Gustavo Machado explica a aventura do quadrinho erótico no Brasil
Por Rafael Spaca
Gustavo Machado é um dos maiores nomes da história dos nossos quadrinhos. Trabalhou na lendária editora curitibana Grafipar, que revolucionou a maneira de se produzir literatura erótica no país e moldou comportamentos. Nesta conversa você terá a chance de conhecer essa e outras histórias no testemunho de um de seus protagonistas.
Os quadrinhos da Editora Grafipar eram comparados, em qualidade, às revistas de super-heróis. O que eles tinham de especial?
Não conhecia essa comparação, mas sei que os quadrinhos de super-heróis faziam muito sucesso na época em que as revistas em quadrinhos eróticos da Grafipar viviam seu auge nas bancas. Isso foi na passagem dos anos de 1970 para os 1980. Basicamente, era o mesmo público que consumia os dois produtos, ou seja, os jovens. É bom frisar que no caso das revistas da Grafipar, estas eram lacradas e com o aviso de impróprias para menores de 18 anos. Era uma geração que estava tendo pela primeira vez a oportunidade de curtir quadrinhos abordando o sexo com uma liberdade como nunca antes havia sido vista ou permitida nos gibis nacionais. Ao contrário dos famosos catecismos, aqueles quadrinhos pornôs de Carlos Zéfiro & cia, vendidos clandestinamente nas bancas, as HQs eróticas da Grafipar tinham uma boa dose de sexo nos roteiros e imagens, mas sem descambar para a pornografia. Só a partir de 1982, um teor cada vez mais explícito começaria a acontecer nos quadrinhos, com o afrouxamento gradual e constante da censura, quando da liberação e exibição de filmes com cenas de sexo explícito como Garganta Profunda e o nacional Coisas Eróticas. Ainda que antes disso, outras fitas com cenas de sexo explícito tivessem sido liberadas para exibição nos cinemas, como a superprodução Calígula e O Império dos Sentidos, este com o aval de filme de arte.
Com essa abertura da censura, editoras concorrentes começaram a lançar nas bancas edições de HQs pornôs explícitas com material importado, assim como fotonovelas com sexo explícito. O custo dos enlatados era muito mais baixo do que as produções em quadrinhos da Grafipar, que publicaram 99,9% de material nacional e inédito. Isso foi o início do fim, graças ao custo desigual, num cenário de inflação galopante, no início dos anos de 1980. Os leitores também buscavam HQs cada vez mais ousadas e explícitas. No entanto, os autores de quadrinhos nacionais da Grafipar não ficavam à vontade com essa liberação e nova exigência do mercado, pois isso fazia o conteúdo das HQs trazer cada vez mais sexo e menos enredo.
Não durou muito e a Grafipar fechou as portas, por estes e outros fatores, tendo produzido muito pouco material pornô explícito em quadrinhos. O grande diferencial das produções de HQs eróticas da Grafipar foi exatamente por manter o nível de qualidade alto nos trabalhos autorais em suas publicações. O tema “sexo” era um chamariz, um fio condutor, mas sempre usado nas histórias com inteligência e criatividade.
Por que não existem mais quadrinhos eróticos hoje em dia? E por que eles existiram entre os anos 70 e 80?
Não se produz mais quadrinhos eróticos para venda em bancas de revistas no Brasil como se fazia até algum tempo atrás, é certo. No entanto, os europeus e japoneses mantêm uma longa tradição em quadrinhos eróticos, em quantidade e qualidade, através da velha e boa publicação em papel, em revistas, álbuns de quadrinhos ou mangás. Nos últimos tempos, o nicho editorial dos quadrinhos eróticos migrou para a nova mídia, a internet. No Brasil, o boom das publicações de gibis eróticos aconteceu com a abertura política e liberação da censura gradativamente, na virada das décadas de 1970 e 80.
Podemos dizer que o sucesso destas HQs se deve, em grande parte, às curvas da garota da capa?
A capa numa revista sempre foi a grande vitrine para o conteúdo do produto, como o cartaz e o trailer são para o filme no cinema. Você sabia que muitas das capas das revistas eróticas da Grafipar eram pintadas a óleo? Um requinte de produção raro em qualquer publicação, de qualquer época, que com certeza contribuiu para o sucesso de vendas.
Essas capas não mereciam uma edição em livro?
