German Lorca, por Eder Chiodetto
A partir desta quinta-feira, 27, está em exposição no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, a exposição German Lorca: Arte Ofício/Artifício. Aos 94 anos, o fotógrafo paulistano, um dos principais expoentes da fotografia moderna no país, tem pela primeira vez o seu material colorido exibido em uma mostra.
Para falar da importância de Lorca, a Bravo! publica com exclusividade o texto do catálogo da exposição, escrito por Eder Chiodetto, curador do projeto. Chiodetto é jornalista, fotógrafo e um dos mais importantes curadores de fotografia do país. Ele também é fundador do Ateliê Fotô, espaço que vem desenvolvendo pesquisas, discussões e leituras comentadas de fotografia contemporânea com profissionais e amadores.
Por Eder Chiodetto, curador da exposição German Lorca: Arte Ofício/Artifício
German Lorca nasceu em São Paulo, em 1922, 100 anos após a Independência do Brasil e 100 dias depois da Semana de Arte Moderna.
Ele veio ao mundo entre a Primeira e a Segunda Grandes Guerras Mundiais, entre o Dadaísmo (1916) e o Surrealismo (1924) — os principais movimentos de vanguarda, que alteraram profundamente o estatuto da arte — , um ano antes de Sigmund Freud lançar a obra O Ego e o Id e meses antes da transmissão pioneira de rádio no Brasil, com a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, feita a partir do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Marcel Duchamp criou a obra Ar de Paris três anos antes de Lorca nascer e, quando Tarsila do Amaral pintou o Abaporu Lorca, havia completado seis anos de idade. Houve, ainda, no mesmo ano do nascimento de Lorca, a criação do Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Tais acontecimentos, entre outros, mostram como a década de 1920 foi iconoclasta e libertária em vários campos do conhecimento e como esse estado das coisas impactou profundamente o comportamento da humanidade e das artes em geral. Podemos afirmar, sem riscos de exageros, que a década de 1920 promoveu as mudanças mais estruturais na forma de se praticar e de se pensar a arte.
Os ecos, não apenas do movimento surrealista, mas da incorporação definitiva da latência do inconsciente, pautou, nas décadas consecutivas, uma maior complexidade das linguagens artísticas. O homem diante da dialética, da consciência de que o bem e o mal coexistem em sua natureza, passou a ser o foco das representações artísticas. As contradições do ser, até então tido como um “bom selvagem”, como preconizou Jean Jacques-Rousseau, passaram a ser expostas sublinhando os temores, as fantasias, os sonhos e os desejos humanos de forma mais enfática.
Por essa época a fotografia experimentou, por intermédio de artistas como Man Ray (1890–1976) e Lázló Moholy-Nagy (1895–1946), entre outros, um voo libertário a partir do qual deixaria definitivamente de se ater somente à sua vocação documental, passando a representar o sensorial e as parcelas não visíveis da psique humana.
No final da década de 1940, os fotoclubistas brasileiros, capitaneados por Geraldo de Barros, investiram na experimentação, privilegiando a forma ao referente. Por meio de justaposições, solarizações e ataques físicos aos negativos, entre outras estratégias, ampliaram sobremaneira o repertório semântico da linguagem, tendo por referência essa geração de artistas iconoclastas que agiram desde a década de 1920 na Europa.
Essa referência, porém, passaria por uma gestação antropofágica, como sugeria o poeta Oswald de Andrade em seus manifestos.
Em 1924, Oswald de Andrade (1890–1954), que havia sido uma das figuras centrais do Movimento Modernista Brasileiro de 1922, escreveu em tom crítico e jocoso o Manifesto Pau-Brasil e, em 1928, o Manifesto Antropófago. Em linhas gerais, esses textos propunham não renegar a cultura estrangeira, mas “devorá-la” para digeri-la, fazendo-a passar por um filtro — “o estômago” — de referências nacionais. Ao final desse processo deveriam surgir obras e conceitos a partir da somatória do “nós + eles”, ou seja, um saber e uma cultura híbridos.
Numa das passagens do Manifesto Pau-Brasil, que em alguns momentos lembra o tom apaixonado pelo desenvolvimento técnico da sociedade do Manifesto Futurista, publicado em 1909, por Filippo Tomaso Marinetti (1876–1944), Oswald conclama os artistas a pensarem o mundo e a representação dentro do campo da arte a partir das “novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte… Nossa época anuncia a volta ao sentido puro”.
