João Gilberto, lado B
O gênio se foi, e está mais do que na hora de deixar de lado os dramas familiares que marcaram o fim da sua vida e lembrar do seu legado — incluindo suas obras menos comentadas
Por Lucas Colombo*
Ter consciência de que vivemos a Era do Espetáculo e tentar compreendê-la não é, de maneira alguma, o mesmo que aceitá-la ou estimulá-la. Ainda assim, havia quem reagisse, diante da exposição na mídia de brigas familiares e problemas financeiros de João Gilberto, com um atônito “Não entendo por que mostrar tudo isso”.
Poderíamos ocupar o texto inteiro com respostas à questão: porque o público adora ter confirmadas caricaturas como “Ele é um excêntrico, mesmo!”, porque além da Era do Espetáculo vivemos também a Era do Ressentimento e muita gente se regozija vendo alguém famoso se dar mal, porque parte da imprensa gosta de ganhar cliques com notícias sobre a decadência pessoal de artistas, porque são todas essas explicações juntas, etc. etc.
João agora se foi. Troquemos então o “Por que mostrar tudo isso?” por “Ignore tudo isso”. Deixemos escândalos e dramas privados de lado e vamos nos concentrar na arte. Pois toda obra artística adquire uma vida autônoma à do seu criador: a biografia do artista é só um dos vários fatores a se levar em conta na hora de avaliar a obra. A vida de quem cria não suplanta a criação, que é sempre o que fica. E o que vai ficar de João Gilberto não é pouco.
Respeitadíssimo no meio musical bem informado do mundo todo, o violonista e cantor que inventou a divisão rítmica e o modo contido de cantar denominados, naqueles anos 1950, de bossa nova é dos raros músicos de que vale a pena ouvirmos mesmo os momentos mais despretensiosos ou aqueles dignos apenas de uma nota 6 — trabalhos que resultaram suficientes para passar de ano, sem o fascínio emanado por aqueles que receberam um 10, de várias gerações.
Os trabalhos do, digamos assim, “Lado B”, já que o assunto aqui é música. Uma vez que conhecemos (até demais) o Lado B pessoal de João Gilberto nos seus últimos meses de vida, exploremos, então, o Lado B musical: obras menos festejadas do que Chega de Saudade; O Amor, O Sorriso e A Flor; Getz/Gilberto e Amoroso, álbuns lançados nos anos 50, 60 e 70. O que discos e gravações menos comentados de João têm de bom?
Nem sempre se vê
Vamos a três deles. Antes que os tomates venham: a escolha é pessoal e discutível, claro.
Para começar, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, registro de um especial homônimo que a TV Globo exibiu em 1980. Há ali uma pérola pouco conhecida: um surpreendente dueto com Rita Lee, em Jou Jou Balangandãs, uma marchinha antiga de Lamartine Babo.
No livro de memórias Noites Tropicais (Objetiva, 2000), o jornalista e letrista Nelson Motta conta como foi o encontro: “Linda e vaporosa, com os longos cabelos vermelhos balançando, ela cantou com João o antigo sucesso de Mário Reis Juju e Balangandãs, com infinita graça e alta precisão. Sua voz pequena e cool, sua inteligência musical, seu bom gosto e sofisticação a aproximavam muito mais de uma cantora de bossa nova do que o volume, peso e potência vocal esperados de uma rainha do rock. João sorria feliz e Rita, aliviada, quando no final o público explodiu em aplausos delirantes exigindo bis”.
É, realmente, a consumação de um casamento inusitado mas feliz. Rita se esforça, e consegue, para estar no mesmo nível de emissão vocal de João, e ambos exalam aquelas delicadeza e graça de que o Brasil raras vezes é capaz. O dueto é uma comprovação de que dois antípodas podem caminhar juntos.
João Gilberto Prado Pereira de Oliveira contém ainda a única interpretação de JG para Eu e a Brisa, clássico do subvalorizado Johnny Alf. Bela interpretação, aliás: João começa “desconstruindo” a canção, eliminando o suspiro (“Ah!…”) que abre a letra e unindo uma frase melódica à outra sem pausas, até finalmente se render à beleza sinuosa, jazzística, da melodia e segui-la no andamento original, com orquestra ao fundo.