Não apenas as capas, como muitas grandes HQs que foram publicadas pela Grafipar, entre 1978 e 1983. Aquele momento do quadrinho nacional ainda não foi devidamente resgatado, mesmo que dois belos trabalhos de pesquisa tenham sido publicados nos livros “A Guerra dos Gibis 2 — Maria Erótica e o clamor do sexo”, do jornalista Gonçalo Junior, e “Grafipar, a editora que saiu do eixo”, do professor e estudioso de quadrinhos, Gian Danton.
As garotas da Grafipar tinham uma beleza renascentista, suculentas. Esse era o ideal de beleza dos desenhistas e dos leitores?
Esse era o padrão nacional de beleza feminina vigente naqueles tempos, quando ainda nem era tão comum chamar uma mulher de “gostosa”, e sim, “boa” ou “boazuda”, lembra? Desenhávamos o que a gente admirava e “curtia” nas ruas. As curvas generosas, as barriguinhas, os quadris largos, a mistura de raças e os atributos naturais da anatomia feminina da mulher brasileira: tudo isso estava lá nas nossas HQs, e para todos os gostos. Ainda não havia os implantes de silicone e os corpos anabolizados e modelados artificialmente.
Alguma garota que você se baseou na ilustração chegou a tomar conhecimento da homenagem?
Quando desenhava uma personagem feminina me inspirava em mulheres que apreciava, tanto as mais próximas do meu cotidiano como algumas celebridades do cinema e TV que admirava. As mulheres desenhadas por outros artistas também eram fontes de inspiração. Eu acredito que fazia essas apropriações visuais sempre secretamente, pois minhas musas posavam para mim apenas em pensamento.
Como analisa a mudança dos padrões de beleza? Hoje, ao que parece, muitos preferem as mulheres mais magras e com seios fartos, à moda americana…
Pessoalmente, continuo admirando e preferindo aquela beleza física feminina anterior ao culto às academias, com seus modelos super sarados, ou a magreza anoréxica e forçada das modelos a base de dietas desumanas. Adoro ver imagens e filmes antigos e curtir aquelas mulheres não estereotipadas, com tipos de belezas tão comuns, distintas e original. Já reparou como todo mundo tem um sorriso similar hoje em dia? Parece que o mundo todo usou aparelhos! Antigamente, mesmo as dentucinhas faziam sucesso, era uma beleza!
A Editora Grafipar é de Curitiba. Como se inserir nacionalmente estando em Curitiba e não em São Paulo ou no Rio de Janeiro?
A Grafipar conseguiu um lugar ao sol nas bancas junto às outras publicações — em sua esmagadora maioria, de editoras do eixo Rio/São Paulo — por ter saído na frente e publicado HQs eróticas antes das demais. Em seu auge, a Grafipar tinha mais de uma dezena de títulos diferentes de quadrinhos nas bancas, com tiragens quinzenais chegando até 30 mil exemplares cada. Nessa época, a tiragem total de vendas da editora chegava a ultrapassar um milhão de exemplares por mês, um espanto para uma editora pequena. O Amigo, professor, escritor e estudioso de quadrinhos Gian Danton, foi muito feliz na escolha para o título do seu livro: “Grafipar, a editora que saiu do eixo”, que trata exclusivamente da história dos quadrinhos eróticos da Grafipar.
Mozart Couto e Rodval Matias eram os desenhistas mais festejados pelos leitores. Qual a sua avaliação a respeito deles?
Foram duas das grandes descobertas da Grafipar. Ambos jovens e talentosos desenhistas, que através de intensa produção de HQs pela Grafipar amadureceram seus trabalhos e conquistaram uma imensa legião de fãs. A qualidade das suas artes não deixava nada a dever aos grandes desenhistas estrangeiros. Como dizia o slogan nas revistas, eram “Quadrinhos feitos na raça!”.
Você chegou a morar na vila dos quadrinistas com o Fernando Bonini, o Franco de Rosa, o Watson Portela, o Flávio Colin e o Cláudio Seto. Como era a convivência com eles?