É curioso que a fotografia surja de passagem num dos mais importantes momentos da arte brasileira. Essa citação atesta, de certa forma, que a fotografia brasileira estava ainda distante de perceber suas possibilidades narrativas e poéticas. Os “negativos fotográficos”, até a metade da década de 1940, permaneciam focados na objetividade do registro e da documentação do entorno realista e não na potência lúdica contida na irradiação da luz das estrelas. Voltar “ao sentido puro” das coisas implicava, segundo Oswald, um olhar de viés para a realidade circundante, um mergulho no sensorial em contraponto à arte de caráter figurativo.
Os primeiros passos nessa direção foram dados pelo artista Geraldo de Barros (1923–1998), que havia estudado desenho e pintura e, como a maioria dos artistas da época, empenhava-se no figurativismo. Após experiências com a pintura expressionista, Geraldo adquiriu uma câmera Rolleiflex e começou a investigar as possibilidades expressivas da fotografia.
Ao ingressar, em 1949, no Foto Cine Clube Bandeirante, uma agremiação de fotógrafos que atuavam juntos e concorriam em salões de fotografia, Geraldo se chocou com o estágio da fotografia. Certo romantismo prosaico e o padrão da pintura acadêmica eram o parâmetro usado para julgar as imagens dos clubistas. Imitações de naturezas mortas, paradoxalmente, ocupavam o lugar da representação da cidade dinâmica e veloz que as máquinas e os carros imprimiam no Brasil desenvolvimentista da metade do século XX.
Influenciado pelas teorias da Gestalt, ramo da psicologia que se aprofunda no estudo de como os indivíduos percebem as formas elementares da geometria, Barros foi cada vez mais radicalizando, para horror dos fotógrafos mais puristas, na síntese dos volumes e dos jogos de luz e sombra em suas experimentações fotográficas.
As experiências de Barros — grande parte delas realizadas no laboratório fotográfico na casa do amigo German Lorca, seu vizinho no bairro do Brás — incluíam fotomontagens, colagens e intervenções diretas no negativo fotográfico que resultavam em abstrações e num pulsante elogio das formas. Linhas e volumes se redesenham em suas “Fotoformas”, gerando matizes em preto, branco e cinza. Essa série influenciou vários outros artistas que se dedicavam à fotografia e pensavam em ecoar no Brasil aquilo que havia sido gestado nas vanguardas europeias cerca de 25 anos antes. Esse foi o primeiro momento no Brasil em que a fotografia foi sistematicamente produzida fora dos cânones da documentação.
Perceber a fotografia como uma linguagem que não precisa se limitar a denunciar ou referendar o espaço-tempo e permitir que, ao esvaziar o referente do seu sentido mais imediato, ela se liberte para pesquisar novas possibilidades semânticas, foram alguns preceitos que pautaram esses modernistas tardios. “A realidade, não raro, se torna mero pretexto, veículo comunicativo, passaporte de tudo onde exista parcela enclausurada de beleza”, escreveu o fotógrafo e crítico Rubens Teixeira Scavone, por muito tempo presidente do Foto Cine Clube Bandeirante, ao qual Barros e Lorca estavam associados.
Embora as vanguardas estéticas europeias, mais notadamente o Surrealismo e o Dadaísmo, sejam a base da inspiração desses artistas, é instigante perceber como a antropofagia oswaldiana que nos move mudou o caráter e o contexto dessa estética.
Em outra passagem do Manifesto Pau-Brasil, Oswald de Andrade dita, de forma sintética, conceitos que mais tarde se encaixariam perfeitamente nessas fotografias modernistas experimentais — das quais Lorca é um dos ícones — e no movimento concretista brasileiro, do qual Geraldo de Barros foi um dos precursores:
“A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
O trabalho contra o detalhe naturalista — pela síntese; contra a morbidez romântica –
pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico;
contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva.”
As obras de German Lorca, inseridas no primeiro módulo dessa exposição, denominado “Arte”, formam hoje um dos mais representativos conjuntos de imagens que enfatizam essa atitude libertária diante do código fotográfico.
Suas experimentações ajudaram sobremaneira a criar uma nova instância na forma de se pensar e produzir fotografias no campo da arte. Ele se tornou, assim, um dos precursores da “nova perpectiva” proclamada por Oswald.
Entre os fotoclubistas reunidos em torno do Foto Cine Clube Bandeirante, ao qual Lorca se filiou em 1947, todos tinham a fotografia como um hobby. A exceção a esse grupo foi justamente o então contador German Lorca, que logo se tornaria um fotógrafo profissional com forte atuação na reportagem e na publicidade, sem deixar de seguir em paralelo com sua produção autoral e artística.
Após começar a realizar reportagens, Lorca percebeu que havia um novo mercado emergente. As agências de publicidade que se instalavam no Brasil, em meados dos anos 1950, começavam aos poucos a produzir campanhas com imagens fotográficas e não mais apenas com ilustrações ou com fotografias vindas de suas sedes no exterior. Em 1952 inaugurou-se o G. Lorca Foto Stúdio, na Avenida Ipiranga, 1248, no Centro de São Paulo, voltado à fotografia técnica, industrial, comercial, reportagens em geral e a álbuns para crianças e casamentos.
