatura negra e periférica. Preocupou-se em vender para o mercado e não para as pessoas. Quando se coloca um texto da gente, a molecada vê a representatividade. A gente quer contar a nossa própria história, não queremos mais que as pessoas contem. Como o país pode estar numa crise no momento em que mais de 100 saraus acontecem em São Paulo? É uma coisa missionária militar pela literatura”, conclui.