Foi uma experiência inesquecível, talvez a mais rica e original de toda a minha carreira, que já vai para os 40 anos como desenhista. Em meados de 1980, como artistas e colaboradores da Grafipar, fomos formalmente convidados pela editora a nos mudarmos para Curitiba, com a garantia de trabalho suficiente para levarmos uma vida digna. Os editores curitibanos precisavam ter desenhistas próximos, que garantissem o volume de produção necessário naquela ocasião. Eu e os outros citados acima fomos fisgados pelo convite, principalmente após uma visita a capital do Paraná, para participar da reunião com os editores. Ficamos encantados com o clima e beleza da cidade, e em pouco tempo nos mudamos para Curitiba, alguns com família, mulher e filhos. Tivemos muita sorte em conseguir alugar casas vizinhas, num bairro afastado e bucólico, perto de Santa Felicidade. Éramos vizinhos de muro, literalmente, e era comum usarmos os muros para compartilharmos entre nós HQs que estavam sendo desenhadas, ou fazer o convite para alguma parceria. Aprendi muito nessa época. Era um convívio intenso entre amigos e vizinhos desenhistas e uma troca diária no processo de criação de cada nova HQ, entre um cafezinho e um bom bate-papo.
Diz a lenda que vocês ganhavam mais ou menos quatro vezes o salário de um jornalista e que isso chamou atenção dos escritores, inclusive do poeta Paulo Leminski. É verdade?
Não passa de lenda, (risos)… Até porque nem sei o que seria um salário de jornalista naquela época. Nossa remuneração dependia sempre da produção, pois em quadrinhos se recebe por página produzida. Nossa vida era bem simples, sem luxos. Acredito que o fato de Paulo Leminski ter colaborado escrevendo alguns roteiros tenha sido mais pela amizade com os editores e por curtir quadrinhos. Mesmo assim, foram poucas as HQs produzidas por ele e sua mulher, a também escritora Alice Ruiz.
A relação entre desenhistas e roteiristas nem sempre foi cordial?
Totalmente amistosa. Existiam preferências como um roteirista escrever uma história pensando na arte de um desenhista específico, ou mesmo o desenhista tendo predileção pelo estilo de algum escritor. Era comum o Claudio Seto, nosso editor e guru, levar uma pilha de roteiros de quadrinhos para nós em casa. A gente tinha liberdade de escolher, ou no máximo, às vezes, o Seto pedia se podíamos desenhar um roteiro que já estava programado para alguma edição.
Em outras ocasiões, os próprios desenhistas escreviam a HQ que desenhavam ou fazíamos parcerias. Chegamos até a desenhar histórias enviadas por leitores. Era tudo muito tranquilo e cordial.
Quais os desenhistas que influenciaram o seu trabalho?
Desde o meu interesse por desenho e quadrinhos na infância, muitos grandes desenhistas me marcaram, mas para condensar a lista citarei apenas alguns: Carl Barks (Tio Patinhas e Pato Donald), Hergé (Tintin), Hal Foster (Príncipe Valente), Alex Raymond (Flash Gordon), Alex Toth (Zorro e outros), André Franquin ( Spirou e Fantasio), Uderzo (Asterix), Mezières (Valerian), Neal Adams (Batman), John Buscema (Surfista Prateado), Joe Kubert (Tarzan) e Moebius.
Na época da Grafipar, quando vivi na vila dos quadrinistas, com certeza o trabalho do Watson, Julio Shimamotto e Mozart Couto estavam entre os que eu admirava. Também o fato de viver e trabalhar ao lado de amigos talentosos como Claudio Seto, Itamar Gonçalves, Fernando Bonini, Franco de Rosa, e poder admirar suas produções “in loco” com certeza me marcou fortemente. Aquilo tudo foi uma grande escola de arte!
O desenhista Mozart Couto vinha de uma família conservadora do interior de Minas Gerais e por isso, não desenhava erotismo, que era a principal fonte de renda da editora. E você, tinha alguma restrição em relação ao erotismo?
Na verdade, apenas no início de sua colaboração na Grafipar que Mozart Couto não desenhou HQs puramente eróticas. Mesmo no princípio, quando criava histórias de ficção e aventura, Mozart desenhava sempre mulheres belas e sensualíssimas. Como os leitores requisitavam muito as suas histórias, ele logo passou a colaborar em várias edições e nos mais variados temas. Foi um dos autores que mais produziu quadrinhos eróticos, em quantidade e qualidade.
Pessoalmente, as únicas restrições que fazia ao desenhar HQs eróticas era quanto a certas temáticas que não estava familiarizado, ou não me seduziam. Era muito jovem, por volta dos vinte e poucos anos, e ainda estava aprendendo tanto a lidar com sexo como desenhar sobre o tema.
