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Finjo, pego e viro

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h27 - Publicado em 19 jul 2018, 09h34

Crítica: o músico paulistano Romulo Fróes escreve sobre o disco de estreia de Maria Beraldo, “Cavala”

Por Romulo Fróes

Parece haver dois movimentos que se cruzam em Cavala, primeiro disco solo de Maria Beraldo. De um lado uma investigação autobiográfica sobre sua sexualidade, presente em praticamente todas as letras escritas por ela no álbum. De outro, uma vontade sua em localizar seu trabalho não apenas no contexto da produção artística contemporânea, mas dentro da própria história da música popular brasileira. No cruzamento entre estes dois movimentos reside a força de seu disco de estreia.

Algumas das faixas de Cavala funcionam como uma espécie de canções-paródias, que se relacionam com importantes canções do repertório de alguns dos maiores artistas da música popular brasileira. Da Menor Importância (Maria Beraldo), por exemplo, põe em perspectiva os versos “Há sempre um homem para uma mulher, há dez mulheres para cada um, uma mulher é sempre uma mulher etc. e tal”, escritos por Caetano Veloso em sua Da Maior Importância. Para Maria é preciso ouvi-lo, antes de definir o sujeito de sua canção: “Enquanto eu não ouço sua voz, eu não sei dizer se é um homem ou uma mulher”.

Em Maria (Maria Beraldo), contrapõe o seu Paratodos ao de Chico Buarque, reescrevendo a árvore genealógica masculina da célebre canção do compositor a partir das mulheres de sua família: “Minha mãe não era, é, minha mãe não era, é mineira, minha vó nasceu no interior de Minas, minha bisavó baiana eu imagino só”.

Amor Verdade (Maria Beraldo), que faz referência a Pai e Mãe de Gilberto Gil é antes aceitação do que uma tentativa reconciliatória. O que na canção de Gil é puro afeto (“Eu passei muito tempo, aprendendo a beijar outros homens, como beijo o meu pai, eu passei muito tempo, pra saber que a mulher que eu amei, que amo, que amarei, será sempre a mulher, como é minha mãe”), na canção de Maria é desejo escancarado: “Pai, gosto muito dos homens, sim, de tê-los ao alcance da boca, sim, mas no calor da manhã quem me fez delirar foi uma mulher, como é minha mãe”.

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Antes de passar a cantora, atribuição recente em sua trajetória, é preciso destacar a instrumentista. Não somente pelo óbvio do rigor de sua formação — Maria Beraldo é bacharel e mestre em música pela Unicamp — , mas sobretudo por sua personalidade e capacidade de escapar aos cânones enrijecidos que uma formação como a sua, poderia acarretar. Maria bem poderia exibir sua reconhecida técnica ao clarinete e clarone, adquirida em longos anos de estudos e atuação musical, mas é clara sua opção por privilegiar a canção em detrimento de uma mera exibição de suas habilidades. Isso talvez explique a presença discreta de seu instrumento de formação no disco.

A produção musical impecável de Cavala, dividida entre a própria Beraldo e Tó Brandileone, também o engenheiro de gravação do disco, é apoiada sobretudo no uso de sintetizadores e programações eletrônicas, dando ao disco um caráter pop, por vezes dançante, o que poderia ser uma distração, mas o modo inventivo como Maria e Tó trabalham os arranjos acaba por imprimir uma nova camada de significados aos assuntos abordados por Maria em suas canções. Afinal, há um pensamento estético-musical por trás da precisão estanque dos equipamentos eletrônicos utilizados por eles. Precisão que se derrete na já citada Da Menor Importância, com seu beat eletrônico flutuante que acelera e desacelera conforme o andamento impreciso do canto de Maria, como que emulando a sedução sugerida pela canção: “Enquanto eu não ouço sua voz eu não sei dizer se é um homem ou uma mulher”, oscilando conforme a aproximação de sua personagem: “Se é uma mulher, mulher tão linda, se o rapaz é doce, doce, doce”, como um animal que fareja sua presa antes do ataque: “Mas suas pernas tortas, eu quero para mim”.

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Mesmo os instrumentos não eletrônicos se contaminam pelo partido sonoro predominante do disco. As guitarras de Sergio Abdalla e Maria Beraldo em Rainha (Maria Beraldo), por exemplo, são executadas menos por suas qualidades harmônicas e mais por suas possibilidades timbrísticas. O mais correto talvez teria sido creditar em sua ficha técnica que Maria e Sergio tocaram pedais de efeitos. Pedais que se parecem com interruptores com mau contato, provocando uma cacofonia de ruídos e interferências. Um “não-arranjo” em simbiose com a canção, basicamente um jogo entre as palavras pego, viro e finjo, que variam de posição no verso à medida que a letra se desenvolve, como se ela mesma tivesse seu próprio interruptor e a cada tentativa de ligá-lo, provocasse suas variações: “Pego, viro e finjo”, “Viro, finjo e pego”, “Finjo, pego e viro”, assim por diante.

