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Indie Classical: um gênero ou um estado de espírito?

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h44 - Publicado em 27 out 2016, 14h17

Por Thiago Cury, compositor, curador e produtor. É idealizador do Festival Música Estranha, que acontece anualmente em São Paulo, e é dono do Selo Água Forte

Peter Gregson e Gabriel Prokofiev

A música erudita, como gênero musical, remete inevitavelmente ao passado. Um problema para quem tenta acompanhar as vanguardas do século XX e, sobretudo, a nova música produzida nesses primeiros anos do século XXI. Para tirar toda essa camada de limo e mofo que vem com o termo “erudito”, novos compositores, músicos, curadores e produtores ao redor do mundo estão trabalhando em sintonia para estabelecer um novo conceito, que mais que um gênero novo, revela uma atitude e um modo de fazer, um guarda-chuva que abriga uma multiplicidade de iniciativas e de sub-gêneros híbridos que se entrelaçam no universo da música erudita, contemporânea, rock, minimalismo, jazz, eletrônica, entre vários outros. Trata-se do indie classical.

Desde a entrevista com o compositor americano Nico Muhly que inaugura o uso do termo, muito se discute sobre oque representaria o conceito Indie Classical, muitas vezes tentando encaixá-lo num recorte de gênero com um híbrido de pop e clássico, uma abordagem frágil e bem menos interessante.

“Nunca me opus ao uso do termo enquanto ele fale sobre como estávamos fazendo o que estávamos fazendo e não sobre como nossa música estava soando. A confusão começa quando usam o termo para nomear uma sonoridade, um estilo musical” — Compositor David T. Little (NY)

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Indie Classical hoje reflete muito mais um modo de ver e viver a música (mindset) que resulta na criação de experiências musicais significativas com uma bagagem e elementos da música de concerto, e que operam um mash-up, uma fusão de informações e influências com a cultura e a música pop, buscando refletir e dialogar com a vida cotidiana.

Compositores e músicos que ocupam esse espaço não trabalham nos limites tradicionais dos gêneros promovendo um manejo despojado e experimental, muitas vezes colaborando em diversos níveis com a música popular, com uso de uma linguagem que valoriza a simplicidade harmônica e estrutural por vezes se aproximando do minimalismo. Demonstram um trânsito fácil ao criar uma obra para a sala de concerto ou para um balada num club ou para um festival.

Disseminado pelos Estados Unidos e pela Europa o indie classical nasce no início de dessa década de várias iniciativas diferentes e complementares e agora começam a ganhar novos contornos num movimento global.

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Para entender um pouco da vibe do indie classical, é possível trabalhar com um paralelo com o indie rock. Como bem pontuou Greg Snadow, professor da Julliard School em Nova York, em entrevista ao NY Times, o indie classical “certamente e deliberadamente tem paralelos com o indie rock na medida em que boa parte da produção é caseira, nova e de ponta. É a resposta do mundo clássico jovem”.

Historicamente Nova Iorque, Londres e Berlin são os epicentros deste movimento. Em 2001 o tradicional selo alemão de música clássica Deutsche Grammophon inaugura o projeto “Yellow Lounges” com música clássica em clubes de Berlin. Em Londres esse movimento ganha força com o projeto Nonclassical, criado pelo compositor Gabriel Prokofiev (neto do compositor russo Sergei Prokofiev). Em 2004, ele deu início a uma noite que levava a música nova para o espaço dos clubes, mesclando atuações de DJs remixando música clássica contemporânea. Ao longo dos anos, a Nonclassical já teve residências em clubes como Hoxton Bar & Kitchen, The Shaclewell Arms, The Macbeth e The Horse and Groom, além de noites pontuais em alguns outras casas de show grandes, como Cargo e The Roundhouse, em Londres. A partir de 2011, a Nonclassical passou a ter edições em outras cidades, como Paris e Berlin, e este ano prepara uma versão em Praga. NonClassical é também um selo que fomenta a produção de novos compositores e ensembles, bem como da cena de música eletrônica lançando remixes das obras gravadas.

Do outro lado do Atlántico, em Nova Iorque, os primórdios remontam aos tempos da cena de “Donwtown New York”, de Steve Reich, das noites de improvisos de John Zorn e do coletivo de compositores Bang on a Can que abrem caminho para uma popularização do erudito contemporâneo experimental, ceifando um terreno ideal para a nova geração de compositores, músicos e coletivos musicais. No início dos anos 2000 desenvolveu-se um ambiente fértil e dinâmico para música de concerto, experimental e seus híbridos, com direito à comissionamentos de grandes instituições, orquestras e festivais, e ao surgimento de Selos independentes de música contemporânea e experimental como New Amsterdam Records ou Innova, e Festivais como o “Ecstatic Music Festival” captaneado pelo compositor Judd Greenstein. Um dos expoentes desta cena Greenstein é também co-fundador do selo e produtora New Amsterdam Presents, que lança novos compositores e ensembles americanos.

