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Inhotim ou O Destino de Um Personagem

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h49 - Publicado em 30 ago 2016, 08h01
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Gabriel Bogossian é curador independente, editor e crítico de arte.

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Galeria Através, de Cildo Meireles. Foto: Henk Nieman

por Gabriel Bogossian

É inegável: Inhotim é um lugar fascinante. Única instituição capaz de exibir adequadamente obras de importantes artistas contemporâneos, guarda uma coleção com estrelas da arte contemporânea mundial, além de um jardim botânico e de ser parte de um grande rol de outros empreendimentos, destinados a viabilizar economicamente sua manutenção. Tudo ali é superlativo, e narrado de modo grandioso; desde a sua fundação, que remonta à demarcação das fronteiras brasileiras, até projetos para um futuro de mil anos. O jardim botânico e a coleção de arte contemporânea, principais acervos da instituição, também são definidos pela sua escala excepcional, que é finalmente um dos critérios do mecenato exercido por Bernardo Paz no interior de Minas Gerais. Visto como conjunto, Inhotim é uma fábrica de discursos bastante ativa, com falas às vezes contraditórias sobre si mesma. Ora ela aparece como detentora de uma grande coleção de arte de importância internacional, ora como etapa para a criação de uma espécie de paraíso artificial onde a coleção é, embora importante, só um dos elementos.

Se, como empreendimento imobiliário, sua existência alterou definitivamente o cenário da região onde está instalada — o que de uma certa forma atende ao desejo de Paz de transformar o mundo a partir de Inhotim –, é quando surge como instituição de arte que Inhotim articula mais claramente as várias faces de seu projeto. Sua coleção é um dos pilares simbólicos da instituição, representando ao mesmo tempo sua identidade e sua validação social como empreendimento do (bom) gosto. Mas por ser um híbrido de coleção institucional e coleção privada, ela é também seu principal capital, e já teve partes vendidas para financiar ampliações no projeto do Inhotim.

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Entre compras e vendas, seu desenvolvimento acompanhou o crescimento e a profissionalização do mercado de arte brasileiro, a partir dos anos 2000. Player econômico internacional, Paz decidiu ocupar o mesmo lugar com seu instituto, contratando curadores e artistas que participam de prestigiosas bienais e instituições do mundo todo. Em um nível, portanto, sua iniciativa é o exemplo bem sucedido das tentativas de parte da elite brasileira em se internacionalizar, e também à sua prática colecionística, desenvolvendo um tipo de mecenato até então inédito no país.

Sem ser temática, a coleção pretende reunir, em condições de igualdade, as produções nacional e internacional de arte contemporânea. De maneira geral, ela acompanha e valida uma narrativa sobre as práticas artísticas que cobre um período — dos anos 1960 a 2015 — tomado de um lugar específico — o Brasil, entre 1999 e 2015. Confiando sua relevância ao caráter espetacular de seu acervo, tem em alguns de seus exemplares mais vistosos — os pavilhões e obras monumentais — ícones que, por força da sua visibilidade, a definem.

No que diz respeito à produção brasileira, ver em conjunto obras e pavilhões de Cildo Meireles, Claudia Andujar, Oiticica, Tunga, Miguel Rio Branco e Adriana Varejão oferece um interessante recorte dos últimos 50 anos no país; as condições de montagem exigidas por algumas dessas obras aumenta o valor pedagógico da experiência.

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O lugar necessariamente problemático do museu de arte contemporânea, no entanto, não é explorado de modo radical em nenhuma das suas direções possíveis: o recorte temporal, demasiadamente amplo para a breve e, ainda em disputa, história da arte contemporânea, não permite explorar uma fala autônoma (ainda que discutivelmente autônoma) sobre esse relato; o recorte geográfico, que priorizaria a arte brasileira, é explorado timidamente e, em que pese sua importância pedagógica, a coleção ainda não permite vislumbrar uma sequência de posições consistentes sobre questões chave da arte e da produção simbólica no Brasil. A paisagem, o caminho, o labirinto, o ambiente, a natureza, o tempo e o lugar — temas que, segundo o curador Jochen Volz, são recorrentes na coleção — mais derivam das particularidades físicas do museu-jardim de esculturas-coleção privada que a comporta do que estabelecem uma tensão narrativa no contexto contemporâneo da arte.