O mesmo comportamento da instrumentista pode ser percebido na interpretação de Maria Beraldo. Sua voz perde o protagonismo esperado em um disco de uma cantora, ela é “apenas” mais um elemento da canção, a verdadeira protagonista em Cavala. Com extrema desenvoltura, Maria se adapta ao texto de cada canção. Seja no tom quase agressivo com que transmite a tensão sexual descrita em Tenso (Maria Beraldo): “Tenso, tão desavisado meu tesão, vive um momento tenso, livre, leve, solto de coração, é gostoso, é tenso”; seja relaxada como na paquera singela de Gatas Sapatas (Maria Beraldo / Mariá Portugal): “Gatas sapatas mães de bebê, tão sexy com seu sling, tão sexy com seu bebê, tão sexy sem seu sling, tão sexy sem seu bebê”; seja de modo afirmativo, como na declaração sem pudores da faixa título Cavala (Maria Beraldo): “Ela cavala, uma cavalgaria sua tão lisa coisa tão lisa, eu morreria de você me dar, morreria, teu cheiro encarnar na cavalaria”.

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Em um disco com a alta voltagem erótica de Cavala, também os coros se modificam, vão além de uma hábil harmonização de vozes. Apoiados principalmente sobre respirações ofegantes e grunhidos emitidos por Maria, se assemelham mais a gemidos de prazer.

Há também a confluência entre a cantora e a instrumentista em Cavala, que resulta em achados poéticos muito felizes. Em Maria, por exemplo, ao compartilhar a melodia da composição com o naipe de clarinetes, Maria divide a letra em pontos inesperados, como quando na primeira vez em que aparece o verso “Minha vó nasceu no interior de Minas”, interrompe seu canto entregando a conclusão da frase melódica ao naipe, deixando em suspensão a sílaba final e enunciando apenas o Min de Minas, ampliando assim, para dentro de si mesma, a geografia sentimental de sua canção.

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Em um outro trecho dessa mesma canção, o modo como descreve uma melodia descendente apoiando-a enfaticamente na última palavra do verso “Minha bisavó baiana eu imagino só”, abre possibilidades para o seu entendimento que tanto pode aludir ao fato de Maria não ter conhecido sua bisavó, como estar se referindo ao seu temperamento solitário, hipótese apenas imaginada por ela.

Em Sussussussu (Maria Beraldo / Mariá Portugal) sua voz se transforma literalmente em um instrumento. A letra inteiramente recortada é “cantada” por Maria através de uma bateria eletrônica que armazena e processa as sílabas separadas anteriormente. Há aqui uma provocação bem humorada na junção entre letra e música. Desmembrada pela melodia, quando escrita, a letra se assemelha a um poema concreto:

sussussussu
vavavava
cocococo
cacacaca
bebebebe
lulululu
dodododo

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Quando reagrupada por nossa leitura, revela-se o chiste: “suvaco cabeludo”.

Às vezes, o arranjo é que aciona sua interpretação, como na já citada Rainha, em que a massa sonora ruidosa de seus pedais interferem na voz de Maria que parece pegar aos poucos, traçando um percurso melódico entre a fala e o canto que só se completa ao final da canção. Completada a melodia, seu canto invade a faixa seguinte, funcionando quase como uma introdução à única regravação presente no disco, Eu Te Amo (Tom Jobim / Chico Buarque). Se a considerarmos mesmo uma faixa introdutória, não deixa de ser curioso notar um certo espelhamento entre sua canção e algumas das canções recentes de Chico Buarque. Pois se, como já dito, a melodia de Rainha traça um percurso que parte da fala até o canto, Chico tem criado melodias cada vez mais informes, de desenvolvimentos tão incertos quanto inesperados, que as fazem perder nitidez até quase tornarem-se fala novamente. Esta falta de nitidez está presente no arranjo criado por Maria.

Acompanhada somente de sua guitarra, que apenas pontua a harmonia da canção, Beraldo preenche o vazio de seu arranjo naufragando sua voz sob reverbs e delays que esfumaçam seu canto, provocando um nevoeiro na canção. Transportando-a para um tempo indeterminado, no que parece uma tradução poética sobre a atemporalidade de Eu Te Amo, uma das obras-primas criadas por Tom e Chico. Mas apesar de sua inventividade, para mim não está no arranjo, e sim no texto, o grande achado de Maria em sua versão. Desde a gravação do próprio Chico em dueto com Telma Costa, até as inúmeras regravações posteriores, suas intérpretes sempre hesitaram em vestir seu paletó, mudando através de sua vestimenta, o sujeito da canção. Ao não modificar uma vírgula sequer de sua excepcional letra — entre as mais belas já escritas por Chico Buarque — , cantando os versos tais como escritos por ele, vestindo enfim seu paletó (“Como, se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça o teu vestido”), além de reforçar o seu próprio discurso, lendo a letra sob a ótica do amor entre duas mulheres, Maria escava um eu lírico feminino justamente em uma canção que, a priori, não se vale de tal expediente largamente utilizado por Chico em sua obra. De certo modo, resgata também uma antes festejada sensibilidade feminina atribuída ao compositor, recentemente acusado de machista por conta da letra de Tua Cantiga, parceria de Chico e Cristóvão Bastos presente em seu último álbum.

Para os que chegam agora na música de Maria Beraldo é preciso ter em mente que não se trata de um trabalho consolidado, mas de uma investigação pessoal e artística em plena transformação, que vai muito além da imagem refletida no espelho que é sua Cavala. Sem o temor da influência, nem ressentimento, sua música dialoga com o imenso legado da canção brasileira, circunscrevendo novos limites ao seu repertório. Limites expandidos em sua busca por novas maneiras de se relacionar e de se colocar no mundo através de sua música e que produziu uma voz muito original, habitada por muitas outras, é verdade, mas que Maria habilmente soube transformar em sua. Como dito por ela mesma: “Tem uma coisa que me dá, que eu finjo, viro e pego”.

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