A Boca do Lixo, com suas pornochanchadas, era uma inspiração pra ti?
Fui adolescente nos anos 1970, portanto, as pornochanchadas eram um dos meus sonhos de consumo. Cheguei a falsificar muita carteirinha de estudante pra poder entrar em filmes impróprios para menores de 18 anos. Meus passatempos prediletos eram o desenho, ouvir música e ir ao cinema. Claro que naquela idade, o apelo maior na hora de conferir os últimos lançamentos nos cinemas era poder assistir as belas musas desfilando sem censura nos filmes. Já adulto, comecei a me interessar pelas produções nacionais como um todo. Sempre preferi as comédias mais leves, e levei essa opção para as HQs que produzi na Grafipar. Gostava de escrever e desenhar HQs que tivessem a ver com a minha vida, com o universo que conhecia. Eram histórias geralmente envolvendo jovens, com suas dúvidas, confusões e descobertas, coisas que eventualmente vivi ou fantasiei viver.
E qual a musa da Boca do Lixo que mais mexia com você?
Não tive tantas oportunidades de assistir a pornochanchadas na adolescência. Era algo meio proibido, aquela coisa de carteirinha falsificada, do porteiro do cinema ir ou não com a sua cara, rsrs… Mas quando conseguia, sempre havia um rostinho — e corpão! — novos nas telas, alguma nova revelação. Naquela época (meados dos anos 1970), acredito que a atriz que mais mexeu com as minhas fantasias foi a Nadia Lippi. Seu rostinho e jeito de menina me faziam sonhar em ter uma namorada como ela. Nadia é apenas dois anos mais velha do que eu.
O que foi a Maria Erótica?
Foi uma personagem de quadrinhos criada por Claudio Seto em 1969, publicada em revistas pela editora Edrel até 1973. Uma loira linda e sensual, embora pudica — bem, mais ou menos (risos). Maria Erótica acabou retornando em revista própria pela Grafipar em 1979, e se tornou um dos grandes sucessos de venda da editora curitibana, além de se tornar a musa dos nossos quadrinhos eróticos.
Se adaptada fosse para o cinema, qual atriz brasileira poderia encarná-la?
Nos anos setenta, bem que poderia ser a Nadia Lippi!
O universo das HQs está repleto de personagens que dariam uma bela série animada e, até mesmo, um filme. Por que os produtores não enxergam potencial neste filão?
Esse é um filão que realmente ainda não é bem explorado aqui no país. Já tivemos alguns casos, como o Ed Mort, de Miguel Paiva, personificado no cinema pelo excelente ator Paulo Betti. Também temos o Menino Maluquinho, Aline, Wood & Stock, mas nada que se compare com as produções de Hollywood.
Minha teoria é que o cinema nacional sempre teve pretensão de se levar muito a sério, no sentido de produzir “filmes cabeça”, sem valorizar muito o entretenimento puro e simples. A Chanchada nos anos de 1950, e as pornochanchadas na década de setenta compensaram bastante essa demanda de filmes autorais, sempre com roteiros densos e herméticos, muito influenciados pelo cinema autoral europeu, acredito. Filmes feitos para festival, sem apelo comercial algum. Não quero que pareça preconceito meu, adoro muitos filmes autorais. Sou fã de carteirinha de François Truffaut e do nosso Domingos de Oliveira. O melhor filme nacional para mim até hoje é “Dona Flor e seus dois maridos”, de Bruno Barreto. Uma produção impecável, com drama, ação, romance e comédia, tudo bem dosado, com os americanos sempre souberam fazer tão bem no cinema. Resultado: foi sucesso de crítica e público.
Dos personagens que você criou e/ou trabalhou no seu desenvolvimento, qual daria um filme ou desenho animado?
Dando continuidade a questão anterior, existe a possibilidade de que, no próximo ano, a TV Globo lançará a adaptação de minha parceria em quadrinhos com Wander Antunes, do personagem Zózimo Barbosa, um detetive de quinta categoria que vive aventuras tragicômicas no Rio de Janeiro dos anos 50. Zózimo foi criado pelo amigo quadrinista Wander e desenhado por mim em 2000. Em 2007 foi lançado um álbum com uma seleção de suas histórias. A produção da Globo gostou e comprou a ideia. A pré-produção já começou e quem deve fazer o papel do detetive carioca é o ator Marcelo Serrado.
