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Falta de tempo crônica

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Por Bravo
Atualizado em 10 nov 2023, 16h51 - Publicado em 2 Maio 2017, 07h27
“The Sands of Time” (1850–1852), estereoscopia, Thomas Richard Williams

Por Carlos Castelo

Tenho 15 minutos para escrever esta crônica.

É dia de rodízio do carro e preciso chegar uma hora antes ao trabalho. Reunião de novos procedimentos. Então foi necessário andar 800 metros sob chuva para pegar o trem da CPTM. Acabei comparecendo em cima da hora.

Tinha me proposto a fazer exercícios três vezes por semana e o encontro, marcado de última hora, botou a saúde em segundo plano. Sou o tipo de pessoa que carece de uma certa planificação para iniciar qualquer coisa na vida. Da compra de um imóvel aos treinos esportivos. Tinha planejado começar as tais atividades físicas nessa segunda-feira. Com isso garantiria um dia útil de caminhada já no início da semana. E, os outros dois treinamentos, ficariam para sábado e domingo, quando tudo está um pouco mais calmo.

Infelizmente está cada vez mais difícil prometer-se alguma coisa. Prometer aos outros então é impensável. Almoços, cafés da tarde, idas ao cinema, não consigo fazer mais nada disso. Quando muito é um chat mais longo num Messenger da vida e olhe lá.

Minha mãe é idosa, mora no interior, e a última vez que falei com ela, ao telefone, foi no Ano Novo. Ela se queixa bastante, mas acabou tendo que, quase aos 90 anos, entrar no WhatsApp para charlar com o filho. É incrível como aprendeu rápido a usar emojis e a enviar GIF’s com mensagens do papa Francisco.

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Em função desse “rush” também não consigo mais ler. Minha leitura se reduz, no momento, a manchetes de portais da internet e a um ou dois parágrafos de posts jornalísticos. Logo eu que devorei Guerra e Paz durante uma lua de mel.

É senso comum que os livros são quase tudo para um cronista. Leitura e vivência. Como não tenho mais contato com nenhum das duas, preciso inventar artifícios para entregar meus materiais aos órgãos de imprensa. Fazer aquilo que sempre critiquei no gênero: a narrativa palavra puxa palavra.

Tudo bem que Rubem Braga, com sua vasta experiência na II Grande Guerra e no corpo diplomático, podia se dar ao luxo de produzir o que quisesse. Tudo ótimo que James Joyce, com seus neologismos geniais, teria a licença de conceber linhas que nem a Nora Barnacle entendesse. Contudo, no meu caso, criar algo que renego, em função da mais prosaica falta de tempo, vem com o gosto amargo de derrota.

É triste, só que não há muito a ser feito. A reunião começou atrasada e vai ultrapassar a hora do almoço. Como sempre não acontecerá nada que mude o futuro da humanidade, no entanto sou daqueles que não consegue escrever em laptops. Fico me sentindo culpado e paranoico imaginando que alguém pode perceber que não estou focado nas problemáticas, sem solucionáticas, do comitê.

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A ideia inicial desta crônica eu já tinha pinçado entre várias outras. Seria a história de um engenheiro do Google que inventou um incrível aplicativo no qual podia-se comprar créditos de tempo. Isso mesmo, como quem compra créditos de celular pré-pago.

Mal consegui desenvolver o esboço do argumento. Sobrou apenas esse tempo exíguo que estou acabando de queimar agora. Se existisse o tal app eu já o teria instalado em meu celular e talvez logrado postar algo com mais qualidade literária e dentro das regras da arte.

Fica para uma próxima, quando eu tiver mais do que 15 minutos para escrever uma crônica.

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