Sem a figura do diretor de arte nas agências, o fotógrafo contratado para determinada campanha publicitária era também o responsável pela criação. Lorca destaca-se nesse meio justamente pelo alto grau de inventividade e experimentação adquiridos nos trabalhos feitos no âmbito do fotoclube e na convivência com os artistas. Tanto isso é verdade que algumas de suas fotografias, realizadas originalmente para anúncios de revista, anos mais tarde passaram a integrar o seu portfólio de trabalhos artísticos, como Pernas, 1960, feita para uma campanha de meias femininas, que se tornou uma imagem das mais conhecidas do seu portfólio de obras artísticas.
À medida que as agências publicitárias foram ganhando mercado no Brasil, houve uma pressão para que jornais e revistas mudassem seu sistema de impressão apenas em preto e branco para a cor. Era de fundamental importância para esse mercado que as consumidoras, por exemplo, identificassem nas prateleiras dos supermercados os produtos com embalagens coloridas tal qual elas haviam visto nos anúncios impressos.
Assim sendo, Lorca começa a ser contratado pelas agências para realizar campanhas com fotografias em cor. Sem agências de modelos, sem diretores de arte que pré-desenhassem as imagens, Lorca seguiu como um dos fotógrafos criativos que também possuíam grande capacidade de produção. Muitas das campanhas que necessitavam de crianças, por exemplo, foram estreladas pelos seus filhos José Henrique e Fred. Além disso, uma vizinha do estúdio era chamada para fazer o papel de mãe e assim por diante.
Lorca teve o primeiro estúdio em São Paulo em que era possível fotografar um carro, área na qual ele se destacou por conseguir fotografar carros sem os indesejados reflexos dos flashs. No módulo Ofício, podemos observar várias campanhas realizadas por Lorca.
Outro mercado de atuação de Lorca foi a indústria fonográfica. Ele realizou capas de discos para diversos artistas, como Nelson Gonçalves, Vanusa, Os Incríveis, Originais do Samba, Lindomar Castilho e Nilton Cesar, entre outros. Em algumas delas, ele lançava mão do experimentalismo, realizando fotos com baixa velocidade de obturador, para flagrar o movimento, como na inspirada capa do LP de Vanusa, ou com a técnica da solarização, como nos discos de Os Incríveis e Os Caçulas.
Com a fotografia cor completamente incorporada à sua rotina de fotógrafo profissional, depois de alguns anos ela começou a aparecer também em seus trabalhos artísticos. A partir dos anos 1970 Lorca começou a desenvolver pesquisas na cor com a mesma versatilidade com que trabalhava no preto e branco. Sobreposições, alteração de contrastes ou mesmo fotografias diretas que aludem a instigantes jogos cromáticos ou, de novo, a inspirações de cunho surrealista, que perpassam toda a carreira do fotógrafo-artista-repórter-publicitário.
No módulo Artifício, que encerra a exposição, fizemos um apanhado do material colorido de Lorca, exibido pela primeira vez agora no Sesc Bom Retiro. As fotografias mostram como esse mestre da arte fotográfica tem se divertido nos anos recentes, testando limites e possibilidades expressivas a partir dos jogos cromáticos que ele provoca tendo por base a sua vasta experiência em questionar dogmas e buscar imagens que lhe tragam prazer estético.
Divagando entre a beleza inconteste dos desenhos que as pipas coloridas rabiscam no céu azulado, as cores saturadas de um colchão de ar que desliza sobre uma piscina, gerando justaposições complexas entre cores complementares ou se deixando seduzir pelos confetes que comemoram o final do ano em Nova Iorque, Lorca demonstra seu espírito livre, sempre ávido pela captura da beleza enclausurada nas cenas cotidianas.
Aos 94 anos de idade, Lorca segue rigoroso e extremamente estimulado diante de questões colocadas pelas possibilidades expressivas da fotografia no contexto contemporâneo. Idade avançada, nos prova o mestre, não é um empecilho para a jovialidade. A atitude iconoclasta e poética de Lorca diante da linguagem que ele elegeu para ser sua arte e seu ofício é algo que irá perdurar para todo o sempre. Referência de coerência, criatividade e paixão que seguirá iluminando as gerações vindouras. Viva Lorca!
Serviço:
German Lorca: Arte Ofício/Artifício
De terça a sexta, das 9h às 21h; sábados, das 10h às 21h e domingos das 10h às 18h.
Sesc Bom Retiro — Al. Nothmann, 185. Até 26/02