Arte fora do mundo

Inhotim, museu cuja arquitetura não estabelece um centro nem instaura pontos de vista predominantes, e que faz referência a uma tradução da natureza para organizar seu projeto institucional (em constante expansão, sem contornos rígidos), é refém dessa tipologia que, um pouco como a Coney Island de Koolhaas, escancara um escape para os “estímulos enervantes da civilização urbana”, criando um lugar de pura artificialidade construída sobre fragmentos da história social da região e dos restos de seu patrimônio natural.

Ao longo dos anos, a instituição vem se servindo das ambiguidades dessas sobreposições para construir falas de prestígio sobre si mesma, que atuam sobre a percepção da Inhotim e seu valor. Os projetos de pesquisa sobre patrimônio realizados pelo museu têm eixos temáticos que visam forjar laços de pertencimento comunitários e territoriais. Sem pretender questionar o impacto social dessas iniciativas, no que diz respeito à produção discursiva, essas falas e práticas de prestígio buscam estabelecer um vínculo territorial socialmente elaborado e com isso dar valor social à instituição e ao patrimônio reunido ali, estabelecendo-a de fato como um museu. Assim, sua importância relativa aumenta, do mesmo modo que a importância — e o valor — da sua coleção de arte.

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Mas, paradoxalmente, esse acréscimo de sentido e valor é produzido à revelia da coleção: não existem divulgadas pesquisas teóricas que tenham sido realizadas a partir dela, nem uma política sistemática de elaboração e divulgação do seu significado, das articulações desejadas ali ou sobre o destino que esse patrimônio poderá ter no futuro. A instituição tampouco se destaca pelo empenho em estabelecer vínculos com outras instituições e coleções, o que poderia fazer com que trechos do acervo de Inhotim circulassem em exposições próprias ou por meio da cessão de obras. Ou seja, apesar do aspecto público ser central para a obra de Paz, o valor constituído por Inhotim parece não ter lugar em meio ao ruído e à sujeira do mundo; existe, quase como um encantamento, só sob certas condições — e isso é ao mesmo tempo uma decisão poética e institucional.

Mecenato público vs. mecenato privado

Inhotim, apesar de tudo, continua a brilhar na noite de poucas estrelas que é o mecenato no Brasil. Contemplando esse brilho contra o vazio ao redor, algumas perguntas sobre a nossa experiência persistem, como uma espécie de aceno para o futuro. A primeira, mais urgente, quer saber por que em meio aos poucos mecenas privados que abrem suas coleções, praticamente não existem aqueles que se dediquem como doadores ou gestores à manutenção do patrimônio público — coleções, museus, bibliotecas — sem pretender privatizar suas histórias. Não é preciso fazer uma lista de instituições que se beneficiariam desse gesto de desprendimento.

Por fim, as características de Inhotim fazem surgir perguntas também sobre seu destino. Caso o custo de manutenção se revele muito alto frente, digamos, à queda do preço das commodities, existe um projeto que vai orientar as ações da instituição em cenários econômicos desfavoráveis, determinando, por exemplo, quais partes da coleção poderiam ser vendidas sem que o projeto institucional fosse descaracterizado? E o que o colecionador pensa sobre o seu testamento? Tendo em vista, por um lado, a experiência da Casa Daros e o histórico de alguns dos nossos museus privados mais importantes — MASP, MAM-RJ, ou mesmo o MAM-SP, com sua sede eternamente provisória -, e por outro o fato de que os altos custos do colecionismo de arte contemporânea só são possíveis a agentes privados, essas são perguntas necessárias para compreender o contexto institucional das nossas coleções de arte contemporânea.

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Rosebud, última coisa dita por Charles Foster Kane antes de morrer, é uma palavra misteriosa; a busca pelo seu sentido guia o personagem jornalista cuja investigação é o mote de Cidadão Kane e promete revelar o sentido do próprio Kane: é por ela que o conhecemos, ainda que de modo incompleto, desde a sua infância até os momentos decisivos da sua vida adulta, quando já se tornou um magnata da mídia e construiu Xanadu. É como se o sentido de rosebud revelasse o destino do personagem, aquilo de que ele não conseguiu se livrar.

No caso de Inhotim, apesar de indiscutível apelo kaneano do personagem, não há um rosebud para orientar a investigação sobre o destino da obra criada por Bernardo Paz; não sabemos a que ela se destina, nem como narrativa, nem como patrimônio — como ela se dirige ao seu contexto presente e o que ela quer ser no futuro. Nessa noite, no entanto, nos resta contemplar seu brilho.

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