Qual personagem da HQ nacional é ainda hoje subestimado pela crítica?
Existem vários… Muitos, na verdade. A maior parte da produção nacional de quadrinhos é quase marginal. Sempre esteve e continua competindo nas bancas — hoje também nas livrarias — com os personagens consagrados da Marvel, DC, Disney e etc. Apenas Maurício de Sousa conseguiu se impor e manter seu prestígio.
Por exemplo, o Pererê, de Ziraldo, criação para quadrinhos de 1960, cuja revista circulou por apenas quatro anos. Sou fã do Ziraldo desde criança, mas conheço apenas uma produção modesta feita para TV, desta que é uma das suas mais belas e ricas criações, com um universo fantástico de personagens e histórias, que ele tão bem soube criar e contar.
A HQ é cultura de consumo ou cultura popular?
Os quadrinhos, como conhecemos, foram desenvolvidos inicialmente como entretenimento nos jornais no final do século XIX, que eram então uma mídia diária em pleno desenvolvimento e talvez por isso esteja inserido na cultura de consumo, caracterizadas como criações gráficas sem maiores pretensões e de vida curta ou até mesmo descartáveis.
A partir dos anos de 1960, as HQs passaram a ser objeto de estudos acadêmicos, sendo analisadas e consideradas desde então não apenas como um poderoso veículo midiático, mas também como uma ferramenta narrativa reveladora dos costumes e tradições culturais dos lugares e momentos onde nasceram e foram publicadas.
Mirna (criação de Eugênio Colonnese) ou Maria Erótica, qual delas você pediria em casamento?
Optaria pela bigamia, posso? (risos) Uma loira e uma morena, uma “fada” e a outra “bruxa”, para fazer referência a uma das minhas HQs prediletas, Fadas & Bruxas,de Laerte.
Qual é o impacto da tecnologia na produção da arte (em especial das imagens, das ilustrações) e na sua fruição?
Atualmente, qualquer jovem pode criar e publicar seus quadrinhos, isso é fantástico! Assim como na música, basta um pequeno estúdio em casa, com os softwares certos no computador para se editar e imprimir um gibi, assim como gravar um CD.
A internet como mídia também vem causando uma revolução nos quadrinhos, embora sem definição do que virá. O quadrinista desenvolve seu personagem e HQ, monta os quadrinhos no computador e posta num blog criado especificamente para esse fim. Não é raro algum editor conhecer materiais como esses, mesmo ainda um tanto informais e se interessar, editar e publicar em álbum ou revista em quadrinhos, e conseguir chegar às bancas e livrarias.
O mercado em que você está inserido ainda tem poucas mulheres na produção artística de desenhos. Por quê?
Não sei. Poderia se por machismo, misoginia… Pelo fato dos quadrinhos serem uma produção artística, isso não faria sentido. As mulheres conquistaram seu espaço nas artes plásticas, na música, literatura, teatro, TV, cinema e dança. É certo que a grande maioria sofreu discriminação e preconceito na escolha pela carreira artística, e isso ainda acontece. Vejo os quadrinhos ainda como o primo pobre das artes, o patinho feio. Pelo menos essa ainda é a visão dos editores no Brasil. Não apenas as produções femininas são desprezadas, como os quadrinhos nacionais como um todo, se forem comparar a discrepância no ínfimo número de títulos nacionais publicados com a enorme quantidade de material estrangeiro, os enlatados.
Para ser criativo, o ócio é mais importante que o consumo de cultura (leitura, etc.)?
Claro que não. Quanto mais informação, mais embasadas ficam as criações artísticas. Essa informação pode vir através da leitura, de experiências vividas ou contadas, visto que o artista é um captador de emoções, mesmo quando aparenta estar em repouso, seu interior está sempre em ebulição à procura de novos desafios e propostas.
Qual grande escritor/roteirista que você gostaria de trabalhar?