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A Big Apple com sua grande diversidade artística e de público desenvolveu um ecossistema ideal para o florescimento e intercâmbio dessa cena, com grandes instituições de ensino em diálogo e investimentos constantes como a Juilliard ou Mannes School of Music, e com um circuito aquecido de espaços alternativos como o Le Poisson Rouge, National Sawdust, HERE, The Stone, dentre vários outros, que muitas vezes atuam com co-produtores comissionando obras e projetos especiais.

Na Suíça desponta outro expoente desta nova cena, o violinista e regente Etienne Abelin, que funda dois projetos importantes: o Ynight, que também leva a produção de novos compositores, músicos e DJs para o espaço dos clubes e bares, e o Festival Apples&Olives (que deriva da expressão em inglês “Apples&Oranges”, contrapondo dois elementos que não se misturam). Em paralelo, na Holanda, Brendan Walsh cria a Classical Music Rave, uma festa que usa todos os truques de luz e som das boas casas noturnas de dance music, mesclando performances musicais curtas com DJs tocando desde Beethoven e Brahms até híbridos que misturam música erudita contemporânea com paisagens sonoras e beats.

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Um exemplo curioso vem do Colorado, onde este ano aconteceu uma série de quatro concertos intitulada Classically Cannabis, foram quatro eventos para arrecadação de fundos, em que a Colorado Symphony Orchestra tocou para uma audiência que podia fumar maconha durante os concertos. Lembrando que há dois anos o Colorado libera o uso recreativo da maconha para maiores de 21 anos. Esse espírito que rompe com as regras tem tudo a ver com o ethos desse novo movimento.

Das festas, bares e casas de shows o indie classical começou a percorrer uma série de festivais como C3 Festival e Podium Festival na Alemanha, Marathon Festival na França, Rewire Festival na Holanda, o Prototype Festival nos EUA, e no Brasil o Festival Música Estranha e o Festival RC4, dentre muitos outros.

Na última ClassicalNext — fórum e mercado de música erudita e arte sonora que acontece anualmente em Rotterdam, na Holanda — o painel dedicado ao indie classical foi um dos mais comentados, e onde se deu o pontapé para a formação da Indie Classical Network. Uma rede global que atua na promoção do conceito, no mapeamento e articulação de agentes e eventos afins e na coordenação de uma série de ações práticas para levantar recursos compartilhados, abrir agendas para esse estilo em instituições culturais e festivais ao redor do mundo e repensar as conexões da música de concerto com a sociedade contemporânea e seus habitantes.

Em maio passado em Rotterdam, foi estabelecida uma primeira força-tarefa, uma espécie de comissão de frente que reúne alguns dos principais nomes que atuam promovendo uma articulação em rede global. No Brasil, sou o representante desse grupo, que conta ainda com Brendan Walsh (Classical Music Rave, Holanda), Etienne Abelin (classYcal, Suíça), Gabriel Prokofiev (Nonclassical, Reino Unido), Jennifer Dautermann (Classical:NEXT, Alemanha), Paul Bräuer (Classical:NEXT, Alemanha), John Kieser (New World Symphony, EUA), Virgo Sillamaa (Music Estonia, Estônia), Bob Riley (Manchester Camerata, Reino Unido).

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O que une todos esses compositores, músicos, produtores, DJs é justamente uma vontade de apresentar nova música de uma maneira não-convencional, operando fora da etiqueta e da sisudez da sala de concerto. Muito da música apresentada é radical, mas o mais radical é estar mais perto do público, romper a reverência e o silêncio forçados das salas de concerto.

Não seria a questão definir ou balizar aqui o que é e o que não é indie classical do ponto de vista estilístico. Dentro desse guarda-chuva há hibridismos de toda a forma, com eletrônica, rock e outros gêneros, música que dialoga com os minimalistas, os concretos e o noise. Importante sim é observar que esse movimento encerra vigor e vivifica o ecossistema da música, ao mesmo tempo que propaga o idioma da música de concerto e experimental para plateias que hoje têm pouca ou mesmo nenhuma permeabilidade à ele.

Mas muito além da formação de novos públicos e espaços, essas práticas nos levam à ressignificação da relação entre compositor, músicos e audiência, vivificando o pertencimento em comunidade e a conexão do fazer musical com o mundo que nos cerca, nossos convivas, espaços e histórias.

Este texto faz parte do episódio “Onde nasce a música moderna?”, da Bravo!. Para ler no contexto do episódio, clique aqui.

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