Igualmente pouco lembrado (e celebrado) é Eu Sei Que Vou te Amar, de 1994. Outro disco ao vivo, sofreu uma edição curiosa — se a pedido do próprio João, deveras um sujeito algo preciosista, ou por ordem da gravadora, não se sabe: fato é que foram cortados os aplausos ao fim de boa parte das 18 canções (para esclarecer: João achava que palmas são “ruído”). Por isso, algumas dessas faixas chegam a se encerrar antes do último acorde ou nota do violão. Estranho, mas vá lá.
Eu Sei Que Vou te Amar é um disco sóbrio, de faixas curtas, direto ao ponto, ancorado em sambas antigos e standards de Tom Jobim e Dorival Caymmi (o Lado A do repertório de JG). Como fazia (quase) sempre, João incluiu uma canção de outro idioma: a italiana Estate, discreto sucesso romântico que ele conheceu executado pela orquestra do próprio compositor, Bruno Martino, em 1964, quando passou três meses no sul da Itália fazendo shows. “Muitos anos depois, João Gilberto iria se lembrar e gravar [Estate]”, escreve Ruy Castro em Chega de Saudade (Companhia das Letras, 1990), sua “biografia” da bossa nova.
A redescoberta, que fez a canção entrar no repertório de cantores e instrumentistas de jazz, deu-se em 1977, no álbum Amoroso, mas numa versão de seis minutos um tanto arrastados, com seções instrumentais redundantes. A Estate de Eu Sei Que Vou te Amar é mais sintética: tem dois minutos só de voz e violão, com um cantarolado irresistível no final. João era assim: várias versões até chegar ao essencial, à “faca só lâmina” que João Cabral buscava na poesia.
Um terceiro caso de “Lado B” se refere a uma vez em que João acertou mesmo errando: a vez em que cantou Me Chama, a balada rock de Lobão (!). O interlúdio de arranjo de cordas feito em teclados denuncia a época da gravação — anos 1980 — e a proposta de obter uma sonoridade “padronizada”, fácil, na medida certa para tocar em novela da Globo. E tocou: João gravou Me Chama sob encomenda, para a trilha sonora de Hipertensão, uma novela “das sete” transmitida em 1986.
Lobão, para variar, irritou-se com a versão, especialmente por causa da exclusão do verso “Nem sempre se vê mágica no absurdo”. As palavras, no entanto, de fato não soariam bem no andamento mais vagaroso que João imprime à melodia (tente cantar, respeitando a sílaba tônica de “mágica” e o B mudo de “absurdo”; fica mesmo precário).
Mas a Me Chama de João tem lá o seu charme. Ele revela a beleza da melodia ao emiti-la prolongando vogais, como de hábito, numa expressão intimista, sem a virulência de Lobão. A “fossa” que, no original, revolta o roqueiro-autor é a que faz João se recolher em saudade. Me Chama, em espírito, não era para ele. Mas ele consegue devolvê-la com um tempero pessoal que não faz a receita desandar.
Lugar certo
Há material para um texto sobre o Lado D (de descartável) de JG? Sim. Artista infalível, por óbvio, não existe. Seria, contudo, a exceção que confirma a regra. “Nem Tom [Jobim], seu rival mais próximo, tem a musicalidade de João, o timbre, o afinamento, a certeza, que parecem vir das entranhas”, observou Paulo Francis, em 1990.
Tanto quanto para o A, vale voltar os ouvidos para o seu Lado B musical — e desviá-los um pouco do pessoal, de que tanto se falou recentemente. “Ainda não cheguei direito. Tenho receio de ocupar espaço demais. Quero sentir o meu lugar certo dentro destas coisas”, declarou João, em entrevista a uma Veja de 1971, ao voltar para o Brasil depois de anos no exterior. A Era do Espetáculo deste início de século não é o “lugar certo” para alguém que prezava contenção, precisão e elegância. E, melhor não ter ilusões, não irá embora tão cedo. Só não precisamos colaborar para que fique.
A obra de João rende discussões muito mais interessantes do que sua vida particular. De vez em quando, é bom virar o disco.
— — — — —
*Lucas Colombo é jornalista e professor. Colabora com revistas e cadernos de cultura. É editor e colunista do site Mínimo Múltiplo, on-line desde 2008. É organizador e coautor do livro Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo (Bartlebee, 2014).