Tive a sorte e prazer de trabalhar com talentosos roteiristas de quadrinhos, uma classe ainda mais desprezada que a dos desenhistas aqui no Brasil. Os desenhistas de HQ em nosso país têm o hábito de achar que também sabem escrever quadrinhos na ânsia de criar um trabalho autoral. Acho isso uma grande besteira e inconsequência. Tanto os americanos quanto os europeus sempre prezaram as duplas de criação, os roteiristas e desenhistas. Pessoalmente, nunca pretendi ou me considerei um roteirista de quadrinhos, embora tenha cometido algumas histórias. Escrever HQs é pensar sobre isso o tempo todo, estudar, praticar… É um talento. Temos casos, e não são poucos, de belas produções em quadrinhos nacionais no que diz respeito à arte, mas que pecam nas histórias. Ninguém aguenta ler uma HQ até o final só porque o desenho é lindo. Um roteiro fraco acaba afastando o leitor, e para reconquistá-lo é uma luta praticamente impossível. Tenho orgulho dos leitores que me procuram para elogiar algum trabalho meu, sempre trazendo boas recordações tanto dos desenhos quanto das histórias. Mas respondendo a sua pergunta, gostaria de trabalhar novamente com alguns roteiristas que admiro, mas em criações nossas ao invés de produções para estúdios. Outro grande sonho é ter a oportunidade de quadrinizar muitos contos escritos por meu pai. São quase 200 histórias fantásticas, na linha do seriado Além da Imaginação, que ele vem criando há mais de 40 anos.
Seu trabalho na Editora Abril foi o seu grande momento, financeiramente falando?
Em termos de estabilidade sim, embora o trabalho com desenhos animados pagasse mais, era um mercado instável, como qualquer serviço de freelancer, principalmente aqui no país.
Quais as dores e as delicias da sua profissão?
A própria instabilidade financeira comentada anteriormente é um dos fatores de maior estresse. É certo que o trabalho como freelancer nos dá uma autonomia de relativa escolha do que fazer e quando fazer. O problema maior é administrar o lado artístico com o empresarial. O ideal seria que todos os artistas pudessem contar com um bom agente ou representante, ficando livres para criar e desenvolver as aptidões e talentos.
A ensaísta e crítica cultural americana Camille Paglia diz que os jovens do Ocidente de hoje estão mais apressados, mais afobados e que isso reflete, na opinião dela, em que “os jovens tenham aspirações do tamanho das telas dos seus celulares”. O que você pensa a respeito?
Tenho uma filha ilustradora e conversamos muito sobre o assunto. Ao mesmo tempo em que seguimos a mesma profissão, nossas gerações são muito distintas quanto às aspirações e oportunidades na área de criação. Muitos estudos tratando sobre as gerações X, Y e Z analisam o tema. Se na minha juventude a busca pelo sonho de poder viver de desenho fazia a gente cair na estrada e buscar desafios, hoje o mundo entra em nossas casas e vidas oferecendo uma infinidade de opções através da internet. O problema é que quase tudo parece “mais do mesmo”, gerando frustração e apatia, além da competição cada vez mais acirrada para cada indivíduo conquistar seu lugar ao sol.
Qual o seu conselho para quem deseja se tornar um ilustrador?
Dando continuidade ao pensamento da resposta anterior… Estamos vivendo tempos de transição, e, mais importante do que tentar decifrar os acontecimentos e mudanças constantes, é fazer um esforço diário para se inserir no mundo em que vivemos e acompanhar essas transformações. E, como artistas, quem sabe poder conceber, expressar e oferecer algo novo para o lazer e reflexão, que são os atributos eternos, não apenas da ilustração como de todas as artes.
Em qual categoria na história dos quadrinhos podemos inseri-lo?
Olha, acho que já fiz de tudo um pouco nos quadrinhos. Quando jovem, ainda treinando e desenhando amadoristicamente, meu sonho era fazer quadrinhos de super-heróis e ficção científica. No entanto, meu primeiro emprego aos 18 anos foi desenhando histórias infantis para os gibis do Sítio do Picapau Amarelo. Depois vieram os desafios nas HQs adultas, com temáticas eróticas na Grafipar e de terror para as edições da Vecchi. Voltei as HQs infanto-juvenis criando graficamente Xuxa e Gugu para os quadrinhos, e muitas criações em equipe ao lado de talentosos amigos profissionais, como em Os Trapalhões, Turma do Arrepio, Zé Carioca e vários outros personagens de Walt Disney. Mais recentemente, tive a oportunidade de desenvolver um material autoral com o Zózimo Barbosa. Como vê, não tenho como me definir e nem quero. Espero apenas que novos convites e desafios continuem surgindo e que eu possa contribuir com o meu trabalho, independente da categoria.